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Genética

Uma mutação, três doenças

A mesma alteração num gene pode causar distintas patologias nos neurônios que controlam os movimentos

Estabelecer a ligação de uma mutação com um problema clínico já não é fácil. Mais difícil ainda é provar a conexão de uma alteração genética com mais de uma patologia. Num trabalho publicado em setembro na edição eletrônica da revista American Journal of Human Genetics, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) mostram que uma mutação no gene VAP-B, presente no cromossomo humano 20, pode causar três tipos distintos de doenças degenerativas nos neurônios motores: atrofia espinhal progressiva tardia, esclerose lateral amiotrófica (ELA) e uma das formas atípicas de esclerose lateral amiotrófica, a ELA8.

A disfunção no gene foi encontrada em 34 indivíduos, pertencentes a sete famílias: 16 pessoas tinham atrofia espinhal, 15 apresentavam ELA8 e 3 manifestavam a forma clássica de ELA. “Ainda não sabemos por que a mutação provoca diferentes patologias”, afirma a geneticista Mayana Zatz, coordenadora das pesquisas que levaram ao artigo científico e do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “É possível que outros genes tenham uma ação protetora ou agravante em relação ao efeito da alteração no VAP-B”, diz Agnes Nishimura, aluna de doutorado e principal autora do artigo.

As três enfermidades são parecidas e, em certos aspectos, se confundem. A semelhança talvez se deva à descoberta de que a mutação no gene VAP-B pode ser a causa das anomalias. De forma genérica, são classificadas debaixo do grande guarda-chuva das chamadas doenças dos neurônios motores. São lesões que afetam as células do cérebro e/ou da medula espinhal especializadas em enviar impulsos elétricos para os músculos. Estes contraem ou relaxam a partir de comandos transmitidos pelos neurônios motores superiores (cérebro) e inferiores (medula espinhal).

Se esse grupo de células se degenera, como acontece em maior ou menor escala nas três doenças, os músculos se tornam fracos e rígidos. Neurônios e músculos não conversam mais. De acordo com a localização e a velocidade de progressão da lesão, os pacientes perdem a capacidade de movimentar partes do corpo. Com o tempo, têm de recorrer a cadeiras de rodas e a camas especiais, além de requerer a companhia constante de alguém para auxiliá-los.

Perto do fim da vida, alguns podem também perder o domínio da voz e da capacidade de mastigar alimentos. A dificuldade de respirar sem a ajuda de aparelho é, em geral, a causa da morte. Os sentidos do tato, olfato, visão, paladar e audição não costumam ser afetados pelas doenças. A capacidade intelectual também é preservada. O físico inglês Stephen Hawking, que sofre de uma forma atípica de ELA, é a melhor prova disso.Na forma tradicional de ELA, a mais comum das três doenças, as lesões afetam células nervosas do cérebro e da medula espinhal, e as dores e as restrições de movimentos tendem a se generalizar pelo corpo do doente. De dois a cincos anos é o tempo máximo de vida do paciente após o aparecimento dos primeiros sintomas, em geral após os 40 anos de idade. Cerca de 90% dos casos clássicos de ELA não são hereditários.

Os outros 10% são familiares, como os que foram alvo do trabalho dos pesquisadores brasileiros: podem passar dos pais para os filhos. Além da mutação agora encontrada no VAP-B, alterações em outros três genes estão aparentemente ligados à doença. Embora igualmente fatal como a ELA clássica, a forma atípica de esclerose lateral amiotrófica estudada na USP, a ELA8, se desenvolve de maneira bem mais lenta. “Os pacientes convivem com a doença por décadas”, diz o biólogo Miguel Mitne-Neto, outro autor do estudo que encontrou a mutação no gene VAP-B. A atrofia espinhal progressiva tardia é resultado exclusivamente de lesões nos neurônios motores responsáveis pela inervação dos músculos. A forma infantil é relativamente comum. A tardia, muito rara. Os sintomas aparecem por volta dos 50 anos e a evolução é vagarosa. Como a ELA8, a atrofia espinhal é hereditária.

Ancestral português
Encontrar a alteração genética foi um trabalho de dois anos. Os pesquisadores fizeram exames clínicos e de DNA em dezenas de pessoas das sete famílias com membros afetados pelas doenças, que se encontravam espalhadas pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. Alguns pacientes procuraram espontaneamente o Centro de Estudos do Genoma Humano, conhecido por realizar trabalhos com síndromes degenerativas. “Vi no jornal uma reportagem sobre o centro e fui a São Paulo”, comenta Lecy Gonçalves de Souza, 62 anos, moradora de Niterói, Rio de Janeiro, que há quase três décadas tem ELA8.

Outros indivíduos foram visitados em suas casas. Os cientistas também tentaram reconstituir a árvore genealógica de cada um dos clãs e ainda estabelecer sua eventual relação de parentesco. Apesar de não ter sido possível provar a ligação biológica entre todas as famílias, a história desses indivíduos parece apontar para a existência de um ancestral comum, de origem portuguesa, que viveu em território mineiro há mais de um século. “Nossas informações indicam que, ao longo de oito gerações, essas famílias tiveram 1.300 pessoas sadias e mais de 200 casos de doenças neurodegenerativas”, comenta Mayana.

O gene VAP-B controla a produção de uma proteína homônima envolvida no transporte de substâncias no interior das células. Se alvo de uma mutação, deve induzir à síntese de formas anormais da proteína. A equipe da USP suspeita que as versões alteradas da VAP-B podem se acumular dentro das células, como se fossem micronódulos, e levar à morte de neurônios motores. A idéia ainda é uma hipótese, mas é amparada por experimentos feitos com tecido humano e de camundongos por Paul Skehel, da Universidade de Edimburgo, Escócia, colaborador da equipe da USP.

Além do homem, o gene está presente em outros organismos, como moscas, roedores e leveduras. Essa particularidade deve auxiliar na busca por mais dados sobre os mecanismos biológicos que provocam os distúrbios neuromusculares. “Nossos colegas britânicos querem fazer camundongos transgênicos que funcionem como modelo das doenças”, diz Agnes. Pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que colaboram com os brasileiros, querem fazer o mesmo com a mosca-da-fruta (Drosophila melanogaster).

O Projeto
Centro de Estudos do Genoma Humano; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenadora Mayana Zatz – USP; Investimento R$ 1.000.000,00 por ano

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