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Sociologia

Cada cabeça uma sentença

Referendo sobre armas pede debate de mentes desarmadas

O referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo para civis acontece neste mês, mas o dilema da decisão é bem mais antigo. “Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma as pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim?”, já se perguntava Hamlet. Mesmo que pesquisas, como a da Unesco (Mortes matadas por armas de fogo), revelem que há algo de podre no reino do Brasil, onde, entre 1979 e 2003, mais de 550 mil pessoas morreram vítimas de armas de fogo (índice de mortalidade que supera os óbitos no trânsito), a questão se apresenta como um palíndromo às avessas, em que cada cabeça tem sua sentença: mais armas, menos crimes; menos armas, mais crimes.

“No Brasil, vem ocorrendo um aumento de demanda por armas de fogo, pois a população buscou na arma uma resposta a uma solução de insegurança”, explica Maria Fernanda Tourinho, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP) e coordenadora da pesquisa Violência por armas de fogo no Brasil. “A proibição deve ser acompanhada de incentivo à redução da demanda por armas e não só a redução da oferta”, avisa. O estoque privado de armas de fogo no país é considerável: 15,1 milhões. Dessas, estima-se que 6,7 milhões estão registradas, 4,6 milhões estão na informalidade e 3,8 milhões no crime, afirma Pablo Dreyfus, coordenador do Projeto Controle de Armas Viva Rio/Iser.

Internamente, porém, o sucesso das empresas de armas teve um alto custo. “O Brasil consegue exterminar mais cidadãos pelo uso de armas de fogo do que muitos conflitos, como a Guerra do Golfo ou as várias intifadas”, revela Julio Jacobo Waiselfisz, autor do relatório da Unesco. Entre 1979 e 2003, as vítimas cresceram 461,8%, enquanto a população cresceu 51,8%: as principais causas de morte no Brasil são, em ordem: doenças do coração, cerebrovasculares e armas de fogo. Das 550 mil mortes, 44,1% foram de jovens entre 15 e 24 anos: de cada três jovens mortos, um foi por arma de fogo. O Brasil, com uma taxa de 21,6 óbitos em 100 mil habitantes, perde dos Estados Unidos, que, com a “cultura de armas”, tem uma taxa de 10,3 mortes em 100 mil habitantes.

Os números impressionam, mas o controle de armas tem eficácia? O relatório “Vidas poupadas”, dos ministérios da Saúde e da Justiça, avalia que sim. Os dados foram obtidos após o recolhimento de armas de fogo iniciado em 2004 (foram recebidas 450 mil armas). “A estratégia de desarmamento não só anulou a tendência anual de crescimento de 7,2% preexistente, mas também originou uma queda de 8,2% no número de óbitos registrados em 2003. A ação gerou uma redução de 15,4% nas mortes por armas de fogo, evitando, só em 2004, 5.563 mortes”, diz a pesquisa. Defensores da proibição são menos otimistas. “Devemos ter cautela com os indicadores do desarmamento. A redução da criminalidade é para longo prazo”, nota Fernanda.

Segundo ela, a proibição isolada é insuficiente. “É preciso agir nos determinantes da demanda, fazer com que a população se sinta segura, capacitar os policiais e bloquear o mercado ilegal de armas”. Eis um ponto importante. “As autoridades não sabem onde está metade das armas de fogo do país, nem quem as possui”, avalia Dreyfus. Assim, há uma divisão social sobre o desarmamento. “Os defensores de armas dizem que o ideal seria que as ‘pessoas de bem’ estivessem armadas e os bandidos não, e vêem uma inversão no processo, uma divisão entre ‘armas do bem’ e ‘armas do mal'”, o que é uma falácia, analisa Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo os antiproibição, o desarmamento eliminaria as “armas do bem”, sendo inócuo com as “armas do mal”. Para Cano, o ponto é o fluxo de armas do circuito legal para o ilegal. “99% das armas de fogo são legalmente produzidas e um terço das armas apreendidas na ilegalidade saiu do mercado legal”, diz a pesquisadora Josephine Bourgois.

