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Medicina

Magnetismo contra a depressão

Técnica experimental mostra-se eficiente para tratar distúrbios psiquiátricos severos

MIGUEL BOYAYANAplicação: bobina dispara corrente elétrica de intensidade alta por milissegundosMIGUEL BOYAYAN

Ana Paula custa a se lembrar da última vez em que viu a mãe sorrir. Desde que sofreu sua primeira crise de depressão há quase 20 anos, Maria passa os dias triste, deitada no sofá remoendo pensamentos que brotam de um mundo sempre cinza. Já experimentou todos os tipos de antidepressivos conhecidos, mas nenhum foi capaz de pôr fim à apatia que ainda hoje a acompanha e a fez abandonar o trabalho na empresa da família na Região Metropolitana de São Paulo. Úteis na maioria das vezes, os remédios, no caso de Maria, no máximo adiavam a próxima recaída.

Na última, há seis meses, os médicos tiveram de recorrer à aplicação de descargas elétricas no cérebro do paciente sob anestesia geral, a eletroconvulsoterapia, mais conhecida como eletrochoque – tratamento considerado como um dos mais eficazes para os casos mais graves, ainda que estigmatizado por já ter sido aplicado de modo cruel e usado até mesmo como técnica de tortura contra presos. Esse tratamento pode ajudar a restabelecer o funcionamento normal das células nervosas, ainda que geralmente cause uma perda de memória passageira, que pode durar de alguns dias até meses.

Como nem as descargas elétricas funcionaram, em novembro Maria iniciou no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP) uma terapia contra a depressão que nos últimos anos vem despertando o interesse de psiquiatras e neurologistas do mundo todo: a estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMTr), uma seqüência de pulsos magnéticos intensos capazes de estimular ou inibir a atividade do tecido nervoso. Até bem pouco tempo atrás restrita exclusivamente a experimentos científicos, a EMTr parece produzir os mesmos efeitos que a eletroconvulsoterapia no tratamento da depressão: reajusta o funcionamento de determinadas regiões do sistema nervoso central, mas com menos efeitos indesejados. O Instituto de Psiquiatria da USP liberou o uso da EMTr para o tratamento da depressão em outubro de 2006, após a equipe do psiquiatra Marco Antonio Marcolin testá-la experimentalmente por quase seis anos contra a depressão e também no tratamento de dores crônicas, de algumas formas de alucinação comuns na esquizofrenia e na recuperação do acidente vascular cerebral.

Atualmente o instituto analisa como pedir a inclusão da EMTr na lista de procedimentos pagos pelo Sistema Único de Saúde para tratar a depressão, a fim de oferecê-la gratuitamente a um maior número de pessoas. Aprovada para essa finalidade apenas no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, em Israel e em alguns países da Europa, essa terapia ainda é cara: custa R$ 300 cada uma das 20 aplicações necessárias para o tratamento agudo da depressão, problema que uma em cada dez pessoas pode apresentar ao longo da vida.

Em geral é feita uma sessão por dia durante um mês. Quinze dias após o início do tratamento, Ana Paula já notava os primeiros sinais de recuperação da mãe. A dose do antidepressivo que Maria ainda toma baixou para um quarto da inicial e a equipe de Marcolin começava a retirar o sedativo que ela usava para dormir. A aplicação é realmente tranqüila. Na manhã de 6 de dezembro, em uma pequena sala no primeiro andar do instituto, a psiquiatra Maria do Carmo Sartorelli aproxima uma bobina em forma de 8, do tamanho de uma mão espalmada, do lado esquerdo da cabeça de Maria, sentada em uma cadeira reclinada. Em seguida ouve-se uma série de estalos rápidos durante dez segundos. Seguem-se 20 segundos de silêncio e dispara-se uma nova seqüência de pulsos, repetida mais 23 vezes. “Minha mãe sai das aplicações conversando, e não calada como antes”, diz Ana Paula. “Fiquei surpresa com a mudança de humor.”

A cada estalo, uma corrente elétrica de alguns milissegundos e intensidade altíssima (até 5 mil amperes) passa pela bobina. A rápida seqüência de liga-desliga produz flutuações em um campo magnético que atravessa o crânio e gera uma corrente elétrica de baixíssima intensidade em uma área específica do córtex, a camada mais externa do cérebro. Apesar de baixa, essa corrente elétrica é suficiente para disparar a transmissão do impulso nervoso de uma célula a outra, explica o físico Oswaldo Baffa Filho, da USP em Ribeirão Preto, que faz pesquisas nessa área.

