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Fisiologia

Máscara da embriaguez

Energético disfarça alguns efeitos das bebidas alcoólicas e amplifica outros

MIGUEL BOYAYANDuas doses de uísque e uma lata de bebida energética deixam o mais tímido freqüentador de bares e danceterias eufórico e falante para curtir a noite como um boêmio de carteirinha. O problema é a hora de voltar para casa. Quem bebe energético à base de cafeína e taurina na esperança de cortar o efeito do álcool pode até se sentir em condições de pegar na direção, quando, na realidade, não está – e, assim, correr o mesmo risco de causar um acidente de quem consumiu apenas uísque ou cerveja durante a balada.

Experimentos feitos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) comprovam que os energéticos produzem um efeito duplo sobre o sistema nervoso central: por um lado aumentam a sensação de prazer proporcionada pelo álcool, por outro diminuem a percepção sobre o estado de embriaguez. Por essa razão, imagina-se que o consumo freqüente de energéticos com bebidas alcoólicas pode aumentar o risco do uso abusivo e eventual dependência do álcool, que atinge 12 milhões de adultos no país.
Interessado em conhecer como e por que as pessoas consomem energéticos – bebida criada em 1987 pelo austríaco Dietrich Mateschitz a partir de compostos populares na Ásia -, Sionaldo Eduardo Ferreira, da Unifesp, teve de esticar o horário de trabalho alguns dias e procurar os usuários da mistura de energético e bebida alcoólica onde eles geralmente se encontram: em bares, danceterias e academias de ginástica, além de, claro, na própria universidade.

Em 2000 Ferreira entrevistou 136 homens e mulheres que haviam consumido ao menos uma vez energéticos associados com uísque, vodca, cerveja ou outro tipo de bebida alcoólica. Em geral, as pessoas tomavam energéticos por achar que reduziam a sonolência e o cansaço causados pelo álcool, efeito chamado depressão psicomotora. Um em cada quatro entrevistados afirmou que o energético adicionado à bebida alcoólica melhorava o vigor físico, em comparação com o consumo exclusivo de álcool. Na opinião de 40%, o energético os deixava mais alegres, enquanto 30% disseram que aumentava a euforia e 27% a desinibição. Só 14% falaram que o energético não modificava os efeitos do álcool.

De volta ao laboratório, Ferreira encontrou resultados diferentes. Ele e outros integrantes da equipe de Maria Lúcia Formigoni convidaram 26 jovens adultos para três baterias de testes com energéticos e bebidas alcoólicas, com o objetivo de verificar se os energéticos modificavam de fato os efeitos do álcool, como muitos acreditam. Antes de cada bateria de teste, os voluntários receberam doses de vodca com um corante amarelado que imita o sabor do energético, de energético puro ou de energético e vodca –  em nenhuma das vezes eles sabiam o que estavam tomando. A avaliação feita com o bafômetro mostrou que o nível de álcool no sangue depois de beber álcool e energético foi semelhante ao observado após o consumo de álcool. “Esse é um sinal de que o energético não interfere na metabolização do álcool”, explica Maria Lúcia.

Exames de sangue detectaram níveis semelhantes de açúcar (glicose) e de diversos hormônios no organismo após a ingestão de bebida alcoólica ou da mistura de álcool e energético. Testes de atenção também comprovaram que a reação visual e a coordenação motora ficaram igualmente comprometidas em ambos os casos. O desempenho na atividade física em bicicleta ergométrica foi praticamente o mesmo, como atesta estudo publicado em abril deste ano na Alcoolism, Clinical and Experimental Research. “A única diferença importante”, conta Maria Lúcia, “foi observada no dia em que as pessoas beberam energético com álcool: elas tinham a sensação subjetiva de manter boa coordenação motora e de menor embriaguez”.

Essa falsa noção de sobriedade associada ao consumo de energéticos havia sido identificada em 1996 por uma equipe alemã. Em artigo publicado na Blutalkohol, o grupo relatou que a combinação de álcool e energéticos poderia levar os jovens a uma avaliação errada de sua habilidade para dirigir. “Por não ter noção de seu estado de embriaguez, é bem possível que o usuário beba muito mais”, comenta Ferreira. Além disso, o energético disfarça o gosto nem sempre agradável das bebidas destiladas, tornando-as mais palatáveis.

É cedo para afirmar que os energéticos induzem a um consumo maior de álcool. Mas Ferreira tem indícios de que isso pode ocorrer. Como não seria ético submeter voluntários ao consumo de doses mais elevadas de álcool e por períodos prolongados, foi necessário partir para testes com roedores. Durante três semanas Ferreira deu álcool diariamente a camundongos, antes de testá-los em caixas acrílicas com células fotossensíveis, que registram a movimentação dos animais. Na primeira vez em que os roedores receberam álcool, metade ficou inicialmente agitada e logo se tornou sonolenta, enquanto a outra metade permaneceu inquieta por mais tempo. Nas outras vezes em que repetiu o experimento, Ferreira observou  que três de cada quatro camundongos exibiam o efeito estimulante do álcool de forma bastante acentuada.

Quando misturou energético à bebida, porém, todos os roedores ficaram agitados, caminhando rapidamente de um lado a outro da caixa. “Se esse resultado for válido para os seres humanos, uma pessoa que inicialmente fica pouco estimulada ao tomar uma bebida alcoólica pode se tornar cada vez mais sensível ao seu efeito estimulante, apresentando euforia e agitação mais intensas e prolongadas”, diz Maria Lúcia. “É justamente esse efeito que a maioria busca nas drogas de abuso.” A equipe da Unifesp imagina que a sensibilidade causada pelo consumo contínuo de álcool – e aumentada pelo energético  -pode influenciar o desencadeamento de seu uso abusivo. Talvez não seja por acaso que nas casas noturnas visitadas por Ferreira a mistura de álcool e energético já constava dos cardápios. “Os administradores desses estabelecimentos devem ter notado que o cliente que bebe a mistura consome mais álcool durante a noite”, avalia Maria Lúcia.

Atualmente Gabriela Naomi Fujisaka, aluna de ciências biomédicas na Unifesp e integrante da equipe de Maria Lúcia, analisa como agem separadamente no organismo os componentes dos energéticos. Enquanto não se conhecem melhor os efeitos desses componentes, essas bebidas continuam a ser vendidas sob a vaga classificação de composto líquido pronto para o consumo.

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