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Políticas Públicas

Pela via láctea

Orientação de agentes da saúde triplica índice de amamentação exclusiva de bebês

A pediatra Sonia Bechara Coutinho amamentou seus três filhos por pouco tempo. Foi contratada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1978, logo após o nascimento de Renata, a mais velha, e não teve direito à licença-maternidade. Quando nasceram os outros dois, também não conseguiu alimentá-los exclusivamente no peito por mais de duas semanas, por causa do trabalho no hospital e na universidade. Mas a vivência abreviada desse gesto, símbolo da maternidade perpetuado nas telas renascentistas de Madonnas com seus bambini, não reduziu sua motivação em investigar os benefícios do aleitamento materno para os recém-nascidos. Também não abrandou a busca de formas de aumentar a proporção bastante baixa – apenas 14% – de brasileiras que oferecem a seus filhos apenas o leite materno durante os primeiros 6 meses de vida, como orienta a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Após quase três décadas de procura, Sonia chegou a uma fórmula simples e barata de estimular o aleitamento:  a orientação de agentes comunitários da saúde em visitas domiciliares às mães de recém-nascidos. O modelo é semelhante ao adotado pelo programa de combate à desnutrição e à mortalidade infantil da Pastoral da Criança, organização social ligada à Igreja Católica. O programa da UFPE foi implantado experimentalmente durante dois anos em quatro municípios (Palmares, Joaquim Nabuco, Catende e Água Preta) da Zona da Mata, no interior de Pernambuco, uma das mais pobres regiões do país. Ali, de cada grupo de mil crianças, 77 morrem antes de completar 5 anos de vida. O programa revelou-se um sucesso: elevou de 13% para 45% a proporção de mulheres que alimentam os filhos exclusivamente no peito até o sexto mês de vida, segundo artigo publicado recentemente na revista Lancet.

A divulgação desses resultados representa mais que o reconhecimento internacional ao programa: é a consagração do modelo de combate à desnutrição infantil que a Pastoral da Criança desenvolve no país há quase 20 anos. Nos 3.921 municípios brasileiros em que atua, em média, 76% das mães amamentam seus filhos exclusivamente no peito até o quarto mês de vida, índice muito superior à média do país. “A principal diferença é que na Pastoral o trabalho é feito por voluntários”, diz Nelson Arns Neumann, coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança e filho de sua fundadora, a médica sanitarista Zilda Arns Neumann.

Os dados da Pastoral e os da equipe da UFPE comprovam ainda que salvar a vida de recém-nascidos não exige orçamento polpudo: o essencial é divulgar a importância do aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida do bebê.
Sonia treinou os profissionais da saúde das três maternidades para darem as primeiras orientações sobre aleitamento materno logo após o parto. Como as mães permanecem apenas de dois a três dias internadas, Sonia preparou também cinco moradoras da região para atuarem como agentes comunitárias da saúde e visitar periodicamente as 175 mulheres que haviam sido selecionadas para integrar o estudo.

Nas dez visitas feitas a cada uma das mães as agentes apresentavam noções de aleitamento que constam de uma cartilha de 40 páginas desenvolvida pela equipe da UFPE. Seis meses mais tarde, depois de quase 2 mil visitas, 45% das mães continuavam a alimentar seus filhos apenas com leite materno. No grupo de controle, formado por 175 mulheres da região que haviam tido bebê no mesmo período, mas não receberam as visitas educativas, esse índice foi de apenas 13%.

“Sem o apoio de Salvina, a agente comunitária da saúde que me visitava, talvez eu não tivesse tido paciência para amamentar minha filha por um ano e nove meses”, diz a vendedora Girlaine Patrícia Félix Lins, que participou do estudo em 2001 quando nasceu sua filha, Ranyele.

Concluído o trabalho em Palmares, a equipe da UFPE obteve um financiamento de cerca de R$ 100 mil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do programa Criança Esperança, da Rede Globo, para treinar agentes comunitários de dois dos seis distritos da saúde de Recife. De lá pra cá, 692 agentes da saúde já receberam habilitação para orientar o aleitamento materno. Um levantamento preliminar feito com 200 famílias impressiona: a taxa de aleitamento exclusivo até o sexto mês de vida alcançou 32% – índice quatro vezes maior que o observado anteriormente (8%).

“Essa é uma forma barata de salvar vidas”, afirma Sonia Coutinho, da UFPE. A capacitação de cada agente sai em média por R$ 150 e poderia ser facilmente expandida para outras cidades, valendo-se da rede de 204 mil agentes comunitários do Programa de Saúde da Família, do Ministério da Saúde, espalhados por 94% dos municípios brasileiros. Em um estudo publicado em 2003 na Lancet, Gareth Jones, do Unicef, estima que haveria uma redução de 13% na mortalidade infantil no mundo se nove mães de cada grupo de dez dessem a seus filhos apenas leite materno até o quinto mês de vida. Em números absolutos, significa evitar anualmente a morte de 1,3 milhão de crianças menores de 5 anos por doenças infecciosas como diarréias e pneumonias.

