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Ficção

Cheiro de Leoa / “Toyota Listrado”

(música acidental)

Esta manhã as zebras do meu quintal me pareceram outras. Maiores? As mesmas, sem sombra ou listra de dúvida; ainda que a mais nova – digo, a que se afigura de mais nova – risse um riso um pouco diverso. A um bom conhecedor de zebras não seria preciso narrar que elas se deixaram vir ao dia no ritual de sempre: (depois de desgrudar cabeça-e-corpo) abriram os olhos de burros riram entre si uns zurros de asno, com muitos dentes amarelos; consertaram-se, as patas fincando paliçadas, soerguendo os restos da noite que elas não deixaram terminar de dormir e os raios do dia que não deixaram terminar de acordar, no seu afã de ruminantes – e herbívoras, e pastadoras.

A mais atirada, como em outras oportunidades, correu um meio-trote próprio seu e veio rir um riso de gengivas no retrovisor do automóvel submisso (ou conformado?) à poeira. Zebras riem muito, desculpem a repetição do termo; mas é riso mesmo riso, e não gargalho ou ascensão inteligente dos cantos da boca, como a dos ingleses; e riem com diferentes intensidades e por diferentes motivos, mas creio que não com gosto como pode o homem, ou um grande felino, ou um símio que se diverte à custa de outros entes. Simplesmente riem quando a boca o manda, ai, cartesianamente coloridas de zeros e uns. Código de barras – diferentiguais.

O ver-se no espelho faz os possíveis rodamoinhos na cuca dela, que recua a cara, depois volta uma posição e encara de novo, tentando morder o espelho, numa mordida meio boquitorta. Talvez lhe incomode a idéia de estar duas, ou duas vezes, no mesmo mundo; possivelmente lhe azucrina enxergar-se assim tão – tão só boca e dentes, desproporcionados. Talvez lhe encasquete que deve triturar, com seus molares duros e fortes, treinados e pacientes, aquela boca rival. Enfim: zebras!

Talvez lhe confunda o bafo que bota neblina naquela nova paisagem, particular sua; talvez o orvalho do bafo em si lhe irrite, tirando-lhe o direito ao prazer de se flagrar e medir, ou botando névoas no seu exercício de inteligência; talvez a ponha para jantar com a frustração, em talheres e pratos por esta escolhidos, pois não devemos nos aproximar demais de nossos sonhos: na melhor e mais improvável das hipóteses eles deixam de ser sonhos.

No mais próximo que conseguir chegar do espelho, mais frustrada ela deve ficar ao ser vencida por um borrifo; mais rápido vai reinvestir, e mais raiva verá fotografada no reflexo. E assim e assim.

Prenderam o mundo lá fora? Em nossa volta, invariavelmente, aquele cheiro – fétido, almiscarado, roto, ácido e um tanto doce, palpável, pegajoso, progressivamente cheiro: cheiro de leoa. Cheiro que eu já conhecia há tempos e que imaginava ser somente de leoa triste, daquelas majestades prostradas de jardim zoológico, decadesdentadas, aleijadas de mundo e que tudo o que lhes restou é zanzar entre quatro nãos e imaginar como seria papar aqueles ricardinhos chatos que lhes jogam balas e lhes chamam de leão. Leoa vinda, leoa ida: planos presidiários!

Estátuas de predadora espreitam. Estátuas de predadora se movem.

Leoa na natureza é maldade bem rida, diferente daquela brabeza seca, aquela raiva com mandíbula pendida que se vê em jaula. Falam de tudo, sentadas; são sérias só da fome pra frente, seja fome sua ou de seus bezerros leõezinhos. Ixe, leoas – o senso de humor, senso de desamor, faísca em seus olhos tão amarelos, e a gente sabe que humor bonzinho é humor de paróquia: humor de zebra.

Precisa ver quando a brisa traz notícia de predadoras. Zebras e sarbez se levantam e (arbez e zebra, oposto e avesso, mútuos negativos, ninguém sabe dizer o certo e o inverso, e são indissociáveis mas imiscíveis, branco-e-preto e nunca cinza; mas quando acreditam em leoas por perto, entram em um colapsismo tal que se desinvertem, se confundem, chega se trançam e se tropeçam). Destino de zebra é esse, e acredito não ser diferente com as gazelas ou até com aqueles bichinhos, os da pág. 286, que anotei roendo arbustos perto do carro ontem. Sempre terão como leitmotiv uns grandes olhos por perto, quase sempre virtuais mas vez ou outra palpáveis, e sua vida não foge disso. Aliás, sua vida é fugir disso.

(já que é disso que o povo gosta, a câmera vai:) Estátuas de predadora espreitam/Estátuas de predadora ganham vida (tambores). O trote das leoas é outra história. No fundo, no fundo, aliás, o termo “trote” não cabe, porque o meio-correr delas é desprovido de consoantes. O chão é lançado para trás numa semicorrida cheia de ombros de almofada, em que a fundista engana o barulho, caça o erro alheio e cerca o seu. Algumas dezenas de metros e a leoa
Joga um novo parágrafo
E outro
E outro, caso mal-inventado aquele. Daí, conseqüência natural, uma disparada sem vírgulas em que cada vez mais perto aqueles irritantes seres assustadiços e parrudos vestidos de sim e não e recheados de vermelho-vida brilham numa nuvem de pontos de exclamação mergulham num galope sem vogais estufado de poeira e tudo termina no ponto final do silêncio.

Eu? Não sei, sinceramente, há quanto estou aqui, trancafiado carrafado – o automóvel listrado como uma zebra quadrada preso incorporado ao chão por falta de combustível e de ajuda. Sei que fico por aqui assim, sem sair, mascando as horas. Ouço um pouco de rádio, costuro um pouco de tempo, crio a Família Camundongo no cabelo, quando não durmo estou acordado. Leio um pouco e um pouco mais do “Fauna”, por sorte que quando me lancei nesta empreitada uma lampadinha me brilhou de escolher justo o volume que serve de baú ao Velho Continente.

O sol se deposita como moeda, desce como o biscoito mais brilhante no café com leite mais seco e amplo possível. E enquanto ele abre o chão, sedento por afofar sua cama de magma, os cansaços em volta começam a acordar. Dentro das zebras, o contraste vai desaparecer até não restar listra, provando que no fim da tarde todos somos um vulto de nós mesmos.

À noite, ditado corrigido, todos os gatos são gravetos quebrando cada vez mais perto. E todos os estalidos de graveto são gatos-monstros, em negaça.

O olhar… Me olham de uma maneira ao mesmo tempo lasciva e ridicularizadora – umas esfinges. Existem coisas que não existem até que nos deparemos com elas…

Poderia escolhê-las noite após noite, um harém de beges calores? Ainda não descobri se o prazer de morder a nuca de uma destas minhas gárgulas compensaria o possível ridículo posterior. Leoas e seus outros cheiros, perfume bom de leoa… Aqueles que já perceberam nos leões falsos reis sabem que zebras não são tão más assim. Uma manhã a mais, uma zebra a menos na manada…?

Também não é de todo mau prosseguir mais um tempo aqui no Toyota quebrado, transformado numa banheira já quase transbordante pelos olhares ourados e sons crepusculares que pingam do em-redor. A savana é um crepúsculo. E, como já assinalou um mestre da escrita, a savana é o mundo…

Pedro Biondi, 31 anos, é jornalista e escritor. Tem textos literários publicados em antologias, sites e revistas. É autor do livro inédito de contos Cheiro de leoa. Trabalha como editor de primeira página da Agência Brasil.

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