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Medicina

Corações, inventos e recursos

Adib Jatene tornou -se referência como cirurgião, pesquisador e homem público

EDUARDO CESARAos 77 anos de idade, o cirurgião cardiovascular Adib Jatene segue fazendo o que gosta. Há sete anos ele deixou a carreira de professor titular da Faculdade de Medicina da USP, aposentando-se também do cargo diretor científico do Instituto do Coração (InCor). Mas suas mãos continuam a consertar corações praticamente todos os dias no Hospital do Coração, em São Paulo, instituição privada fundada por um grupo de senhoras da Associação Sanatório Sírio em 1976 e dirigida por Jatene até hoje. Em pelo menos um aspecto a rotina do cirurgião tornou-se mais amena que no passado. Antigamente ele não dava conta de atender a multidão de pacientes que fazia questão de operar-se com ele e com mais ninguém. Hoje essa demanda já não é tão forte – mas: e cirurgião enxerga na mudança o coroamento de seu trabalho de professor. “A vida inteira eu lutei para que houvesse equipes de excelência espalhadas por todo o Brasil e hoje isso é uma realidade. E muitas dessas equipes têm grandes cirurgiões que eu ajudei a formar”, afirma.

Vinte e três anos atrás Jatene já defendia essa tese com todas as letras, quando o então presidente da República, o general João Figueiredo, sofreu um enfarte e resolveu operar-se em Cleveland, nos Estados Unidos. “Na época, eu disse que qualquer paciente tinha direito de se operar onde quisesse, mas o desafio do Brasil era permitir que qualquer cidadão brasileiro tivesse acesso a equipes de cirurgiões de nível internacional em todo o território do país. Afinal, a rapidez no socorro médico é essencial para o sucesso do tratamento.”

Embora Jatene tenha feito com as próprias mãos ou chefiado cerca de 100 mil operações cardíacas, seus interesses nunca se limitaram ao bisturi. Secretário da Saúde do estado de São Paulo no início dos anos 1980, ele criou, na época, um plano estratégico para garantir um patamar mínimo de atendimento à população de baixa renda em todas as regiões da cidade. Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos é resultado desse plano, ainda que a carência de leitos persista.

Em 1985, Jatene liderou a retomada dos transplantes de coração no Brasil. Isso foi possível graças ao advento de medicamentos contra a rejeição de órgãos

KENJI HONDA/AEEm 1985, Jatene liderou a retomada dos transplantes de coração no Brasil. Isso foi possível graças ao advento de medicamentos contra a rejeição de órgãosKENJI HONDA/AE

Sobre sua mesa de trabalho, no Hospital do Coração, há um mapa da capital paulista, dividido em sub-regiões, cada qual pintada com uma cor que revela o índice de leitos. Jatene segue no combate a esse flanco vulnerável. Ele lidera o Programa de Saúde da Família, coordenado pela Fundação Zerbini, responsável pela gestão do InCor, que construiu módulos de saúde nos bairros de Sapopemba e Vila Nova Cachoeirinha. “Temos equipes de saúde da família e grupos de especialistas para dar cobertura a elas”, diz.

No Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo,Jatene exercita outra de suas paixões, a bioengenharia, que ao longo de sua carreira resultou no desenvolvimento de próteses, equipamentos cirúrgicos e de diagnósticos para suporte a operações cardíacas. Tais inventos substituíram similares importados e permitiram ampliar o acesso dos pacientes brasileiros a tratamentos. A inovação mais recente em que tem participação é um ventrículo cardíaco implantável eletromecânico destinado a pacientes na ma de espera por um transplante cardíaco. E, como se tais atividades não fossem suficientemente absorventes, Jatene é membro de 32 sociedades científicas, preside o Conselho Deliberativo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, e supervisiona suas fazendas de gado no interior paulista.

