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Genética

Grãos selecionados

Manipulação de genes que controlam açúcares pode aprimorar o café brasileiro

EDUARDO CESAROs tempos de glória e reinado absoluto da economia cafeeira ficaram para trás, mas o aroma que se espalha quando a água fervente banha o pó marrom permanece irresistível. No ano passado os brasileiros consumiram cerca de 15 milhões de sacas de café – foram superados apenas pelos norte-americanos, com 20 milhões de sacas. Um levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) em 2005 confirma o apreço pela bebida: 93% dos 1.400 entrevistados de oito capitais consomem café. Desses, 90% tomam pelo menos quatro xícaras todos os dias. Pela manhã, a preferência é o coado, feito em casa. Depois do almoço, o mais solicitado é o expresso das lanchonetes e padarias. Cada vez mais se exige uma bebida de qualidade: 58% dos entrevistados tomam café por puro prazer e 47% pelo sabor que fica na boca. Quando vai ao supermercado, a maioria (89%) escolhe seu café em função da qualidade do produto, do sabor (84%) e do tipo do café (79%). O preço vem em sétimo lugar, citado por 70% dos entrevistados. Se depender das pesquisas científicas para o aprimoramento do café, a exemplo do Projeto Genoma recém-concluído, os consumidores podem ficar tranqüilos: a preocupação principal é garantir um produto de boa qualidade ? encorpado, saboroso e com aroma agradável.

“A ciência está sintonizada com essa demanda”, afirma Paulo Mazzafera, pesquisador do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O genoma será usado para auxiliar o melhoramento da produção e da qualidade do café”. Luiz Gonzaga Esteves Vieira, pesquisador do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), reforça: “O momento é excelente: há vários genes em análise. Quando definirmos como se expressa cada um deles, poderemos selecionar e reproduzir as características positivas da planta e inibir as indesejadas”.

Iniciado em 2002, o Projeto Genoma Café recebeu um investimento de R$ 6 milhões – financiados pela FAPESP, pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen) e pelo Consórcio Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento do Café, que reúne 700 pesquisadores de 40 instituições. Foram identificados cerca de 30 mil genes responsáveis por determinar diferentes características do café. Os pesquisadores trabalharam com duas espécies: a arábica (Coffea arabica), associada a uma bebida saborosa, cultivada em regiões de altitudes mais elevadas e que representa 70% da produção nacional, e a conilon ou robusta (Coffea canephora), responsável por um café menos saboroso e mais encorpado, plantado em baixas altitudes. “Optamos por analisar genes de órgãos e tecidos diferentes como folhas, raízes, ramos e frutos. A partir da diversidade, selecionamos os genes mais adequados”, explica Carlos Colombo, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). “Saímos na frente e temos um banco de dados genuinamente nacional. Mas a competição é grande e as informações precisam ser rapidamente usadas em novos trabalhos”, alerta Vieira.

Padrão colombiano: frutos maduros originam bebida mais saborosa

Sem perder tempo, seis instituições que integram o consórcio começaram o Projeto Genoma Funcional do Cafeeiro (Genocafé), coordenado por Mirian Eira, da Embrapa, e financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com um investimento inicial de R$ 3 milhões. Usando dados do genoma, as equipes da Unicamp, do Iapar e do Centre de Coopération International en Recherche Agronomique pour le Développement (Cirad) identificaram dois genes que controlam o teor de sacarose no fruto do café, descritos em um artigo que deve ser publicado em breve no Journal of Experimental Botany. É a quantidade desse açúcar no produto torrado que determina, em parte, a qualidade da bebida. Na Unicamp, Mazzafera e Geraldo Aclécio de Melo, seu aluno de doutorado, fizeram outra descoberta associada à qualidade do café: identificaram genes que definem arranjos estabelecidos entre isômeros – moléculas formadas pelos mesmos átomos, mas com estruturas espaciais distintas – do ácido clorogênico, associado à definição do sabor e do aroma da bebida. Mazzafera também organizou a edição especial do Brazilian Journal of Plant Physiology, publicada em março, com 19 artigos de revisão sobre achados recentes envolvendo o café – os artigos abordam de citologia e biologia molecular da planta à qualidade da bebida. Um deles, escrito por uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa a relação entre a proporção de isômeros dos ácidos clorogênicos e o amargor do café.

De acordo com Vieira, do Iapar, o trabalho é integrado e as linhas de pesquisa das equipes se complementam. No IAC, os pesquisadores tentam caracterizar genes relacionados à qualidade da bebida e à resistência aos nematóides – vermes microscópicos que atacam as raízes do cafeeiro, comprometendo seu desenvolvimento. Também se dedicam à análise de possíveis genes reguladores da floração, como a equipe da Universidade Federal de Lavras. Como o cafeeiro floresce várias vezes durante o ano e a colheita é feita em uma única oportunidade para baixar os custos de produção, geralmente se apanham frutos verdes, maduros e secos, mistura que prejudica a qualidade da bebida.

A idéia é selecionar genes que permitam reduzir o número ou a duração das floradas e concentrar a colheita em uma época. Pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em conjunto com a equipe da Embrapa Café, procuram genes associados ao controle da ferrugem – causada pelo fungo Hemileia vastatrix, que deixa manchas parecidas com poeira nas folhas, que secam – e do bicho-mineiro (Leucoptera coffeella), lagarta que ataca as folhas, derrubando-as.

