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Sociologia

Castigo e crime

Estudo da USP revela que violência recente do PCC tem raízes antigas

“Senhores, São Paulo tem 140 mil presos. São 140 mil homens do PCC (Primeiro Comando da Capital) dentro da cadeia e 500 mil ou mais familiares fora. Eles estão hoje programando inclusive para fazer eleições de políticos, está certo? O PCC é forte na capital, mas ele é apoiado em todo o Brasil aonde vai. Virou realmente uma febre. Ser do PCC é um bom negócio. Muitas pessoas vão cometer o crime sem saber o que têm de fazer. Se não vai, morre.” Quem afirmou isso é o diretor do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), de São Paulo, Godofredo Bittencourt Filho, numa reunião reservada da CPI do Tráfico de Armas, no dia 10 de maio.

No dia seguinte ao encontro fechado vários presídios estaduais iniciaram rebeliões quase simultâneas e uma onda de violência paralisou São Paulo por vários dias. “Essa crise foi de uma grande amplitude, envolvendo mais de 70 unidades penitenciárias rebeladas, o que equivale à metade do número de prisões sob a responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária. E, mais importante, as ações do grupo ultrapassaram as muralhas do sistema prisional. Chegaram às bases policiais, às delegacias, aos ônibus, às agências bancárias. Espalharam terror não só entre policiais e outros agentes públicos, mas na população em geral. Isso é inédito”, observa o sociólogo Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e coordenador (ao lado de Marcos César Alvarez) do projeto do Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Construção das políticas de segurança pública e sentido de punição em São Paulo, financiado pela FAPESP.

Um amplo painel, ainda em desenvolvimento, a pesquisa revela que a passagem do tempo não mudou tanto quanto deveria a política do Estado brasileiro no trato da segurança pública. Segundo o Cepid, as elites, desde o século 19, quiseram transformar o Brasil num país materialmente moderno, sem demonstrar grande entusiasmo pelas formas de vida democrática dos países que tomavam como modelo. Há um desencaixe entre a modernização política e institucional (inclusive do sistema de segurança pública e da Justiça criminal) e o avanço efetivo na garantia dos direitos e na consolidação da democracia e da cidadania. As representações sobre a forma de proceder no trabalho policial, no lidar com o criminoso, foram marcadas pela possibilidade do uso da violência ilegal, do recurso à arbitrariedade, pela certeza de que sempre houve uma legitimidade nesses procedimentos e a conivência das elites, que assegurariam a impunidade a qualquer irregularidade.

Inteligência
O projeto demonstra que a parte repressiva das políticas de segurança é uma face da questão, mas não pode ser vista como solução para tudo. O mais importante seria ter um trabalho de inteligência policial e penitenciária que desarticulasse o crime organizado fora e dentro das prisões. “O mais difícil de combater o crime não é o que está no território da ilegalidade, que está na clandestinidade, mas os seus aliados que atuam e circulam na legalidade. A prisão não é uma bolha isolada da sociedade e, logo, ver os celulares como a questão central é olhar para a direção errada”, alerta o pesquisador. “É bom as autoridades tirarem lições dessa experiência, pois muitos dos atos foram praticados não apenas pelos ‘soldados’, mas também por simpatizantes do PCC, que se queriam mostrar prontos para a facção, dispostos a correr riscos”. Para o pesquisador, sem uma política consistente de enfrentamento do crime organizado, as chances de um novo levante nas prisões e um novo caos urbano não devem ser descartadas.

Os resultados iniciais do projeto mostram que a crise na área de segurança é mais antiga do que se imagina. Desde os anos 1950 o sistema penitenciário vive um colapso crônico. Ao longo dos anos 1970, o autoritarismo favoreceu uma invisibilidade aos problemas mais graves do sistema e mantinha a atuação das forças policiais em sintonia com as forças de repressão política. Com a redemocratização, frustrou-se a esperança de que o novo ordenamento trouxesse novos caminhos para a área de segurança. A pesquisa revela que as autoridades até hoje não tiveram a ousadia de enfrentar problemas recorrentes, e que, afirma Salla, se manifestaram, com grande força, na crise recente: as relações entre os agentes públicos e criminalidade, nas prisões e fora delas; a fragilidade dos mecanismos de responsabilização dos agentes públicos; a interferência política no funcionamento dos órgãos policiais e prisionais, de forma a prejudicar a sua atuação; a ausência de transparência no funcionamento desses órgãos.

Salla concorda com Bittencourt sobre o potencial de organização do PCC. “Está dentro das prisões, mas possui amplas conexões com atividades criminosas fora das prisões, em especial o tráfico de drogas. Impressiona a sua capacidade de manter um comando mais centralizado das ações criminosas e de mobilização de seus membros e ao mesmo tempo dispor do poder de sufocar as demais facções que aparecem no sistema prisional”, analisa. Nesse sentido, segundo o sociólogo, o PCC mostra habilidade em construir identidade de grupo, em estabelecer os vínculos de pertencimento, em exercer a coerção sobre os possíveis dissidentes.

O “nós”, continua Salla, é constituído não apenas pelos encarcerados que passam pelas mesmas privações e humilhações, que precisam se ajudar para enfrentar as angústias e precariedades da prisão, mas compreende também a identificação com a situação de pobreza e desemprego vivida pelos pobres da periferia. “Vários dos líderes do PCC têm efetivamente níveis consideráveis de politização e têm clareza com relação à sua força política e identificam nas autoridades o interlocutor e o inimigo de suas disputas”, avalia. “O senhor, quando fala na televisão, o senhor representa o governo; eu sou o líder do PCC, pô, então somos duas lideranças, entende?”, como disse Marcola para o diretor do Deic.

