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Química

Corpo com mais gás

Formulações com rutênio que liberam ou captam óxido nítrico podem servir de base para futuros medicamentos

Nova coletânia de osteologia e de miologia, de Jacques Gamelin, 1779

“Poderíamos nos apresentar como projetistas de compostos químicos produzidos sob medida que doam ou captam óxido nítrico.” Ao imaginar essa possibilidade, Elia Tfouni não pretende abrir mão da modéstia, mas resumir os resultados de dez anos de trabalho com Douglas Franco – ambos são químicos e professores da Universidade de São Paulo (USP). Em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Tfouni, Franco e as respectivas equipes desenvolveram cerca de 50 compostos que nos estudos iniciais feitos em laboratório se mostraram capazes de absorver ou liberar óxido nítrico, gás incolor essencial ao organismo que aparece e desaparece a todo momento: sua meia-vida, quando metade do total de moléculas se desfaz, é de apenas cinco segundos.

Produzido, consumido e reposto a todo momento, o óxido nítrico facilita a circulação do sangue, o funcionamento do rim, a destruição de microorganismos nocivos, a ereção peniana e a contração do útero na hora do parto, além de servir como mensageiro químico entre os neurônios do cérebro. Poucas moléculas são tão versáteis e onipresentes, embora essa combinação de um átomo de nitrogênio com outro de oxigênio tenha sido vista durante décadas principalmente como um resíduo liberado pelo escapamento dos carros – até que três farmacologistas norte-americanos demonstraram sua importância para os seres vivos e ganharam o Prêmio Nobel de Medicina de 1998.

Às vezes pode ser bom reduzir a quantidade de óxido nítrico em circulação no organismo; outras vezes, o melhor é aumentar a oferta dessa molécula ligada à vida e à morte, ao prazer e à dor. No choque séptico, como é chamada a brutal queda da pressão arterial que decorre de uma infecção bacteriana, há uma produção excessiva de óxido nítrico – associada também à esquizofrenia, ao mal de Alzheimer, ao diabetes e à asma. Nesses casos sua abundância não é desejada e seriam bem-vindos medicamentos que reduzissem sua concentração no organismo. Outras vezes o que se quer é o efeito contrário e manter a maior quantidade possível de óxido nítrico em circulação, valendo-se de sua propriedade de promover a dilatação das veias e artérias: medicamentos como o Viagra baseiam-se justamente nesse efeito, por meio do qual o sangue circula mais generosamente pelo pênis. Na situação inversa, a escassez de óxido nítrico faz os vasos sangüíneos se contraírem e torna mais iminente a possibilidade de um infarto.

Franco e Tfouni gostariam imensamente de dizer que já têm em mãos algo novo para evitar o infarto ou mesmo um Viagra nacional. Mas não. Seus estudos são puramente químicos e apenas começaram os testes em animais, primeira etapa de uma longa jornada rumo a aplicações seguras em seres humanos. O composto que se encontra em estágio mais avançado de pesquisa é chamado coloquialmente de PRuNO, abreviação de um nome quase impronunciável, o hexafluorofosfato de trans-nitrosiltetramintrietilfosfitorrutênio(II). Em laboratório, o PRuNO mostrou-se eficaz para reduzir a pressão arterial de ratos hipertensos, de acordo com um estudo feito em conjunto com Marta Krieger, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicado em 2002 na revista Nitric Oxide: Biology and Chemistry.

Alessander Acácio Ferro, ex-aluno de doutorado de Tfouni, desenvolveu outro composto aparentemente promissor. Chama-se hexafluorofosfato de trans-nitrosylcloro (1,4,8,11-tetraazaciclotetradecano) rutênio (II) – para simplificar, cyclam – e exibiu uma ação 20 vezes mais lenta quando comparado com o nitroprussiato de sódio, um composto usado para tratar ataques cardíacos, já que repõe rapidamente o óxido nítrico. Ainda que o trabalho tenha apenas começado, segundo Franco esse resultado sugere que o cyclam poderia ser utilizado para manter a pressão arterial estável, mais do que para resolver situações de emergência, como fazem o nitroprussiato ou a nitroglicerina, que também é um liberador de óxido nítrico, além de ser um explosivo poderoso.

Em estágio menos avançado estão os estudos de Jean Jerley Nogueira da Silva, um dos alunos de Franco, sobre o uso potencial desses compostos no combate a infecções. Em colaboração com João Santana, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, Silva verificou que o óxido nítrico bloqueia a reprodução do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, contra a qual há décadas não surgem medicamentos novos. Silva selecionou três compostos com alto poder de destruição: em uma hora, cada um dos três matou de 60% a 92% dos parasitas mantidos em meio de cultura.

