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Literatura

Independência ou morte

Escritora Ruth Rocha valoriza a criança com senso crítico

Ruth Rocha: "criança precisa aprender o valor da liberdade e do respeito"

MIGUEL BOYAYANRuth Rocha: “criança precisa aprender o valor da liberdade e do respeito”MIGUEL BOYAYAN

“Emília começou uma feia boneca de pano, dessas que nas quitandas do interior custavam 200 réis. Mas rapidamente evoluiu, e evoluiu cabritamente – cabritinho novo – aos pinotes. E foi adquirindo tanta independência que, não sei em que livro, quando lhe perguntam: ‘Mas que você é, afinal de contas, Emília?’, ela respondeu de queixinho empinado: ‘Sou a Independência ou Morte’. E é. Tão independente que nem eu, seu pai, consigo dominá-la”, desabafou Monteiro Lobato em carta a um amigo. Pois é justamente essa “ferinha” a grande inspiração da escritora Ruth Rocha, autora de 130 livros infantis que já venderam mais de 12 milhões de exemplares e foram traduzidos para 23 línguas, entre as quais hindu, chinês e grego. Tudo isso distribuído em 30 anos de carreira de muita coerência. “A Emília me influenciou para o resto da vida. Ela representa a força da irreverência, do humor, da independência. Quando escrevo histórias, os valores que passo para as crianças são meus valores. Tenho raiva de gente autoritária e prezo a independência, a justiça, a liberdade, o respeito pela criança e pelo país”, conta.

Daí a sua felicidade em poder lembrar que, “mandada pela Emília”, não se contentou com o final de seu maior sucesso,Marcelo marmelo martelo, em nome dessa coerência. “Ao terminar a história, ia fazer o personagem desistir, mas voltei atrás, pois pensei que não podia acabar sem dar um toque de esperança para os leitores.” Outro grande prazer dessa “escritora espivetada” é, após ter total convicção do que escreveu, sentir os efeitos sobre as crianças. “Um dia, uma garotinha que tinha lido O reizinho mandão me encontrou e falou: ‘Eu era muito mandona, mas depois do livro eu mudei’. É muito importante a criança aprender o valor do respeito, da liberdade”, avisa. Paulistana, cresceu na Vila Mariana ouvindo as histórias que lhe contava o avô, Ioiô, que ensinou à pequena Ruth o prazer de ler Machado de Assis, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles e seu ídolo maior, Lobato. “Eu era uma menina introvertida, tímida, leitora compulsiva; mas, na intimidade, era expansiva, alegre e engraçada”, confessa. Por um “acaso do destino”, seu primeiro emprego foi na biblioteca do Colégio Rio Branco, em São Paulo, onde o paraíso estava ao alcance de suas mãos, nas estantes. Leu e não parou: hoje tem uma biblioteca de 4 mil volumes. Tem também quatro filhos e 18 netos.

"Não acho que as crianças sejam tão felizes como os adultos acham"

MIGUEL BOYAYAN“Não acho que as crianças sejam tão felizes como os adultos acham”MIGUEL BOYAYAN

A posição ocupada não parecia condizer com a recém-formada em sociologia e política pela Universidade de São Paulo (USP), mas foi determinante na escolha da sua carreira. Como vivia cercada por crianças, algo raro numa bibliotecária, a diretoria da escola convidou Ruth para ser orientadora pedagógica, que levou a jovem de volta para a academia, onde fez pós-graduação em orientação educacional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), exercendo a nova profissão por 15 anos.

O tempo foi precioso para a futura escritora, pois ensinou a ela a efetivamente entender as crianças a partir da perspectiva dos pequenos, e não do alto, como adulta. “Esse contato foi fundamental para eu entender as crianças. Minha linguagem se prende a um sentimento de grande solidariedade por elas. Acho mesmo que, embora se venda por aí a idéia de que são felizes (e, efetivamente, passam por momentos de grande alegria), sinto que elas não são tão felizes assim como os adultos pensam”, explica. “Elas se sentem impotentes. Daí a identificação grande que sinto com as crianças, pois quando era pequena sentia um forte desejo de liberdade, mas me sentia incapaz e, logo, infeliz. Isso, creio, acontece com as crianças também”, avalia. Assim o cuidado com o seu trabalho. “Tudo o que é feito para crianças demanda cuidado, embora a mensagem não precise ser transmitida de forma tão explícita. O autor tem de ter um veículo, ou seja, uma história boa e verossímil. Feito isso, ele pode tratar de qualquer tema”, avisa. Não sem razão, sua escola foi a imprensa.