Junte-se a isso o fato de que mais de 70% das armas apreendidas em 2002 eram produzidas no Brasil. “Hoje somos o único produtor latino-americano importante de armas de pequeno porte”, afirma Dreyfus. Assim, as armas são produzidas por indústrias conhecidas e não vale a tese de que criminosos usam armas importadas. “Só no Rio de Janeiro, entre 1951 e 2003, de cada três armas apreendidas na legalidade, uma tinha sido comprada por gente de ‘ficha limpa'”, observa Josephine. “Nesse Estado, a cada cinco horas uma arma legal é roubada e, em 27% dos casos, nos assaltos a residências. Em São Paulo, das 77 mil armas apreendidas em 1998, 71.400 foram roubadas e 5.500 extraviadas”, conta. “Uma sociedade que se arma para se defender pode estar armando seus agressores”, avisa Cano.

Ou, na ironia de Millôr, chegamos ao ponto em que “estão apreendendo com militares armas de uso exclusivo dos traficantes”. Cada militar ou PM tem direito a comprar livremente seis armas a cada dois anos, direto da indústria. “Daí a importância do Estatuto do Desarmamento, que, para além da questão do referendo, regula isso, pois, até então, os registros de armas das Forças Armadas e das polícias eram de controle restrito do Exército. Agora esses dados serão partilhados com a Polícia Federal, que vai poder, ao apreender uma arma do Estado, roubada ou vendida ilegalmente, descobrir o responsável”, diz Dreyfus. O pesquisador conta que a impunidade é tão grande que armas do Estado encontradas com bandidos às vezes estão com número de série e carimbos oficiais. “Armas adulteradas passarão por uma peritagem da PF, que pode detectar, mesmo com registros ‘raspados’, o número de série. O controle dessas armas no Ministério da Justiça vai minorar o problema”. O mesmo controle será feito em munições, cujos lotes serão numerados. “Daí o valor da aplicação da parte repressiva do estatuto, que prevê, enfim, penas pesadas para tráfico e venda ilegal”, diz. O volume de armas do Estado pegas com criminosos pode ser pequeno em quantidade (no Rio, de 50 mil armas, 60 eram do Exército e 900 da polícia), mas são as que têm alto poder de destruição. E nem tudo é só corrupção. Muitos policiais são mortos apenas pelas suas armas. Além disso, afirma Dreyfus, é preciso controlar os chamados estoques excedentes do Estado (armas velhas etc.), que são as que acabam nas mãos dos criminosos. É preciso não só discutir o referendo, mas conhecer o estatuto, pois ele tem mais mecanismos contra o crime do que sonha nossa vã filosofia.

E não será a primeira vez que o país fará uma legislação para controle de armas leves, embora a indústria doméstica de armas brasileira seja um fenômeno recente, nascido nos anos 1930 com a substituição de importações. No Sul e Sudeste, os primeiros produtores privados de armas foram imigrantes, como as empresas Boito, Rossi e a Fábrica Nacional de Cartuchos (hoje CBC) e, em 1937, a forja Taurus, atualmente uma das maiores produtoras mundiais de armas curtas. A primeira lei data de 1934, assinada por Getúlio Vargas, que apenas controlava a produção de armas e munições de guerra, deixando total liberdade para as armas de uso civil. Foi no esteio da Doutrina de Segurança Nacional que a indústria interna de armamentos cresceu, já que a indústria de defesa era vista pelos militares do pós-64 como catalisadora para o desenvolvimento econômico e tecnológico, bem como uma forma de estabelecer o poderio nacional. Os novos dirigentes logo editaram um decreto (1965) que dava primazia ao Exército na fiscalização das armas. “A ditadura militar concentrou o controle da circulação de armas no Executivo e incentivou abertamente a indústria armamentista nacional”, nota Carolina Dias, do Viva Rio/Iser. Bastava ser “cidadão idôneo” para poder ter um arsenal. Não havia preocupação em controlar as armas e seus donos, mas garantir a expansão da indústria.