Primeiros testes
Esse grupo de pesquisadores chegou a esses resultados valendo-se das propriedades dos íons – partículas carregadas eletricamente – de um elemento químico chamado rutênio. Em sua forma eletricamente neutra, o rutênio é um metal branco usado na produção de ligas resistentes à corrosão e em joalheria como substituto da platina. Com dois elétrons a menos, torna-se Ru2+ e um modelo experimental para o desenvolvimento de novos medicamentos, por se combinar facilmente com o óxido nítrico e formar compostos pouco reativos. “Essa é a via de síntese química mais simples que encontramos”, diz Franco, cuja equipe integra o Instituto de Química de São Carlos, enquanto Tfouni e seus alunos trabalham nos laboratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

Os compostos com rutênio ainda são tratados com cuidado, por causa de sua toxicidade. Mesmo assim, em doses controladas, têm sido testados no mundo inteiro contra algumas doenças, constituindo-se uma alternativa para as estratégias hoje adotadas, que controlam o estoque desse gás agindo sobre as enzimas que produzem óxido nítrico ou o desfazem depois de ter cumprido sua tarefa. Em um artigo de revisão publicado no ano passado na Current Topics in Medicinal Chemistry, Celine Marmion e sua equipe do Royal College of Surgeons, na Irlanda, em conjunto com pesquisadores da empresa canadense AnorMED, desenham um rico futuro para os doadores e captadores de óxido nítrico à base de rutênio ao descrever os resultados das novas formulações testadas em ratos, porcos, cães e coelhos contra problemas de amplo alcance, como hipertensão, câncer, infarto e inflamação.

Já foram feitos os primeiros testes também em seres humanos. Em um estudo publicado também no ano passado na Clinical Cancer Research, pesquisadores do Instituto de Câncer da Holanda relatam a descoberta da melhor dose de um composto à base de rutênio apta a evitar o espalhamento de tumores, após tratarem 34 pacientes com dosagens diferentes. Em paralelo, especialistas da Universidade de Trieste, na Itália, sob a coordenação de Enzo Alessio, encontraram uma formação designada como NAMI-A, que foi testada em 24 pessoas e impediu a proliferação das células cancerígenas. “O composto de rutênio que desenvolvemos e testamos é muito menos tóxico que os antitumorais com platina, mas é claro que nem todos os derivados de rutênio têm baixa toxicidade”, comenta Enzo Alessio, o coordenador desse estudo, relatado em 2004 na Current Topics in Medicinal Chemistry. Na Bulgária, um grupo encontrou um derivado de rutênio que combateu a leucemia em células humanas.

Cada grupo de pesquisa adota uma estrutura química básica, da qual derivam todos os compostos, do mesmo modo que a partir de um único chassi são feitos modelos de carros mais simples ou mais luxuosos. Nos compostos formulados pela equipe da USP, cujas propriedades foram descritas em cerca de 40 artigos publicados nos últimos dez anos, o rutênio ocupa o centro de um sólido imaginário de oito faces, em forma de duas pirâmides unidas pela base quadrada. Foi dessa plataforma atômica que se originou o PRuNO, até agora o exemplo mais generoso de doador de óxido nítrico, que age 10 mil vez mais rápido que outro, por enquanto o mais parcimonioso dos entregadores de óxido, o cyclamNO (é o mesmo cyclam com aquele nome imenso, mas agora sem o óxido nítrico ou NO).

“Podemos criar compostos intermediários que retardam ou aceleram a liberação de óxido nítrico, variando os ligantes”, diz Tfouni. Ligantes são as moléculas que formam o esqueleto externo desse sólido de oito faces. Os quatro vértices da base comum das duas pirâmides são formados por moléculas relativamente complexas, com grupos de dez a 40 átomos, como as multipiridinas, tetraminas, aminpolicarboxilatos ou salen, de acordo com a classe química a que pertencem. Já no alto de uma das pirâmides há ligantes mais simples – sulfito, fosfito, cloreto ou, simplesmente, água -, decisivos no controle da liberação de óxido nítrico, situado no outro extremo dessa estrutura.

