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Genética

Falsa majestade

Genes explicam mistério de abelhas rainhas que não conseguem se reproduzir

Operária do gênero Melipona quadrifasciata colhendo néctar: origem genética da divisão de castasMARILDA CORTOPASSI LAURINOA vida social das abelhas, como se sabe, depende da formação de duas castas do sexo feminino, as rainhas e as operárias. Esta distinção geralmente ocorre devido ao tipo de alimentação oferecido às larvas. O caso típico é o da Apis mellifera, da classe das abelhas com ferrão, a grande fornecedora de mel, cera e própolis. Algumas poucas eleitas são brindadas durante toda a fase larval com geléia real, superalimento composto por vitaminas, ácidos orgânicos essenciais e compostos protéicos. Dessa forma, tornam-se rainhas. Vivem até cinco anos e chegam a pôr até 2 mil ovos por dia. As demais recebem a geléia real só nos primeiros três dias de existência. Tornam-se operárias, vivem bem menos – algo como  45 dias – e passam a curta existência assoberbadas por tarefas compartilhadas na colméia. As abelhas sem ferrão, nativas do Brasil, têm características sociais similares, mas apresentam diferenças na forma como a cria é alimentada. As operárias preparam as células de cria de modo peculiar. As futuras rainhas são brindadas com 2,5 a 4 vezes mais alimentos do que as futuras operárias.

A grande exceção à regra são as abelhas sem ferrão do gênero Melipona, encontradas em todos os biomas neotropicais. Nelas, todas as células de cria têm tamanho idêntico, assim como a quantidade de alimento é semelhante. Há quase um século a ciência brasileira tenta desvendar essa particularidade. Em 1903, o brasileiro Helmut von Ihering observou que havia um excesso de rainhas na cria das melíponas – na razão de uma rainha para cada três operárias. No final dos anos 1940, o geneticista Warwick E. Kerr teorizou um modelo de genética mendeliana sugerindo que a razão observada nas castas poderia ter uma base genética. Mas isso nunca pôde ser devidamente comprovado, porque a oferta de alimentos também parecia ter um papel no desenvolvimento dessas abelhas.

Quando faltava comida na colméia, o número de rainhas na cria diminuía. E, conforme observou na década de 1970 o pesquisador Lúcio Antônio de Oliveira Campos, da Universidade Federal de Viçosa, era possível produzir uma quantidade ainda maior de rainhas quando as larvas eram tratadas com hormônio juvenil sintético. Esse hormônio típico de insetos é produzido por glândulas associadas ao cérebro. Ainda assim, embora tivessem aparência de rainhas, a maioria delas não conseguia reproduzir-se – o que só fez aumentar o enigma.

Pois esse mistério de um século começa a se desfazer com a ajuda da biologia molecular. A pesquisadora Carla Cristina Judice Maria debruçou-se sobre a Melipona quadrifasciata em sua tese de doutoramento no Departamento de Genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), orientada por Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp. Seu interesse, a princípio, resumia-se a comparar a programação dos genomas de rainhas e operárias de Melipona e de comparar o seu padrão de expressão gênica com as castas de Apis mellifera.  Ao todo, foram anotados 1.278 ESTs, fragmentos de genes ativos que, em inglês, são denominados Expressed Sequence Tags. Esses pedaços servem para anotar genes que carregam a receita usada pelas células para fabricar suas proteínas. Ao validar os resultados, a pesquisadora resolveu não somente quantificar os níveis de expressão gênica para rainhas e operárias criadas naturalmente, mas incluiu também um outro grupo de controle. Decidiu investigar rainhas produzidas por aplicação do hormônio juvenil sintético.

Derperdício
A expressão dos genes nos três grupos evidenciou a possível origem do problema das rainhas induzidas por hormônio terem dificuldades em formar colônias. Embora tivessem aparência nobre, essas rainhas artificiais apresentavam genes ativos com uma configuração mais próxima das operárias. “As operárias tratadas com hormônio juvenil conseguiam mimetizar o sistema endócrino das rainhas, mas sua programação genética permanecia semelhante à das operárias”, diz Gonçalo Amarante.

Verdadeiras ou artificiais, as rainhas do gênero Melipona quadrifasciata não têm exatamente uma vida folgada. Como naturalmente há rainhas demais, a sina de grande parte delas é trágica. A maioria é morta pelas operárias alguns dias após a sua emergência das células de cria. São poucas as rainhas virgens que partem para o vôo nupcial e se acasalam, geralmente com um só macho. E mesmo essas rainhas dependem de uma circunstância rara para sobreviver, a criação de uma nova colônia separada da colônia-mãe. Apenas poucas conseguem reinar em nova colônia. Esse desperdício talvez explique por que as colméias da Melipona quadrifasciata sejam bem mais modestas em tamanho que as de outras abelhas sem ferrão.

Enquanto Gonçalo Amarante, da Unicamp, acompanhou a busca dos genes expressos, o pesquisador Klaus Hartfelder, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, deu suporte à doutoranda Carla no campo da entomologia, ramo da zoologia que estuda os insetos. A descoberta de Carla, que se atém aos genes ativos em determinadas fases de desenvolvimento, pode ser associada agora aos estudos em andamento na USP em Ribeirão Preto que procuram estabelecer marcadores genéticos para finalmente comprovar a tese de Warwick Kerr. O interesse dos pesquisadores brasileiros nesse campo transcende o desafio de desvendar o enigma das castas em Melipona quadrifasciata.

A curiosidade consiste em descobrir as bases moleculares do desenvolvimento e do comportamento animal de modo geral. A tese de Carla rastreou a expressão de um conjunto de genes, os quais as abelhas compartilham com outras espécies.

Um dos genes foi o dunce, com maior expressão nas operárias e nas rainhas artificiais do que nas rainhas. O mesmo gene é encontrado em moscas drosófilas e, nelas, está ligado ao comportamento cooperativo e ao acasalamento. “Provavelmente, comportamentos comuns a várias espécies têm uma base molecular comum”, afirma Gonçalo Amarante.

O achado ganha importância porque recentemente se observou que a Melipona quadrifasciata não é um caso isolado na determinação genética da formação de rainhas e operárias. Nos últimos cinco anos pelo menos quatro trabalhos internacionais evidenciaram que isso ocorre também em certos tipos de formigas. A iminente divulgação do genoma completo da Apis mellifera, a abelha do mel, deverá trazer mais elementos que permitam comparar diferentes espécies. “A Melipona é bom modelo para comparar com a Apis”, diz Klaus Hartfelder. “Esse tipo de pesquisa é importante para tirar conclusões sobre passos evolutivos que geraram sistemas sociais tão complexos como os de abelhas”, afirma.

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