Imprimir PDF Republicar

RESENHAS

A dinâmica da antropologia

Coletânea de artigos revela a maioridade intelectual da disciplina

Eunice Ribeiro Durham é um referencial no ensino e na pesquisa em antropologia entre nós. Não só para as diversas gerações de estudantes e profissionais da área, que tiveram o privilégio de acompanhá-la em sua melhor forma, na sala de aula e no campo, ao longo de impressionante carreira que já conta cinco décadas. Todos os que se engajaram em investigações e debates a que ela se dedicou, sobre temas medulares nas ciências sociais brasileiras nas últimas cinco décadas, e a lista não é pequena: migração, urbanização, família, participação política, movimentos sociais, institucionalização da antropologia, ensino universitário, podem testemunhar o alcance e a influência de suas contribuições e polêmicas, que conservam muito de seu impacto e atualidade.

Por isso, só se pode saudar a iniciativa dessa publicação (que deve ser creditada a Omar Ribeiro Thomaz), reunindo artigos de toda a trajetória da professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Como assinala Peter Fry no belo prefácio, a coletânea, além de perfazer uma autobiografia intelectual da autora, oferece ao leitor uma parte da história da antropologia no Brasil, em que também se afirma a maioridade intelectual da disciplina. Da visão antropológica, enriquecida pelo diálogo com a sociologia, a ciência política, a história e (por que não?) a biologia, são enfrentadas grandes questões: a explosão da vida urbana e da sociedade civil organizada, a resistência à ditadura militar e a transição para a nova democracia, a expansão e os desafios da educação básica e da universidade. Nada mal para uma disciplina tida como eterna outsider das ciências sociais.

A coletânea permite identificar alguns traços persistentes no pensamento e na obra de Eunice Durham. Encontramos, inicialmente, trabalhos representativos de sua formação na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na década de 1950, em sua preocupação com a “mudança cultural”. Destacamos a dupla marca dessa formação: a incorporação das técnicas e perspectivas da etnografia clássica. Malinowski é uma paixão permanente, mas não menos significativa lhe foi a tradição dos estudos de comunidade e a orientação teórica provida pela cadeira de sociologia comandada por Florestan Fernandes. Provêm dessa aliança o interesse duradouro da autora em entender como grupos ou segmentos sociais empiricamente delimitados vivem, atuam e pensamcomo também sua insistência em que estudos de base etnográfica sejam referidos ao contexto histórico mais amplo e à mportância crucial da dominação política e econômica.

Essa marca a afastou dos estudos de “aculturação”, que davam a tônica da velha cadeira de antropologia da USP, e foi transposta para o programa de pesquisas com populações urbanas, com ênfase nas relações entre cultura e política, que ela desenvolveu nas décadas de 1970 e 1980, ao lado de Ruth Cardoso. Alocadas ambas na área de ciência política, formaram novas gerações de antropólogos num contexto institucional e político bem diferente: no país, sob a ditadura militar; nas ciências sociais uspianas, sob a hegemonia do marxismo.

Nessa fase, apropriadamente chamada de “heróica” pelo prefaciador, Eunice Durham escreveu talvez os seus melhores ensaios: “A dinâmica cultural na sociedade moderna”, “Cultura e ideologia”, “Movimentos sociais: a construção da cidadania”, entre outros. São diálogos fecundos da antropologia com o marxismo, argutos na avaliação das formas então emergentes de participação cultural e política; e precisos na crítica tanto ao abuso dos macroconceitos estruturais como à confiança ingênua nos recursos da pesquisa qualitativa. Juntamente com a magistral introdução preparada para o volume (“Uma história muito pessoal de meio século de antropologia na USP”), merecem ser (re)lidos com especial atenção, sobretudo pelos jovens pesquisadores.

Júlio Assis Simões é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor do Departamento de Antropologia da USP, autor de O dilema da participação popular (Marco Zero/Anpocs, 1992).

Republicar