Reprogramando neurônios
Tanto a EMTr como o eletrochoque funcionam com base no mesmo princípio físico – a passagem de corrente elétrica pelo encéfalo, o conjunto de estruturas do sistema nervoso central que inclui o cérebro. Mas há também diferenças importantes entre esses dois recursos. As principais são a intensidade e a abrangência da corrente elétrica aplicada ao sistema nervoso central. Enquanto a EMTr gera correntes de uns poucos miliamperes em uma área restrita do cérebro, a eletroconvulsoterapia produz correntes cerca de mil vezes mais altas, de até 2 amperes, que atravessam todo o encéfalo e originam convulsões semelhantes às observadas na epilepsia – o paciente não sente as convulsões nem se lembra delas porque passa o tempo todo anestesiado. Independentemente da técnica usada, acredita-se que essa passagem de corrente elétrica reprograme alguns genes das células nervosas, fazendo-as retomar o funcionamento adequado, assim como os medicamentos antidepressivos.

No tratamento da depressão o alvo da EMTr é uma região do cérebro localizada no lado esquerdo da cabeça, ao lado da testa e acima dos olhos. Ali fica o chamado córtex pré-frontal dorso lateral, uma região do tamanho de uma moeda de dez centavos associada à memória de curto prazo, ao raciocínio lógico e à avaliação de metas que se deseja atingir. Em geral, essa região encontra-se menos ativa nos portadores de depressão do que nas demais pessoas, independentemente da origem do problema – seja a depressão decorrente de fatores genéticos, hormonais ou ambientais.

Segundo Marcolin, quem passa pelas sessões de EMTr em geral não sente nada, embora possa apresentar uma leve dor de cabeça ou contrações no couro cabeludo, que geralmente terminam assim que o aparelho é desligado. Foi essa quase ausência de efeitos indesejados que chamou a atenção de Marcolin há quase dez anos e o motivou a dar uma guinada em sua linha de pesquisa. Ao ver os resultados dos primeiros experimentos, ele abandonou sua especialidade, as interações entre as drogas psiquiátricas com outros medicamentos, para investigar se a EMTr seria mesmo eficiente no combate à depressão e outras enfermidades que costumam tirar das pessoas o controle sobre a razão e suas próprias vidas.

Além dos estudos internacionais, dois experimentos conduzidos na USP atestam esses benefícios e ajudam a embasar a decisão do Instituto de Psiquiatria de liberar a EMTr para o tratamento da depressão – em especial, os casos em que nem os medicamentos nem as terapias psicológicas produzem mais o efeito desejado. O mais recente desses trabalhos, publicado em dezembro no International Journal of Neuropsychopharmacology, mostra que a EMTr é tão eficiente quanto a eletroconvulsoterapia para amenizar os sinais da depressão que insiste em não ceder, chamada de depressão refratária. O psiquiatra Moacyr Rosa, da equipe de Marcolin, selecionou 42 pessoas com idade entre 18 e 65 anos, todas com depressão refratária, para receber um de dois possíveis tratamentos: EMTr ou eletroconvulsoterapia.

De maneira aleatória, Rosa tratou metade desse grupo com cinco sessões semanais de EMTr durante um mês, enquanto a outra metade passou por 12 aplicações de eletroconvulsoterapia no mesmo período. Ao longo do estudo, Rosa mediu o grau de depressão em três ocasiões por meio de uma escala que vai de 0 a 40 pontos – a pontuação inferior a 7 indica ausência de depressão e a superior a 22 confirma depressão severa, estágio em que geralmente surgem mudanças brutais de comportamento: perde-se o sono ou, contrariamente, dorme-se demais com freqüência; come-se exageradamente ou se perde a fome quase por completo; o desejo sexual desaparece e é comum surgir o desejo de tirar a própria vida.

Outros benefícios
Depois da segunda semana de tratamento, a pontuação dos participantes dos dois grupos havia baixado de 32, em média, para próximo a 25. Quinze dias mais tarde a severidade era ainda menor, perto de 15, depressão considerada de moderada a leve. De modo geral, 40% das pessoas que receberam eletroconvulsoterapia e metade das que passaram por sessões de estimulação magnética responderam bem à terapia – para os médicos, isso significa que haviam reduzido ao menos à metade os sinais de depressão que apresentavam no início do estudo.

