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Física

Colméias de carbono

Cinco séculos após sua descoberta, a grafite surpreende os físicos com propriedades elétricas e magnéticas incomuns

Debruçado sobre uma bancada de fórmica branca, o físico peruano Juan Medina Pantoja cola uma fita adesiva em uma das faces de um bloco prateado quadrado menor que a unha do polegar. O material entre seus dedos é uma amostra de grafite ultrapura, que apenas sob certas condições comporta-se como metal. Produzida a temperaturas altíssimas, próximas às encontradas nas regiões mais profundas do planeta, essa é a grafite pirolítica altamente orientada, assim chamada por causa de sua estrutura: os átomos de carbono arranjam-se em hexágonos regulares como os favos de uma colméia e formam camadas com um átomo de espessura, as folhas de grafeno, que se sobrepõem umas às outras.

Camadas mais finas
Medina puxa lentamente a fita e descola uma película de grafite com umas poucas camadas de grafeno. Em seguida, cola essa amostra entre duas lâminas de vidro que secarão sob uma luz muito forte. Foi mais ou menos assim, no início deste ano, que ele verificou que talvez seja possível reduzir ainda mais a espessura das amostras de grafite. “A essa temperatura, os átomos de carbono começam a se desprender da grafite e a combinar com o oxigênio do ar, formando gás carbônico”, explica o físico Yakov Kopelevich, coordenador do laboratório do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em que Medina pesquisa. Ao acrescentar a etapa de secagem, Kopelevich e Medina acreditam ter encontrado uma forma de obter lâminas de grafite ainda mais finas que as obtidas apenas com o uso da fita adesiva.

Condutor ou isolante
Os avanços dessa equipe não se restringem a essa refinada colagem. Como resultado das pesquisas que contaram com R$ 1 milhão da FAPESP e do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Kopelevich e dois alunos, Medina e Robson Ricardo da Silva, identificaram propriedades elétricas e magnéticas que jamais se imaginou que a grafite pudesse apresentar – e ajudam a compreender por que a grafite pode se comportar ora como um metal e conduzir eletricidade, ora como um material isolante.

Efeito Hall
Uma dessas propriedades é o chamado Efeito Hall Quântico, que coordena o movimento de partículas eletricamente carregadas – no caso da grafite, os elétrons – em superfícies planas. Descoberto por Klaus von Klitzing, físico do Instituto Max Planck que recebeu o Nobel em 1985 por causa desse achado, esse efeito é a versão para o mundo microscópico de um fenômeno identificado um século antes pelo físico norte-americano Edwin Hall. Hall observou o efeito que leva seu nome ao aplicar um campo magnético a uma barra condutora atravessada por uma corrente elétrica. O campo magnético, perpendicular à corrente, causa um desvio na trajetória dos elétrons, que se acumulam em uma das extremidades da barra, gerando um campo elétrico na direção transversal à da corrente.

Resistência variável
Hall reuniu esses conceitos, bastante abstratos para a maioria das pessoas, em uma equação de apenas três termos que prevê como varia a capacidade de um material conduzir corrente elétrica à medida que se altera a intensidade do campo magnético. Usada pelos físicos na investigação das propriedades elétricas e magnéticas de metais ou semicondutores, essa equação mostra que a resistência Hall cresce de modo contínuo com o campo magnético. Mas esse fenômeno só vale para objetos macroscópicos nos quais as partículas eletricamente carregadas se movimentam nas três dimensões – profundidade, largura e altura. No mundo das partículas, regido pelas leis da física quântica, pouco compreendidas até mesmo pelos especialistas, tudo é diferente.

Aos saltos
Quando os físicos submetem um material qualquer a temperaturas baixas e a um campo magnético, o aumento da intensidade desse campo faz a resistência Hall crescer em saltos proporcionais, permanecendo constante entre um aumento e outro. Esse fenômeno toma a forma de gráficos que lembram lances de uma escada intercalados por patamares. Foi esse padrão de aumento da resistência Hall em conseqüência da variação do campo magnético que a equipe de Kopelevich detectou na grafite e detalhou em um artigo publicado em 2003 na Physical Review Letters. “A resistência à passagem de corrente elétrica entre uma folha e outra de grafeno é 100 mil vezes superior à resistência ao longo do plano”, diz Kopelevich, que há 13 anos trocou seu trabalho no Instituto Físico-Técnico de A. F. Ioffe, na gélida São Petersburgo, na Rússia, pelo calor abafado de Campinas. Nem mesmo os físicos, que duas décadas atrás imaginavam já ter descoberto tudo sobre a grafite, esperavam esses resultados. “É surpreendente que o Efeito Hall Quântico tenha sido observado na grafite”, comenta Douglas Galvão, da Unicamp, que estuda as propriedades de outro material composto de carbono, os nanotubos, formados por folhas de grafeno enroladas.

Mistério
Ainda não se sabe ao certo por que o Efeito Hall Quântico, antes observado no silício e em outros materiais semicondutores, também ocorre na grafite submetida a temperaturas de cerca de 200° Celsius negativos e a campos magnéticos razoavelmente intensos. Uma explicação provém da própria estrutura atômica do grafeno, cujos elétrons, nessas condições, só podem se movimentar em duas dimensões. Os elétrons responsáveis pela condução da corrente elétrica localizam-se ligeiramente acima e abaixo do plano dos átomos de carbono, situados nos vértices dos hexágonos e unidos uns aos outros pela interação entre os demais elétrons. Na grafite, as folhas de grafeno são fracamente unidas umas às outras – eis por que se desprendem facilmente e deixam um traço acinzentado quando um prosaico lápis corre sobre o papel.

Supercondutividade
Em outro artigo da Physical Review Letters, Kopelevich e Igor Luk’yanchuk, da Universidade de Picardie Jules Verne, na França, descobriram outra propriedade da grafite. Variando a intensidade do campo magnético, constataram que os elétrons livres desse material exibem um comportamento atípico, descrito por equações da física quântica criadas em 1928 pelo físico inglês Paul Dirac: esses elétrons movem-se como partículas sem massa, de modo semelhante às partículas de luz, os fótons. Em 2005 Andre Geim, na Inglaterra, e Philip Kim, nos Estados Unidos, viram em folhas de grafeno esse mesmo efeito. Os resultados obtidos pela equipe da Unicamp e publicados em 2003 também indicam a relação entre Efeito Hall Quântico e supercondutividade.

Como um ímã
De fato, Kopelevich, Sergio Moehlecke, José Henrique Spahn Torres e Vladislav Lemanov haviam descrito a supercondutividade na grafite pura seis anos antes na Physics of the Solid State. Esse efeito precisa ser confirmado, mas reitera a possibilidade de que esse material possa ganhar outras aplicações tecnológicas: Kopelevich também verificou que a grafite, em condições específicas, pode funcionar como um ímã.

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