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Travessias

Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas

Estudo analisa cuidados em saúde a partir da análise de seus fundamentos e possibilidades

Suely Ferreira Deslandes (organizadora)
Editora Fiocruz – 416 páginas, R$ 49,00

Contrapondo-se fundamentalmente ao “biologicismo” e à ilusão de objetividade do paradigma biomédico na área da saúde e ao excesso tecnológico em suas práticas e saberes, a noção de “humanização” dos cuidados tornou-se tema central no campo da saúde coletiva. Múltiplas dimensões estão envolvidas neste ideário, concebido como valor, saber, diretriz de ações em saúde e políticas públicas na área, o que contribui para a polissemia da noção, tal a diversidade conceitual e prática em torno das noções que a atravessam, como as de humano, saúde, doença e cuidado. Seu uso corrente no campo da saúde esconde a imprecisão das categorias que a sustentam como suporte do cuidado. É bem-vinda, assim, uma coletânea de artigos que busca precisar a noção e refletir sobre este projeto de cuidado em saúde, a partir da análise de seus fundamentos e condições de possibilidade.

Articulando reflexões teóricas com experiências de assistência, são 21 os autores dos 16 artigos que compõem a coletânea, profissionais da saúde e cientistas sociais. Sem “a expectativa de produzir consensos” (pág. 16), tal número de textos permitiu abordar o problema da humanização e do cuidado sob distintos ângulos e considerar diversas facetas e atores sociais envolvidos: profissionais, usuários e seus familiares, em hospitais, na atenção básica e outros âmbitos. O livro está dividido em três partes. A primeira é conceitual, sem deixar de analisar situações concretas; as outras duas focalizam o cuidado à saúde da mulher e da criança.

Atravessa os textos o problema da relação entre tecnologia e cuidado, diante do qual se rompem polaridades ingênuas, escapando-se tanto do tecnicismo quanto de um humanismo abstrato, ao se assumir a humanização também como uma forma de intervenção, portanto, potencialmente impositiva. Daí a necessidade de uma cuidadosa e criteriosa discussão de seus fundamentos e práticas. Ante a crítica da “desumanização” nas ações de saúde baseadas em critérios supostamente técnicos e objetivos, a “humanização” é pensada a partir do necessário encontro (ou confronto?) entre subjetividades que se instaura na atenção à saúde humana. Assim, os temas das relações e da intersubjetividade emergem, por definição, permeando todos os artigos, ao lado da questão da ética que surge do postulado de uma assistência fundada na alteridade.

Ao lado de revisões dos conceitos de humanização e de cuidado, incluindo a análise das bases epistemológicas da política de humanização do Ministério da Saúde, no Brasil, são também destacadas dimensões, tais como o problema da organização do trabalho em saúde, em face do esgotamento físico e emocional do profissional, que compromete, ao mesmo tempo, sua saúde e a qualidade da atenção prestada; e as redes sociais de suporte ao cuidado em saúde, com base na idéia de que o fortalecimento dessas redes, que situe o sujeito em suas múltiplas vinculações, possibilita reverter posições vulneráveis, a partir da correlação entre desenraizamento social e condições de saúde.

O livro, nas duas últimas partes, recorta o campo da assistência “humanizada”, pela análise de significativas experiências de atenção à mulher e à criança, em diferentes situações de vulnerabilidade. No que se refere à mulher, problematiza-se a questão de gênero. O destaque dado aos discursos e práticas neste campo explica-se, em parte, pelo fato de a coletânea integrar a Coleção Criança, Mulher e Saúde, da editora que a publica, mas se justifica, segundo a organizadora, “em função do significativo espaço que têm ocupado na organização do cuidado neste setor” (pág. 16). Diante deste fato e das importantes questões e iniciativas, descritas e analisadas neste livro, que transcendem a condição de mulheres e crianças, entre os muitos desafios dos projetos de humanização está um dilema básico da saúde: como pensar ações que concretizem universalmente este ideário, para além de recortes identitários que priorizam grupos sociais, e apenas eles, na assistência, com base nas noções de risco e vulnerabilidade, que são construções sociais e históricas?

Cynthia Andersen Sarti é antropóloga, professora livre- docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Unifesp.

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