Ator global
Com o fim da ditadura, quebrou-se a parceria entre Estado e indústria privada de armas, incluindo-se os subsídios antes concedidos a essas empresas. Ainda assim, em 1990, o Brasil estava estabelecido como um ator global médio no mercado internacional de armas de pequeno porte. Mas a legislação andava devagar: em 1980 promulgou-se a primeira norma nacional do registro de armas. Não existia, porém, um controle efetivo, o que ocorreu apenas em 1997 com a lei 9.437, que estabeleceu controle e cadastro de armas produzidas e importadas no Ministério da Justiça, criando também o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), setor da Polícia Federal que congregaria as informações sobre as armas de civis. O próximo passo veio em 2003 com o Estatuto do Desarmamento. “Com isso, o Brasil é o país com a legislação mais avançada de controle de armas de fogo e munição”, afirma Carolina Dias.

Se Hamlet falava em “palavras, palavras, palavras”, a questão do desarmamento é movida a “números, números, números”. Há pesquisas para todos os gostos: quais são as chances de ser atacado portando uma arma; quais as chances de morte quando alguém é atacado e se defende com uma arma; os homicidas são ou não pessoas conhecidas; muitas armas geram ou não mais crimes; suicídios e acidentes são ou não diretamente ligados ao número de armas. Em que estatísticas deve-se confiar? Uma pesquisa feita na Universidade de Yale revela que a posição de aceitar ou não o controle das armas depende muito pouco de se afogar nesses números e ainda menos se o cidadão é homem, mulher, branco ou negro, liberal ou conservador. “A posição dos indivíduos sobre o tema deriva basicamente de sua visão cultural. As pessoas vão aceitar ou rejeitar evidências empíricas dependendo se elas confirmam ou entram em conflito com seus valores culturais”, assegura Dan Kahan, autor do estudo e professor da Yale Law School.

Na base do survey está a teoria cultural do risco, ou seja, do quanto de risco aceitamos segundo nossos valores. A sociedade poderia então ser dividida, em três perfis: igualitários (a favor de ações coletivas que equalizem riqueza, status e poder), individualistas (que privilegiam autonomia individual e rejeitam interferência coletiva) e hierárquicos (para quem o Estado sabe o que faz e tem deferência pelas formas tradicionais de autoridade). Se o primeiro tipo apóia o controle de armas (pela aversão ao arquétipo individual do “macho” racista que usa armas e pela visão dessas como uma celebração da auto-suficiência individual em detrimento da solidariedade social), os dois outros são contra. Individualistas e hierárquicos vêem o controle, ou seja, a sociedade desarmando o cidadão para sua própria proteção, como um gesto de impotência individual. Ou, como diria o ator Clint Eastwood: “Sou a favor do controle de armas. Se há uma arma por perto, quero estar no controle dela.”

Sintomaticamente, na pesquisa, 79% das pessoas que favoreciam o controle de armas concordavam com a afirmação: “Mesmo que a posse irrestrita de armas reduzisse a criminalidade eu não quero viver numa sociedade onde as pessoas se armam”. E 87% dos que rejeitam o controle afirmaram que seria errado banir armas, mesmo que a sua proibição reduzisse a criminalidade. “Logo, fatos sobre armas não vão gerar um consenso sobre como e se regular a posse de armas por civis. A visão que cada um tem sobre o que é uma boa sociedade vai modificar explicitamente a sua avaliação dos riscos implícitos no debate sobre as armas”, diz Kahan. Assim, segundo o estudo, tudo depende da visão pessoal que se tem sobre os riscos de se ter ou não armas. O debate ainda é a melhor arma. “Em vez de ouvir radicais de um lado ou outro, ou de ser engolido pelas estatísticas, que por si têm grande valor, a melhor questão a se colocar é ‘em que tipo de sociedade eu prefiro viver'”, aconselha o pesquisador.

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