Imprimir PDF Republicar

Nutrição

Dieta na ponta dos dedos

Análise de unhas mostra como a alimentação pode variar

MIGUEL BOYAYANRedesenhando os hábitos alimentares a partir dos teores de isótopos das unhasMIGUEL BOYAYAN

Quando você corta as unhas, nem imagina que está jogando fora um registro do que comeu há uns seis meses. E se tem cabelos compridos… cada fio conta os últimos anos da sua vida. Essa história pode ser desvendada com ajuda dos isótopos estáveis. É o que fazem pesquisadores como Gabriela Bielefeld Nardoto e Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, que utilizam essa técnica para descrever aspectos diversos da vida das pessoas e outros seres vivos.

Os pesquisadores estavam curiosos em investigar como a “cultura de supermercado” alterou os hábitos alimentares de populações urbanas. Para isso, recolheram pedacinhos de unhas pelo mundo afora: Estados Unidos, Europa, Amazônia e Região Sudeste do Brasil. Os resultados estão em artigo que será publicado no American Journal of Physical Anthropology em setembro, mas já está disponível na edição eletrônica do periódico.

Sua expectativa era encontrar uma dieta homogênea entre áreas distantes, como resultado da globalização alimentar. Mas não é isso que se vê. As análises feitas pelo grupo de Piracicaba mostram que a partir da informação contida nos fragmentos de unhas é possível distinguir o que a pessoa andou comendo e onde: no Sudeste brasileiro, em pequenas comunidades amazônicas, nos Estados Unidos ou na Europa. Além disso, Gabriela se surpreendeu em encontrar diferenças marcantes dentro da região amazônica: “A população de Santarém já tem uma dieta completamente modificada em relação à região”. Os dados mostram que, com freqüência, os alimentos vendidos em Santarém são inclusive produzidos no Sudeste.

O segredo contido nas unhas está nos isótopos estáveis, elementos químicos iguais em número de prótons, mas com quantidades diferentes de nêutrons. Isso faz com que o mesmo elemento — como oxigênio, hidrogênio, carbono ou nitrogênio — possa ser mais leve ou mais pesado, conforme o número de nêutrons em seus átomos. Os isótopos estáveis, ao contrário dos radioativos, mantêm a mesma constituição ao longo do tempo. Para o nitrogênio, por exemplo, o isótopo mais comum é o 14N, que se lê “nitrogênio-14”. Mas na natureza existe também sua forma mais pesada, o 15N.

“Diferenças no sinal isotópico do carbono e do nitrogênio presente nas unhas de pessoas vivendo em diferentes regiões persistem apesar da cultura de supermercado”, explica Gabriela. A pesquisadora acrescenta que grande parte da diferença em isótopos de nitrogênio observada entre partes mais e menos desenvolvidas da América se deve ao uso de fertilizante, que é seis vezes maior nos Estados Unidos em relação ao Brasil.
“Você é o que você come, mais três partes por mil” é o lema dos especialistas em ecologia isotópica. Ou seja, se um animal herbívoro tem uma proporção de 7 (partes por mil) de 15N em relação a 14N, seu predador terá 10. As proporções entre isótopos mais e menos comuns, para diversos elementos químicos, formam a “assinatura isotópica” de um indivíduo num dado momento.

Variação regional
“O nitrogênio varia conforme o nível trófico e o uso de fertilizantes; já o carbono reflete o tipo de planta consumida, C3 ou C4“, explica a pesquisadora. Plantas C4 são as da família das gramíneas, como milho e cana-de-açúcar; as demais são chamadas C3, de acordo com o tipo de fotossíntese que realizam. A população do Sudeste brasileiro tem mais 13C (carbono-13) em suas unhas devido ao maior consumo de plantas C4. Segundo a pesquisadora, esse resultado reflete a alimentação do gado, que no Brasil tem mais acesso a pasto. A pecuária em confinamento, disseminada nos Estados Unidos, produz carne com uma proporção menor de 13C. Em ambos os países, vegetarianos apresentam valores mais baixos para os dois elementos, em relação aos onívoros da mesma região. Além disso, outra surpresa foi verificar que os brasileiros não comem mais carne do que os norte-americanos.