Embora se conheçam os benefícios do aleitamento materno exclusivo – tanto para a criança, que desenvolve melhor as defesas do organismo e corre menos risco de se tornar obesa, como para a mãe, que apresenta menor probabilidade de desenvolver câncer de mama -, falta levar esse conhecimento às comunidades e às famílias pobres, segundo Nelson Arns Neumann, da Pastoral da Criança. Além disso, é preciso combater crenças arraigadas na população, como a de que o leite materno é fraco ou que os chás ajudam a limpar o intestino do bebê. Na realidade, o uso de água contaminada na preparação de chás e sucos é uma das principais causas de infecções em recém-nascidos.

Três levantamentos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a situação no país está aquém da ideal: 60% das mães amamentam durante o primeiro mês de vida, mas só 14% delas oferecem aos filhos exclusivamente leite materno até o sexto mês.

Por trás desses índices há mais do que desinformação. Na primeira metade do século passado, as campanhas de publicidade da indústria de produtos lácteos enalteciam as facilidades proporcionadas pelo leite em pó, como a participação mais ativa dos maridos na amamentação e a possibilidade de as mulheres deixarem a alimentação dos filhos aos cuidados das babás. Até a década de 1970 os próprios pediatras não achavam, e ainda hoje muitos não acham, necessário o aleitamento materno exclusivo durante o primeiro semestre de vida. Muitas vezes influenciados por campanhas da indústria alimentícia, recomendavam às mulheres complementar a dieta das crianças com alguns tipos de leite em pó antes mesmo dos 6 meses, medida hoje vista como condenável.

A preocupação com o aumento da mortalidade infantil entre os recém-nascidos levou a OMS a elaborar em 1981 o Código Internacional de Marketing dos Substitutos do Leite Materno e o Brasil a criar a Norma Brasileira para a Comercialização de Alimentos para Lactentes, em 1988. O objetivo é inibir propagandas consideradas antiéticas, como a distribuição de amostras grátis a médicos e nutricionistas, além da concessão de estímulos materiais ou financeiros aos profissionais da saúde. Mas nem sempre conseguem. Em um levantamento com 90 profissionais da saúde de 30 cidades brasileiras, Marina Ferreira Rea e Tereza Setsuko Toma,  do Instituto de Saúde de São Paulo, constataram que esse comportamento antiético ainda prevalecia.

Outro fator ajuda a compreender a falta de estímulo ao aleitamento. “A primeira recomendação internacional de amamentação exclusiva baseada em estudos científicos, a Declaração Innocenti, surgiu em 1990”, explica Marina. Um dos trabalhos que embasaram essa recomendação foi desenvolvido em Pelotas, no Rio Grande do Sul,  pelo epidemiologista César Victora, da Universidade Federal de Pelotas. Coordenador do maior e mais longo estudo de acompanhamento de uma população feito nos países em desenvolvimento – desde 1982 sua equipe avalia a saúde de 6 mil pessoas -, Victora identificou evidências de que o aleitamento materno exclusivo protege os bebês. Crianças que recebiam outros tipos de leite apresentavam um risco quatro vezes maior de morrer em conseqüência de diarréia e 1,6 vez maior de morte por pneumonia, em comparação com as alimentadas apenas no peito, segundo os resultados publicados em 1987 na Lancet.

O mecanismo pelo qual o leite materno previne a ocorrência de diarréias foi investigado nos últimos anos na Universidade de São Paulo (USP) pelas equipes da pediatra Magda Carneiro-Sampaio e do microbiologista Luiz Rachid Trabulsi, morto em maio de 2005. Tanto o leite produzido nos primeiros dias após o parto – o colostro – quanto o leite maduro são ricos em imunoglobulina A, anticorpo que impede a bactéria Escherichia coli, uma das principais causadoras da diarréia, de aderir às paredes do intestino e ali se proliferar. A partir de uma proteína usada pela E. coli para aderir às células do intestino – a intimina -, os pesquisadores  desenvolveram uma vacina antidiarréica oral que se encontra em fase inicial de testes em humanos.

Em colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina e da USP, Marly Vannuchi, Carlos Augusto Monteiro e Marina Rea compararam o número de mulheres que alimentavam seus filhos exclusivamente no peito antes e depois da implantação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança em três maternidades de Londrina, no Paraná. O título de Hospital Amigo da Criança é concedido às maternidades que seguem os dez passos pró-aleitamento materno.