Em 1967 começou a escrever artigos sobre educação para a revista Claudia e foi uma das criadoras da antológica Recreio, onde publicou, a partir de 1969, suas primeiras histórias. Foi promovida, dentro da Editora Abril, a diretora da divisão de infanto-juvenis e, em 1976, lançou Marcelo marmelo martelo, sobre um menino que gosta de inventar nomes para as coisas. Quando transformado em livro, vendeu mais de 1 milhão de exemplares e continua um hit da seção de infantis das livrarias. Em 1978, outro sucesso, O reizinho mandão. “Com sua linguagem lúdica, sua ironia e seu senso crítico, Ruth passa valores seriíssimos às crianças. Suas histórias abandonam a moral dos contos antigos e trazem verdadeiras lições de vida”, elogia a especialista em literatura infantil Nelly Novaes Coelho, da USP. “O trabalho de Ruth é um dos mais relevantes da literatura infantil no Brasil. Quando a criança lê seu livro, repensa situações que ocorrem na vida real e passa a reagir de forma mais crítica a partir dos novos valores apresentados por ela”, faz eco outra especialista do gênero, a professora Marisa Lajolo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Afinal, quantos autores podem se “gabar” de ter conseguido adaptar para a garotada a Odisséia, de Homero, fruto de três anos de pesquisa, e que vendeu 6 mil exemplares em 15 dias?

Livro2MIGUEL BOYAYANTanto cuidado com sua obra rendeu-lhe quatro prêmios Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Monteiro Lobato, da Academia Brasileira de Letras, bem como teve seu nome incluído várias vezes para o Hans Christian Andersen, o “Nobel dos infantis”. Em especial, o que chama a atenção na literatura de Ruth é seu manejo impecável da linguagem, acertado na medida para seus leitores. “Sua vasta produção orquestra um diálogo interno constante, o que possibilita que seus livros sempre se renovem e se enriqueçam. O humor, por exemplo, dessacraliza o texto, patrocinando um olhar maroto ao tema”, nota Marisa Lajolo. Para a pesquisadora, Ruth traz a realidade de seu tempo para dentro da obra e, depois de deixar o leitor sorrindo, devolve a ele essa realidade. “Mas, na operação de rir do narrado, o leitor já está crítico e lúcido. Transformado pela leitura divertida”, analisa.

Isso está presente em Leila menina, O jacaré preguiçoso, A menina que não era maluquinha, Mil pássaros pelo céu, na série das Aventuras de Alvinho, em Sapo vira rei, vira sapo e nos seus muitos outros originais, bem como nas histórias que reconta, incluindo-se mesmo a Flauta mágica, de Mozart, e os Músicos de Bremen, dos irmãos Grimm. Com toda essa experiência, Ruth dá um conselho para os pais comprarem livros para seus filhos, tomando cuidado com a grande “quantidade de porcaria que está no mercado”. “Leiam com senso crítico. História para criança não é bobagem, pois se está formando uma mente. É preciso inspirar as crianças a ir mais longe, a criticar o que está errado. Há, por aí, muita história sem pé nem cabeça, livros que ensinam conformismo. Tomem cuidado com isso. É o futuro de seus filhos que está nessas páginas. Mas como ter adultos capazes de escolher livros com sabedoria se eles mesmos não lêem?” Boa pergunta e que merece uma reflexão dos pais. Ruth já sabe a sua resposta. Perguntada se a Ruth criança gostaria dos livros da escritora Ruth Rocha, não titubeia. “Adoraria, pois, quando jovem, gostava desse estilo lobatiano, de histórias engraçadas e assertivas”, diz. “Minha literatura não traiu, não.” Ninguém duvida. E quem souber, que conte outra.

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