As diferenças em relação à dieta européia são também marcantes. “Eles apresentam uma assinatura de carbono-13 ainda mais baixa do que os norte-americanos”, diz Gabriela. Segundo ela, isso ocorre porque o consumo direto de milho não faz parte da cultura européia, e o açúcar é feito de beterraba em vez de cana.

Amazônia
Como parte de outro projeto de pesquisa, Gabriela fez trabalho de campo na região de Santarém, no Pará, onde a convivência lhe deu a possibilidade de recolher fragmentos de unhas de habitantes desta cidade e de pequenas comunidades a cerca de 80 quilômetros dali. Para conseguir que a população cedesse amostras, a pesquisadora teve antes que conquistar sua confiança. Em outras áreas amazônicas ela não teve a mesma recepção. “As pessoas achavam que era bruxaria, ou que eu iria extrair DNA e encontrar seus filhos espalhados pelo mundo”, conta.

A alteração na dieta dos santarenos é marcante. Apesar de viverem perto da confluência dos rios Amazonas e Tapajós, eles consomem pouco peixe. Sua proteína tem origem sobretudo em frango, mais barato que carne bovina. As proporções de isótopos em suas unhas são iguais às de habitantes do Sudeste brasileiro, o que mostra que a cultura de supermercado teve impacto importante em padronizar sua dieta com outras áreas urbanas do país.

Já fora da cidade a situação é diferente. Gabriela colheu amostras de três comunidades: São Jorge, na floresta; Jamaraquá, perto do rio Tapajós; e Socorro, às margens do Lago Grande. Nesses vilarejos, a alimentação dos habitantes depende de suas plantações — milho, mandioca e arroz — e de caça ou pesca. Periodicamente, um representante vai à cidade buscar necessidades básicas, como feijão e açúcar. Os isótopos indicam que somente a população ribeirinha tem o hábito de comer peixe. Os habitantes de Socorro também pescam, além de caçar. Já a comunidade de São Jorge, a alguns quilômetros da água, não inclui peixe em sua dieta.

Outros usos
Isótopos de carbono e nitrogênio são utilizados para inferir dietas antigas, tanto animais como humanas. É possível, por exemplo, conferir o conteúdo isotópico de ossos de múmias ou fósseis, e daí ter uma idéia do que comiam. Gabriela conta que são poucos os estudos feitos em humanos contemporâneos. No entanto, eles são essenciais como referência para interpretar dados históricos. Os pesquisadores de Piracicaba usaram questionários para avaliar a dieta das pessoas que cederam suas amostras de unha. Por comparação dos dados, viram que a análise de isótopos estáveis é confiável. Múmias não respondem a questionários, mas o trabalho de Gabriela mostra que é possível inferir sua dieta a partir de análise dos isótopos estáveis.

A aplicação mais disseminada da análise de isótopos estáveis se dá em vários ramos da ecologia. Suas proporções em vários tecidos — penas, sangue, músculo — de aves migratórias permitem inferir a rota percorrida pelos animais e os alimentos consumidos em cada local. Os isótopos integrados nas penas dizem respeito aos nutrientes disponíveis quando elas foram produzidas. Já o sangue traz informações imediatas. Assim, os pesquisadores têm acesso a histórias de espécies que não têm outra forma de contá-las.

Espécies pouco eloqüentes são também as plantas. Rafael Oliveira, outro integrante do Cena, quer saber como as plantas da Mata Atlântica bebem água — pelas raízes ou pelas folhas. Em regiões de altitude há muita água disponível na forma de neblina, que de acordo com pesquisa recente pode ser absorvida pelas folhas. É possível distinguir essa água da que vem do solo, pois as gotículas que formam a neblina têm uma proporção maior de isótopos leves de oxigênio. Neste caso, proporções isotópicas podem ajudar a revelar uma forma pouco conhecida de absorção de água por plantas.

À medida que a tecnologia avança, mais e mais informações são extraídas dos isótopos estáveis presentes nos mais diversos recantos da natureza. Agora você sabe que da próxima vez que cortar as unhas estará jogando fora parte do registro de sua história.

Republicar