Durante a internação no hospital, a proporção de mães que alimentavam os bebês exclusivamente no peito subiu de 2% em 1994, antes da implantação do programa, para 42% em 1998. Pelo menos metade das mães deu a suas crianças apenas leite materno durante 45 dias em 1998, enquanto essa mesma proporção de mulheres amamentava por apenas 12 dias quatro anos antes. Em Palmares, Neusa Marques, da UFPE, havia observado resultados ainda mais insatisfatórios antes do início do programa de visitas às mães de recém-nascidos. Das 364 mulheres entrevistadas, nenhuma havia dado exclusivamente leite materno a seu bebê depois de deixar o hospital. Divulgado em 2001 na Pediatrics, esse trabalho mostra ainda que, na primeira semana em casa, 80% das mulheres ofereciam água ou chá aos recém-nascidos e 56% permitiam o uso de chupeta.

“O treinamento oferecido aos profissionais da maternidade é importante, mas não basta”, comenta Sonia Coutinho. “Para manter o aleitamento exclusivo por mais tempo, é preciso investir no apoio domiciliar.” E esse apoio não deve se restringir à orientação de como segurar o bebê ou quando amamentá-lo. “Também é preciso ter disposição para ouvir as dúvidas e os medos das mães”, afirma a psicanalista Regina Orth de Aragão, presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê. Depois do nascimento vêm as dúvidas. “Muitas mães têm medo de não conseguir amamentar”, diz Regina. “Se não conseguem, podem sentir culpa ou achar que não são boas mães.” “A amamentação favorece um bom desenvolvimento psíquico da criança”, reforça o pediatra e psiquiatra Wagner Ranña, professor do Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto Sedes Sapientae.

Açúcar em dobro
O certo é que o leite materno é o melhor alimento para o recém-nascido do ponto de vista bioquímico e fisiológico. O leite humano contém vitaminas, minerais e proteínas em níveis adequados para suprir totalmente as necessidades nutricionais da criança até o sexto mês de vida. Em sua composição há quase o dobro de açúcares e metade das proteínas do leite de vaca, além de uma enzima chamada lipase, que ajuda a digerir as gorduras. São os anticorpos que o bebê consome por meio do leite materno que lhe dão proteção imunológica, enquanto seu sistema de defesa não amadurece.

Em parceria com a equipe de Ana Maria Segall Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marina Rea analisou a quantidade de calorias ingeridas por 118 crianças com menos de 1 ano sob quatro regimes de alimentação: o primeiro grupo recebeu só leite materno; o segundo tomava leite materno, água e chás; o terceiro bebia leite materno, outros tipos de leite, água, chás, sucos e alimentos sólidos; e o quarto consumia apenas outros tipos de leite, água, chás, sucos e outros alimentos. Constataram que apenas os bebês alimentados exclusivamente com leite materno recebiam a quantidade de calorias preconizada pela OMS para os países em desenvolvimento. Os demais ingeriam de 30% a 50% mais calorias que o indicado, aumentando o risco de desenvolver obesidade e doenças crônico-degenerativas ao longo da vida.

Esse perfil de consumo de calorias é provavelmente o responsável pela diferença de crescimento entre as crianças que recebem apenas leite materno até o sexto mês de idade e as alimentadas com leite em pó desde o nascimento. Victora constatou que entre as crianças nascidas em Pelotas, em 1993, as que tomaram apenas leite materno cresceram e ganharam peso mais rapidamente até por volta do terceiro mês. A partir daí, passam a se desenvolver com menor velocidade, ainda que saudáveis.

Como esse padrão de crescimento é diferente do daquelas crianças que tomam mamadeira, até bem pouco tempo atrás se acreditava que o leite materno fosse insuficiente para o desenvolvimento do recém-nascido – hoje, diferentemente, se acredita que os bebês que tomam mamadeira crescem mais rápido porque consomem mais calorias que o recomendado. Atualmente Victora trabalha na produção de uma nova curva do crescimento infantil que deve ser divulgada este ano pela OMS e se tornar um novo padrão para pediatras do mundo todo.

O crescimento inicial mais lento proporcionado pelo leite materno não inviabiliza, porém, sua indicação para os recém-nascidos, até mesmo os prematuros. Não se sabe a razão, mas a composição do leite materno parece produzir efeitos benéficos sobre o desenvolvimento que duram a vida toda. Recentemente a equipe de Victora comparou o rendimento escolar de 6 mil crianças nascidas em Pelotas em 1982 – cerca de 60% delas haviam sido alimentadas com leite materno e 30% com mamadeira. Divulgados em novembro na Acta Pediatrica, os resultados mostram que quem só recebeu leite materno até os 6 meses de idade chegou aos 18 anos com quase um ano a mais de estudo do que os outros adolescentes, independentemente do nível socioeconômico da família ou do grau de escolaridade dos pais.

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