No final da pesquisa, 20% das pessoas do primeiro grupo e 10% do segundo já não eram mais consideradas deprimidas. “A proporção de participantes que melhorou é considerada pequena, mas é preciso lembrar que os casos que chegam ao Instituto de Psiquiatria da USP são sempre de extrema gravidade”, diz Marcolin. O mais importante, como esse trabalho demonstrou, é que a EMTr produziu uma melhora semelhante à eletroconvulsoterapia, que exige a aplicação de anestesia geral em cada uma das três sessões realizadas por semana. Foi um efeito relevante, mas não o único.

Dois anos antes a equipe de Marcolin havia descoberto outro benefício da EMTr: a excitação de determinadas regiões do cérebro por meio de pulsos magnéticos rápidos e intensos acelera a ação dos medicamentos antidepressivos. O psiquiatra Demetrio Ortega Rumi, da USP, receitou para 46 pessoas com depressão profunda uma terapia de cinco semanas à base de amitriptilina, um dos antidepressivos mais eficientes para restabelecer o equilíbrio dos mensageiros químicos do sistema nervoso central, que, acredita-se, se encontram em níveis inferiores ao desejado na depressão. No início da segunda semana, Rumi separou os participantes do estudo em dois grupos: metade recebeu 20 sessões de EMTr e o restante passou por um número igual de sessões de estimulação inativa, em que a bobina posicionada sobre a cabeça fazia os mesmos estalos, mas não gerava campo magnético algum – durante o experimento nenhum dos grupos sabia qual tratamento havia recebido.

O efeito da estimulação verdadeira foi evidente. Rumi observou que já na primeira semana a intensidade da depressão havia baixado: passou de 32 para cerca de 20 pontos, em média, entre aqueles tratados com a bobina ativa, enquanto no outro grupo a escala ainda marcava depressão profunda – cerca de 30 pontos. Ao final da quarta semana quase todos os integrantes que receberam a estimulação verdadeira haviam melhorado bastante: metade já não estava mais deprimida e o restante tinha depressão leve. Apenas 12% dos pacientes submetidos à estimulação simulada se livraram do problema com o medicamento, segundo resultados publicados em 2005 na Biological Psychiatry.

Antes dos antidepressivos
Na Universidade Vita-Salute, em Milão, Itália, a equipe de Raffaella Zanardi observou efeitos semelhantes da EMTr em pessoas tratadas com três outros antidepressivos mais modernos: escitalopram e sertralina, que inibem a recaptação do neurotransmissor serotonina, e venlafaxina, que impede a recaptação da serotonina e da noradrenalina. Nesse estudo, detalhado em artigo do Journal of Clinical Psychiatry de dezembro de 2005, os participantes que receberam aplicações de pulsos magnéticos verdadeiros melhoraram mais rapidamente do que os tratados com estimulação inativa, embora ao final do estudo todos não apresentassem mais depressão. “Esses dados sugerem que a estimulação magnética antecipa a ação do antidepressivo, que em geral leva de duas a quatro semanas para produzir o efeito desejado”, diz Marcolin.

Nem todos concordam com Marcolin. Os mais cautelosos acreditam que ainda pode ser cedo para se liberar a EMTr para tratar depressão. Quem prefere aguardar mais lembra que, até o momento, os estudos incluíram um número relativamente pequeno de participantes, de 40 a 60 pessoas, e duraram apenas umas poucas semanas. Mas essa situação começa a mudar com a conclusão de estudos com maior número de pacientes.

No início de dezembro a psiquiatra Sarah Lisanby, da Universidade de Columbia e do Instituto Psiquiátrico Estadual de Nova York, apresentou no encontro anual do Colégio Americano de Neuropsicofarmacologia a conclusão de um estudo com 301 portadores de depressão acompanhados em 24 centros dos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Nesse ensaio financiado pela Neuronetics, uma das empresas que fabricam equipamentos de EMTr, os participantes não receberam antidepressivos por quatro semanas e metade foi tratada com estimulação magnética transcraniana, enquanto a outra parte recebeu estimulação falsa. Os índices de melhora foram mais expressivos no primeiro grupo.

Na opinião de Sarah, esses dados corroboram os efeitos antidepressivos da EMTr, comparáveis aos obtidos com os medicamentos antidepressivos no tratamento de pessoas com depressão moderada e certa resistência aos medicamentos. “Mas essa eficácia ainda é menor que a obtida com a eletroconvulsoterapia”, diz a psiquiatra, chefe da Divisão de Estimulação Cerebral e Modulação Terapêutica da Universidade de Columbia, em Nova York. O resultado desse estudo fundamentou um pedido de reavaliação da EMTr enviado à Food and Drug Administration (FDA), a agência norte-americana reguladora de alimentos e medicamentos. No final deste mês de janeiro especialistas da FDA deverão se reunir para avaliar as evidências mais recentes de segurança e eficácia da EMTr, antes de decidir se aprovam o uso amplo nos Estados Unidos, onde é utilizada ainda de modo experimental.

