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Resenhas

E o sertão virou favela

Apesar dos novos acontecimentos, dogmas permanecem

Foi como se Euclides da Cunha, sem querer, tivesse virado, com seu livro, o terrível canhão, a “Matadeira”, dos casebres de Canudos para os morros cariocas. Ainda que escrito depois da “tomada” do morro da Providência (logo apelidado de morro da Favella) por soldados da campanha contra o Conselheiro, que lá se instalaram para pressionar o governo a pagar seus soldos, Os sertões nortearam (e ainda parecem nortear) a visão do Estado e da sociedade sobre a favela carioca. Daí a sabedoria do título do livro de Lícia do Prado Valladares, A invenção da favela. Ela mesma chama a atenção para isso: “Inventaram a favela? Mas como pode ser isso se hoje ela é mais do que concreta, o seu número já corresponde a 752 aglomerados e 18,7% da população do município do Rio reside nessas áreas, que crescem mais do que a cidade?”. Boa questão a que ela dá uma boa resposta ao mostrar como a favela foi sendo “descoberta” pelos vários atores sociais.

A base, no entanto, foi mesmo a obra de Euclides e a sua dualidade entre “litoral e sertão”, que passa a ser traduzida, na capital federal, como “cidade versus favela”. Com essa revelação, o foco higienista das autoridades “modernas e progressistas” da recente República sai dos cortiços para a favela. “Para ela se transfere o postulado do meio como condicionador do comportamento humano, persistindo a percepção das camadas pobres como responsáveis pelo seu destino e pelos males da cidade”, escreve Lícia. Como a utopia milenarista do Conselheiro, a favela passa a ser associada sempre a um morro com posição estratégica, “cidadela de miseráveis”, um lugar onde o Estado não existe e um chefe controlava a “comunidade”. O sertão não tinha virado mar. Tinha virado favela.

Para a República positivista aquilo era o oposto da civilização que se desejava, era uma “lepra estética”, um mundo antigo e bárbaro do qual é preciso se afastar para chegar à modernidade. A favela é descoberta e logo convertida em problema. Pouco importava se, no período entre 1890 e 1906, o Rio crescia numa progressão geométrica de 2,8%, enquanto o total de moradias só aumentava à taxa fixa de 1% ao ano. O populismo varguista muda um pouco esse estado de coisas, nem sempre para melhor. Embora reconhecendo que era preciso administrar a favela, e não apenas erradicá-la, os interventores de Vargas plantam a semente da ligação entre votos e favores: “O toma uma bica lá, e me dá um voto aqui” que ainda hoje permanece no Rio. Mas apesar das (in)certezas sobre o que fazer, o primeiro recenseamento só ocorreu 50 anos após o nascimento da primeira favela. O estudo feito em 1947, no entanto, mantinha o mesmo ranço conservador do início do século. Só em 1950 o IBGE trará um novo retrato das favelas, onde haveria “uma população ativa, trabalhadora”, na contramão da tese da “vagabundagem”. O estudo também revelou que ter favela não era um privilégio carioca, mas nacional.

Vai ser, no entanto, uma pesquisa encomendada, em 1960, pelo jornal O Estado de S.Paulo que mudará a percepção sobre os favelados. Essa nova avaliação permitiu a entrada de novos personagens, que nela tentam intervir, da Igreja ao Peace Corps americano. Os dogmas, porém, permaneceram, apesar dos novos conhecimentos. Para a autora, interessa a muitos grupos que isso continue: às autoridades, para lidar com a favela como categoria única, de soluções únicas e impossíveis; aos líderes de associações da favela, que continuam a lucrar com a visão da favela como “antro de drogas e miséria”, ao contrário do real. Pois hoje, diz Lícia, há nas favelas uma estrutura econômica que nem é sinônimo de pobreza. “Se deixarmos de confundir os processos observados na favela com os processos sociais causados pela favela, será possível compreender fenômenos que, apesar de existirem na favela, também existem em outros lugares.”

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