“Há uma astúcia política dos governos que não querem provocar turbulências na relação com seu aparato repressivo. Os problemas na área da segurança provocam desgaste político junto à opinião pública e os governantes tendem, para evitar exposição do setor, a se acomodar aos desmandos e arbitrariedades dos aparatos, desde que não provoquem uma exposição desfavorável dos governos, em especial na mídia”, observa o pesquisador. No depoimento que vazou para o PCC, Bittencourt chega à mesma conclusão: “Houve uma época em que o governo do estado cometeu um erro, quando pegou a liderança do PCC e os bandidos mais perigosos e os redistribuiu pelo Brasil. Então isso, na realidade, acabou fazendo um acasalamento. O Comando Vermelho, por exemplo, começou a ter muito contato com o PCC, a ponto até de liberar droga no Rio para que o PCC pudesse até explorar em briga de ponto de droga”.

Para Salla, também a reação das polícias civil e militar foi desastrosa nos eventos recentes. “Passado o primeiro momento, em que a polícia poderia repactuar sua relação com a sociedade, aprofundar os laços de solidariedade, estreitar sua relação de confiança, o aparato repressivo deixou-se levar pelo caminho da violência que sempre semeou a desconfiança e o temor junto à população”, avisa. O sociólogo observa que um dos maiores desafios é construir políticas de segurança que respeitem os direitos dos cidadãos e que não coloquem em suspensão o ordenamento legal cada vez que se acha que se está vivendo um momento excepcional.

O pesquisador lembra que os agentes da lei precisam agir no estrito cumprimento da lei, mas, afirma, o que se viu foi a atribuição de um estado de guerra, uma situação de exceção que justificava um enfrentamento quase ao arrepio da lei. “Foi mais uma oportunidade perdida de dar para a sociedade uma aula magistral de respeito ao Estado de direito, respondendo aos ataques criminosos não com arbitrariedade ou legalidade duvidosa, mas por meio de ações inteligentes e que demonstrassem ser a polícia moralmente superior aos atos dos bandidos”.

Assim, os pesquisadores vão na contramão do senso comum, que vê a manutenção de direitos civis de presos como “dar mole para bandido”. Ao contrário: é justamente a incapacidade do Estado em assegurar o que está disposto em lei que provoca as fragilidades do sistema. “A pena privativa de liberdade não pode ser vista como a principal solução para a criminalidade. É preciso reduzir as pressões, hoje fortes no Brasil, para a construção de novas vagas, que são caras e geram uma população que só cresce. Reduzir essa pressão significa estimular outros mecanismos de punição, as penas alternativas”.

A análise histórica das políticas de segurança revela que seria igualmente imperioso que o conjunto de entidades que gravitam em torno do sistema penitenciário (juízes, ministério público, conselhos penitenciários etc.) aumentasse sua eficiência, exercendo um monitoramento efetivo das prisões que estimule um controle democrático por todo o sistema de Justiça criminal. “Talvez essa crise possa trazer um sinal de alerta para que os estados busquem a organização de seus sistemas penitenciários de forma muito mais consistente e eficiente, em que a ilegalidade no exercício do cargo seja punida”, observa.

Para o sociólogo, um dos fatores essenciais para compreender o crescimento das facções criminosas é a sua capacidade de envolver agentes do Estado que atuam como policiais ou que lidam com a custódia de presos. A facilitação de fugas, a conivência com a entrada de armas de fogo, drogas, celulares, dinheiro são formas pelas quais esses agentes se envolvem com as organizações e permitem que elas se desenvolvam. Já o diretor do Deic tem outras preocupações. “O PCC é hoje uma organização extremamente estruturada, que faz a sua arrecadação com cinco tesoureiros diferentes que se reportam a um responsável, que é para a polícia, na hora em que pegar, não pegar tudo”. Segundo Bittencourt, Marcola teria dividido a capital em quatro áreas de influência e teria um representante em cada uma delas, determinando tudo o que aconteceria lá. Inclusive a provocação do caos. Mas é preciso tomar cuidado com generalizações.

Rotina
“Um acontecimento excepcional, quebra na rotina carcerária, faz com que um assunto pouco abordado pela mídia mereça atenção por meses. Mas como pouco se fala do cotidiano dos presídios, quando se enfatizam os acontecimentos extraordinários que são os motins, produz-se uma imagem invertida das penitenciárias, que passam a ser representadas como locais onde não há rotina, por obra das manifestações violentas dos presos. O que é excepcional assume a aparência de regra”, nota a geógrafa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eda Maria Góes. Até mesmo porque expor a população à violência contínua demanda um preço elevado na saúde dos cidadãos.

“Qual é o impacto dessa exposição a uma violência que parece nunca terminar? Nessa socialização negativa, aos poucos vão se perdendo os interditos morais contra o uso da violência, vista como forma de reparar danos, de se ‘fazer justiça’, de se proteger contra ameaças reais ou imaginárias”, avisa a pesquisadora do NEV, Nancy Cárdia. “Quanto maior a exposição à violência, menor a crença nas forças encarregadas de aplicar as leis e maior o risco de cinismo em relação às leis, e, paradoxalmente, maior a aceitação do arbítrio e da violência, contanto que aplicados contra suspeitos da prática de delitos percebidos como muito graves”.

Todo esse quadro levaria a um processo de isolamento, de privatização, já que as pessoas, aterrorizadas, tenderiam a se retirar do espaço público, isolando-se e construindo barreiras que, na contramão do desejado, as deixam ainda mais vulneráveis. Afinal, com apenas R$ 200, Marcola comprou o depoimento de altas autoridade atrás de portas cerradas, dentro do Congresso Nacional.

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