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Ficção

Café

Comecei a me afeiçoar a esse lugar no dia em que derrubei quase meia xícara de café sobre um dos meus cadernos. Quando terminei a última linha da décima folha, meu braço tremia tanto que acabei esbarrando na xícara e derrubando o café. O líquido – quase meia xícara de café! – cobriu as palavras e, quando eu tive certeza de que não conseguiria ler nada por baixo da mancha escura, até porque meia xícara de café não é pouca coisa, comecei a chorar. Na mesma hora, a moça do caixa veio me consolar: fazia questão de trazer para mim outra xícara de café. Aliás, eu não precisaria pagar de novo. O problema era o caderno, expliquei.

A garota pediu desculpas e disse que esse problema ela não tinha como resolver, já que vendiam café, café com leite, leite e até mesmo refrigerante, mas não cadernos. Não devia custar grande coisa, continuou, um caderno, só que talvez seja mais caro que uma xícara de café, ou meia, já que eu tinha tomado uma parte, possivelmente um pouco mais da metade, muito embora tenha sobrado café suficiente para cobrir a folha e deixar tudo completamente ilegível.

Se eu tivesse escrito a caneta, talvez conseguisse ler alguma coisa, já que o café, mesmo se for muito, quase meia xícara, costuma fazer contraste com a tinta azul. Finalmente ela compreendeu, mas mesmo assim, talvez porque fosse do caixa e não trabalhasse no balcão (e, portanto, não estava cansada, o que lhe dava mais energia para consolar os clientes, principalmente aqueles que derrubam meia xícara de café em cima do rascunho de sua tese de doutorado, motivo mais do que suficiente para tomar muito café, o que é um paradoxo, já que se tomasse menos café possivelmente haveria mais líquido na xícara e o estrago seria maior e talvez até cobrisse as anotações para as notas de rodapé, fato mais desesperador, porque banca alguma aceita uma tese de doutorado com menos de trezentas notas, não por nada, mas porque as notas demonstram o conhecimento bibliográfico indispensável para qualquer um que esteja querendo ostentar o título de doutor), o que a deixava mais disposta para consolar os clientes que, por qualquer motivo, derrubam quase meia xícara de café em cima de um caderno com dez folhas de anotações a lápis, sim, porque se fosse a caneta, a cor do café se misturaria ao azul da tinta e o efeito seria muito bonito: até mesmo as notas de rodapé ficariam elegantes, o que é um sinal valioso para a banca, principalmente porque isso, a elegância da nota de rodapé e não o contraste da cor do café com o azul da tinta da caneta, demonstra horas de estudo, o que é indispensável para qualquer um que deseje ostentar o título de doutor. Para não perder o fio, é importante lembrar que se aquela moça trabalhasse no balcão, possivelmente estaria cansada e sem nenhuma disposição para consolar os clientes que, por motivos variados, derrubam quase meia xícara de café sobre um caderno com dez folhas escritas a lápis.

Se estivessem a caneta, possivelmente a moça que trabalha no balcão também não se animaria a consolar o fulano, mas ocorre que o fulano, por sua vez, também não começaria a chorar, porque o café, mesmo que seja quase meia xícara, não esconde palavras escritas a caneta, pelo contrário, acaba tornando o tom do azul mais bonito. É que se o fulano, no caso eu, tivesse escrito a caneta o café não teria coberto as palavras e ele, muito possivelmente, não começaria a chorar, já que o conhecimento novo que é uma das principais exigências para uma tese de doutorado, além das seiscentas notas de rodapé, não seria destruído por causa de meia xícara de café que acabou virando porque o fulano, no caso eu mesmo, estava muito emocionado por ter finalmente escrito dez folhas com um conhecimento genuinamente novo, um dos pré-requisitos para a aprovação de uma tese de doutorado, além das novecentas notas de rodapé, que demonstrariam que o candidato tinha pleno domínio da bibliografia referente ao assunto da sua tese.

Só que como o fulano, ou, o que me dói muito ter que admitir, eu mesmo, tinha escrito a lápis e nada mais lhe restava do que chorar em cima do café derramado sobre o conhecimento novo que eu, ou melhor, o fulano, tinha acabado de perder. O que me afeiçoou a esse lugar não foi a atitude da garota que trabalha no caixa – eu tenho certeza de que se ela trabalhasse no balcão a coisa teria sido muito diferente, ainda que eu admita claramente que sua gentileza é rara nos dias de hoje: ninguém mais quer saber da tragédia dos outros, nem mesmo quando o fulano perde mil e duzentas notas de rodapé, praticamente uma livre-docência!

Eu sei que ninguém está a salvo de derrubar quase meia xícara de café em cima de dez páginas de sua (ou, no caso, minha) tese de doutorado. Aliás, pode até acontecer com a própria banca, bem no momento em que ela, a banca, e não a moça que trabalha no balcão (sim, porque se fosse a do caixa), vai lembrar o candidato de que o conhecimento novo, e não um amontoado sem nexo de notas de rodapé, só pode ser obtido a partir da combinação de determinados fatores diferentes na forma de um texto qualquer, por mais que ele, o texto qualquer e não o conhecimento novo, esteja embasado por mil e quinhentas notas de rodapé. Nesse momento, se o membro da banca não tiver escrito uma tese com mil e oitocentas notas de rodapé, ele pode vacilar, já que seu argumento será mais frágil e portanto sujeito à fácil refutação pelo candidato, e terminar derrubando meia xícara, ou mesmo uma inteira, sobre a tese. Evidentemente que nesse caso não há motivo para choro, já que o conhecimento novo não estará perdido, pois o membro da banca pode muito bem pedir emprestado para o colega de argüição (esse um pouquinho mais seguro, pois fez uma tese com duas mil e cem notas de rodapé) seu exemplar para continuar desenvolvendo o raciocínio.

Claro que daí em diante tudo ficará prejudicado, pois o candidato já não terá ânimo nenhum para ouvir as considerações do membro da banca, que sequer teve o cuidado de deixar a xícara de café longe do exemplar da tese, prevenção básica para qualquer um que sabe que não é todo texto que constitui um conhecimento novo, muito menos os que terminam manchados por quase meia xícara de café, mesmo que ela tenha sido derrubada por um professor que redigiu, à sua época, uma tese de doutorado com duas mil e quatrocentas notas de rodapé, o que demonstra indiscutivelmente um conhecimento novo, mas não a segurança para tomar direito um gole de café, até porque o colega de banca que vai falar logo a seguir escreveu uma tese, por sua vez, com duas mil e setecentas notas de rodapé, o que demonstra que seu conhecimento novo é mais genuíno que o do outro, coisa que naturalmente deixa todo mundo inseguro, a ponto de derrubar o café. A menos, é claro, que a pessoa tenha, ela mesma, escrito uma tese com três mil notas de rodapé. Mas aí é pedir demais.


Ricardo Lísias é escritor, autor de, entre outros, Duas praças (Editora Globo).

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