Adib Domingos Jatene nasceu em Xapuri, no Acre, no dia 4 de junho de 1929. Perdeu o pai, um comerciante libanês, vítima de febre amarela, quando tinha apenas 2 anos de idade. A adolescência” foi passada em Uberlândia, onde a mãe viúva instalou-se, abrindo um armarinho. Mais tarde, trocou Minas Gerais por São Paulo para fazer o ensino médio. E se graduou, aos 23 anos, pela Faculdade de Medicina da USP.Lá também faria sua pós-graduação, orientado pelo cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini, com quem começou a trabalhar em 1951. Em 1955 foi lecionar numa faculdade de medicina em Uberaba, mas voltou a São Paulo dois anos mais tarde, como cirurgião do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Instituto Dante Pazzanese. Nessa época organizou no HC um laboratório – no qual desenvolveu o primeiro aparelho coração-pulmão artificial -, semente do futuro Departamento de Bioengenharia. Em 1961 deixou o HC e concentrou-se no Dante Pazzanese (que hoje é administrado por uma fundação que leva o nome do cirurgião). Lá organizou a Oficina de Bioengenharia, onde foram desenvolvidos instrumentos e aparelhos, hoje produzidos industrialmente e utilizados no Brasil e no exterior.

Jatene (esq.) com o cirurgião Euryclides Zerbini, o professor que, nos anos 1950, o ensinou a operar corações e o levou a rever os planos de voltar para o Acre

EDU GARCIA/AEJatene (esq.) com o cirurgião Euryclides Zerbini, o professor que, nos anos 1950, o ensinou a operar corações e o levou a rever os planos de voltar para o AcreEDU GARCIA/AE

Em 1983 sucedeu a Euryclides Zerbini na cadeira de professor titular de cirurgia cardiovascular da FMUSP e ajudou a desenvolver o Instituto do Coração, que se tornaria uma referência internacional de atendimento e pesquisa, inaugurando um modelo inovador de gestão hospitalar. Nele, o atendimento a particulares e convênios hospitalares ajuda a financiar os leitos destinados aos pacientes do Sistema Único de Saúde. Os médicos do InCor, em vez de trabalhar em vários lugares, são estimulados a atuar exclusivamente lá dentro, recebendo salários maiores. E ainda podem, em determinados períodos, atender pacientes particulares em consultórios do hospital. “Até 1982, as verbas eram insuficientes para permitir um funcionamento adequado. Quando começamos a captar os recursos, não só colocamos o hospital para funcionar com capacidade plena como passamos a suplementar o salário dos funcionários e estimular fortemente a pesquisa” , lembra Jatene.

Autor de cerca de 700 trabalhos científicos, Jatene deu contribuições no campo da cirurgia de revascularização do miocárdio e da cirurgia de cardiopatias congênitas. Descreveu a técnica de correção de transposição dos grandes vasos da base, conhecida hoje como Operação de Jatene. Em meados dos anos 1980 foi um dos principais artífices da realização de transplantes de coração, depois das experiências feitas pelo professor Euryclides Zerbini, no final dos anos 1960. Os transplantes tornaram-se viáveis com o surgimento de drogas imunossupressoras que conseguiram driblar o efeito da rejeição de órgãos.

Nunca largou o bisturi mas, na década de 1990, deu vazão a seus talentos de homem público. Foi ministro da Saúde em dois governos. Com Fernando Collor, ficou apenas oito meses no cargo. Em 1995, com Fernando Henrique Cardoso, tornou-se célebre na batalha pela criação do imposto da saúde, que se transformaria na atual CPMF. Repetia um mantra segundo o qual a saúde necessita mais do que outras áreas de recursos vinculados do orçamento. “Quando você constrói uma hidrelétrica, é preciso esperar ela ficar pronta para começar a ter receita. Mas quando você entrega um hospital público, gasta-se por ano com sua manutenção duas vezes o que foi destinado à obra. Por isso é preciso ter dinheiro vinculado”, diz Jatene. Deixou o governo 18 dias após a aprovação da CPMF,que no entanto não se vinculou apenas à saúde, tampouco multiplicou os recursos do setor como ele desejava. Jatene diz que não guarda mágoas. Frustração mesmo, ele brinca, só a de não ter voltado para o Acre para trabalhar como médico no meio da selva, como planejara nos tempos de faculdade. “Mas aí eu conheci o professor Zerbini e acabei me desviando do projeto original.”

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