Ainda há muito que se investigar sobre a EMTr. Os primeiros experimentos indicando sua ação antidepressiva foram publicados pelo neurologista Alvaro Pascual-Leone, da Universidade Harvard, Estados Unidos, apenas em 1996, um século depois do médico e físico francês Jacques-Arsène D’Arsonval ter tentado pela primeira vez usar o magnetismo para mudar o estado de humor de uma pessoa. Por ora, não se sabe ao certo se o córtex pré-frontal dorso lateral é a região mais indicada para as aplicações de EMTr ou se outras áreas do cérebro produziriam melhor resultado. Também se questionam a intensidade e freqüência de pulsos mais adequadas.

No início a aplicação dessa técnica causou algumas crises epilépticas em pessoas com depressão e saudáveis, que participaram dos experimentos. Adriana Conforto, do Departamento de Neurologia da USP, investigou na Universidade de Berna, Suíça, o efeito de diferentes técnicas para definir a sensibilidade individual a esse tipo de tratamento, com o propósito de determinar a dosagem específica, eficaz e segura para cada pessoa. A freqüência e a intensidade da estimulação são outros dois parâmetros que definem o uso seguro dessa terapia. “A associação de técnicas de neuronavegação e neuroimagem funcional tem um grande potencial para o uso terapêutico da estimulação magnética transcraniana de forma segura e mais eficaz”, comenta Adriana.

Em Ribeirão Preto, os físicos Oswaldo Baffa, Dráulio Araújo e André Cu-nha Perez trabalham com o neurologista João Leite para solucionar outro problema: como encontrar a localização mais adequada para posicionar a bobina de EMTr sobre a cabeça. Eles tentam criar um programa de computador que leia imagens de ressonância nuclear magnética do cérebro e auxilie no posicionamento da bobina de forma precisa em áreas como o córtex pré-frontal.

“É crucial que as coisas sejam bem feitas”, comenta Pascual-Leone, de Harvard. “Tomamos muito cuidado no controle da qualidade, da segurança e da indicação de uso.” A equipe do IPq, em São Paulo, trabalha no desenvolvimento de diretrizes que orientem as aplicações da EMTr para fazer a manutenção do tratamento, depois que a depressão foi inicialmente debelada. O caminho  é longo, mas promissor, lembra a equipe do neurologista espanhol Jaime Kulisevsky, em artigo de 2003 avaliando o uso da EMTr contra a depressão: “Muitos tratamentos clínicos hoje usados na psiquiatria foram desenvolvidos lentamente, por meio de um processo de aprovação entusiástica inicial seguido de seu quase desaparecimento e, de novo, de uso clínico amplo e sensato”.

O polêmico eletrochoque
Quando aplicaram o primeiro eletrochoque em 1938, bem antes de surgirem os medicamentos psiquiátricos, os médicos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini acreditavam que a indução de convulsões cerebrais semelhantes às observadas na epilepsia curariam os transtornos mentais porque uma pessoa com epilepsia não poderia sofrer também de esquizofrenia. Mais tarde descobriu-se que essa idéia era falsa, mas se comprovou que o eletrochoque, usado sob condições adequadas, pode tratar a depressão profunda e outros transtornos como a esquizofrenia.

Quase 70 anos depois de ter sido aplicado pela primeira vez, o eletrochoque continua sendo uma das terapias médicas mais polêmicas de todos os tempos. Mas comparar o eletrochoque aplicado hoje nos hospitais ao que era feito até o início da década de 1980 é o mesmo que igualar as cirurgias atuais àquelas em que os bons cirurgiões eram os que cortavam o mais rápido possível para que não se sentisse dor. As sessões de eletrochoque de hoje estão longe das cenas de filmes como Um estranho no ninho, em que os personagens saem completamente inutilizados após tomarem choques muito mais intensos que os de hoje — e sem anestesia. Atualmente os médicos dão anestesia geral e relaxantes musculares antes de iniciar o tratamento: uma seqüência de brevíssimas descargas elétricas, com 1 a 2 milésimos de segundo de duração, provoca uma convulsão registrada por meio de um eletroencefalograma. A anestesia impede que se sinta dor e o relaxante evita a contração dos músculos durante a convulsão, evitando possíveis ferimentos. Além desses cuidados, quem passa por um eletrochoque recebe oxigênio e permanece sob monitoração cardíaca.

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