Elétron fujão
Em colaboração com pesquisadores da Universidade do Arizona, da Universidade da Califórnia e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, os químicos da USP construíram suas substâncias de modo que o óxido nítrico, em laboratório, seja liberado quando recebe um feixe de luz com a energia adequada ou quando encontra um elétron solitário, a partícula elementar de carga elétrica negativa que orbita o núcleo atômico. Em seguida, segundo Tfouni, a posição que o óxido nítrico ocupava fica vazia e é tomada por outra molécula – geralmente água. Essa mesma estrutura, agora com uma molécula de água ocupando a vaga do óxido nítrico, mas com um elétron a menos, cumpre a função inversa e se torna um captador de óxido nítrico.

É uma união perfeita entre uma estrutura atômica com um elétron a menos e um gás constituído por um elétron que escapa facilmente. Por perder um elétron é que o óxido nítrico se torna muito reativo – com fome de elétron, digamos – e adere rapidamente a outras moléculas do organismo, a exemplo do ferro da hemoglobina, a proteína que distribui oxigênio às células do corpo. Franco e Tfouni aproveitaram justamente essa instabilidade do óxido nítrico para sintetizar seus compostos que funcionam como ímãs de maior ou menor intensidade: o óxido nítrico se aproxima, deixa escapar o elétron fujão e prende-se, ora de modo mais intenso, ora de modo mais tênue, ao íon de rutênio dessa estrutura, que está justamente à espera de um elétron – e assim esse óxido nítrico sai de circulação, ao menos temporariamente. “O óxido nítrico pode escapar de algumas estruturas e de outras não”, comenta Tfouni.

Para chegar a esses resultados, essa equipe de químicos da USP trabalha em média durante uma semana, preparando e acompanhando as reações entre os compostos iniciais, que são vermelhos, azuis, verdes ou amarelos, mas desbotam à medida que se combinam com o oxigênio e o nitrogênio do óxido nítrico. Só no final é que surgem os pós geralmente amarelo-claros ou marrom-avermelhados que liberam ou seqüestram óxido nítrico em poucos segundos. Mas calma, não terminou. Corre mais uma semana em testes e análises até se chegar à certeza de que os resultados das reações eram exatamente os esperados. “Se descobrirmos que o composto ficou impuro”, diz Tfouni, “temos de voltar tudo e recomeçar”. Se se trata de formulações novas, o trabalho é ainda maior.

Mas quais as chances reais desses compostos seguirem adiante, cumprirem todas as etapas e se tornarem, efetivamente, medicamentos? Franco, aos 60 anos, e Tfouni, aos 61, sabem que se trata de uma longa jornada, em vista da dificuldade de repassar os resultados da pesquisa acadêmica para as indústrias brasileiras do setor químico-farmacêutico, que não primam pela familiaridade com a pesquisa científica, que poderia ajudar a depender menos das importações. Em 2004, de acordo com um levantamento divulgado no início de março, acentuou-se o desequilíbrio da balança comercial da indústria farmacêutica, com exportações de US$ 351 milhões (25% mais que no ano anterior) e importações de U$ 1,8 bilhão (17% mais). A própria Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma), responsável por esse levantamento, reconhece que essa diferença só vai amenizar à medida que se ampliarem os investimentos em pesquisa e desenvolvimento.

Mesmo assim, o trabalho continua. No final do ano passado, Patrícia Zanichelli, da equipe de Franco, obteve as primeiras amostras de macromoléculas chamadas dendrímeros, com 27 estruturas de rutênio, ligantes e óxido nítrico repetidas, e de sílicas – ou areias – embebidas nos doadores e nos captadores de óxido nítrico, cuja distribuição no organismo seria assim mais controlada e dirigida apenas a alguns órgãos do corpo humano. Com essas areias especiais, desenvolvidas por Fabio Gorzoni Doro e Kleber Queiroz Ferreira, dois alunos de doutorado de Tfouni, pretende-se recobrir superfícies de aço inoxidável e assim aumentar a eficiência dos dispositivos conhecidos como stents, uma espécie de mola que mantém as artérias abertas e ajuda a evitar o infarto – cada um custa cerca de US$ 2 mil. Já existem stents recobertos com antibióticos, liberados durante uma ou duas semanas, mas não doadores de óxido nítrico de longa duração, como os químicos da USP desejam. “Queremos que esses compostos durem tanto quanto o próprio aço dos stents”, diz Tfouni. “É muito difícil, mas chegando perto já está bom.” Ele sabe que um bom aço inoxidável dura pelo menos 20 anos.

O Projeto
Reatividade térmica e fotoquímica de nitrosilo complexos de rutênio, conhecimento e controle da reatividade do óxido nítrico coordenado (nº 99/07109-9); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Douglas Wagner Franco – IQSC/USP; Investimento R$1.787.508,80 (FAPESP)

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