Em paralelo ao Genoma, Clóvis Oliveira Silva e Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, identificaram o gene da enzima alfa-galactosidase, que controla a quantidade do açúcar galactose em uma das fibras (manano) do café – o teor desse açúcar afeta a solubilidade do manano, importante para o rendimento e a qualidade do pó. As sementes jovens contêm muita galactose, que é quebrada pela alfa-galactosidade no amadurecimento do grão. Conseqüência: a semente torna-se dura e gera um pó difícil de dissolver. “Se conseguirmos inibir a alfa-galactosidase, provavelmente conseguiremos alterar o corpo da bebida”, diz Buckeridge.

Mas o segredo da qualidade da bebida não está associado só à genética. Silva e Buckeridge compararam a composição de açúcares em frutos das espécies arábica e conilon colhidas segundo o padrão brasileiro, que mistura frutos verdes, maduros e secos. Verificaram que a quantidade de manano, açúcar complexo que forma fibras longas, era maior na arábica. Ao repetir a comparação – desta vez seguindo o modelo de colheita colombiano, que seleciona só frutos maduros -, notaram que a concentração de manano era praticamente a mesma nas duas espécies. “O sabor e o aroma do arábica serão sempre melhores porque outros fatores, além das fibras, influenciam essas características”, admite Buckeridge. “Mas, controlando a maturidade do fruto, o sabor e o aroma da conilon podem melhorar”.

Os pesquisadores sabem que o brasileiro está descobrindo os prazeres de um bom café e que não é mais possível – nem desejável – fechar os olhos para esse novo padrão de consumo. “Uma xícara de café deve ser apreciada da mesma forma como nos deliciamos com uma taça de vinho”, sugere Buckeridge.

Melhorar a qualidade do café nacional representa ainda a possibilidade de ocupar novos espaços no mercado internacional. É uma oportunidade nada desprezível para um país como o Brasil, maior produtor e exportador de café no mundo. Segundo estimativas do Ministério da Agricultura, o país deve colher na safra 2006/2007 cerca de 40 milhões de sacas de 60 quilos de café – um crescimento de 23% em relação ao período 2005/2006 -, produzidos em Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e Bahia. Dados da Organização Internacional do Café mostram que em 2005/2006 o Brasil exportou 20,5 milhões de sacas de café, mais que o Vietnã (11,4 milhões), a Colômbia (10,3 milhões) e a Indonésia (4,6 milhões).

Qualidade internacional
Não se pode ignorar a influência da atividade cafeeira na economia nacional. Segundo a Embrapa Café, há no país 2,7 milhões de hectares de pés de café, cultura que gera 8 milhões de empregos. “O café brasileiro tem sido valorizado em feiras internacionais por causa do cuidado com a qualidade”, afirma Luiz Carlos Fazuoli, pesquisador do IAC. “Competimos em condições de igualdade com o café colombiano, considerado o melhor do mundo”, completa o especialista, discípulo de Alcides Carvalho, pioneiro nos estudos sobre melhoramento genético da planta.

Para Fazuoli, a conclusão do genoma também beneficiará as pesquisas de melhoramento genético clássico do cafeeiro. Com os dados do genoma o melhorista poderá identificar nos cromossomos do café marcadores genéticos associados à manifestação de determinadas características da planta. O passo seguinte é aproveitar esses marcadores para selecionar plantas de interesse agronômico, por exemplo, adaptadas a climas secos ou capazes de gerar frutos de melhor qualidade.

Mas é preciso ter paciência para ver os resultados. O cafeeiro só começa a produzir com um ano e meio e atinge a maturidade aos dez anos. “O objetivo é usar a seleção assistida por marcadores para reunir atributos de interesse agronômico em uma única espécie”, diz Colombo. O melhoramento genético do cafeeiro começou no Brasil na década de 1930 com Alcides Carvalho, no IAC. Na época, o instituto, fundado em 1887 por decreto do imperador Pedro II, já era a grande referência nacional em estudos sobre café. Calcula-se que 90% dos 6 bilhões de cafeeiros hoje espalhados pelo Brasil sejam descendentes de culturas produzidas pelo IAC, responsável por desenvolver mais de 60 variedades da espécie arábica – entre as principais, destacam-se a mundo novo (que gera bebida de excelente qualidade), a acaiá (de maturação mais precoce) e a icatu (sensível ao clima seco).

Três séculos de história
“Com as informações do genoma, passamos a trabalhar não mais com bandas do cromossomo, mas com genes específicos”, explica Mirian Perez Maluf, pesquisadora do IAC e da Embrapa Café. “Os marcadores serão encontrados de forma mais rápida e precisa, diminuindo o tempo de experiências e minimizando a probabilidade de erro”.

O diálogo entre as pesquisas científicas e a produção cafeeira de qualidade inicia um capítulo especial de uma história que começou há quase três séculos,  quando o oficial português Francisco de Mello Palheta trouxe da Guiana Francesa para Belém, no Pará, as primeiras mudas de café. Não tardou e a bebida caiu no gosto popular: no final do século 18, a planta, originária da Etiópia, já havia chegado ao Rio de Janeiro, de onde se espalhou para o Vale do Paraíba, tomando todo o estado de São Paulo. “Para a Mata Atlântica, a introdução dessa planta exótica significaria uma ameaça mais intensa que qualquer outro evento dos 300 anos anteriores”, escreveu Warren Dean, no livro A ferro e fogo – A história da devastação da Mata Atlântica brasileira, referindo-se aos grandes latifúndios que substituíram a floresta.

Do final do século 19 até meados do 20, o café se tornou o principal responsável pelo desenvolvimento nacional. Sua produção atraiu imigrantes. Sua comercialização permitiu a construção de ferrovias e promoveu a industrialização – em especial da Região Sudeste. Mas o chamado ouro negro, que ajudou a transformar a provinciana vila de São Paulo na cidade mais rica do país, deixou mais que o legado econômico: consolidou o tradicional cafezinho como marca da cultura brasileira.

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