Imprimir PDF Republicar

Resenhas

Retrato de mulher

Fotos recuperam a conquista feminina do século

Elas mudam o mundo com seus atos, por menores que sejam: dando uma maçã para o marido ou abrindo uma caixa. Por séculos, muitos preferiram ver nessas mudanças não uma corajosa separação entre humano e divino, mas fontes do Mal entre nós, seja com o nome de Eva ou Pandora. O importante é que tinham que ser mulheres. “Atraídas e traídas, atraímos e traímos/ Nossa tarefa: fecundar, atraindo e ultrapassar, traindo/ Nosso crime: a palavra/ Nossa função: seduzir mundos”, resume a poeta Orides Fontela, citada por Marilena Chaui nessa deliciosa homenagem à natureza feminina e seu poder de mudar a vida, Século XX: a mulher conquista o Brasil, um belo livro de fotos, do início do século até a atualidade, revelando as várias imagens da figura feminina, cuja “multiplicidade exprime um acontecimento extraordinário: a força da cultura para manter a mulher no reino da natureza”, escreve Marilena, que, ao lado da pedagoga Schuma Schumaher e da escritora Nélida Piñon, é responsável pelos ensaios que dão sentido ao nosso prazer visual.

“Os grandes vultos, os grandes heróis, assim são feitos os livros de história. Há outra história a ser contada, das personalidades invisíveis que ajudaram a construir a cultura de nosso país. Este livro conta a história da mulher brasileira do século XX, as anônimas e as visíveis”, explica Leonel Kaz, editor da obra. Para nossa felicidade, as “invisíveis” foram clicadas por grandes nomes da fotografia: Augusto Malta, Peter Scheier, Jean Manzon, entre muitos outros, em quase 170 fotos que revelam mulheres trabalhando, se divertindo, posando, fazendo política, enfim, mudando o mundo. “Se observarmos a multiplicidade de imagens da mulher, diremos que, obviamente, ela exprime as diferentes interpretações culturais da figura feminina. O curioso é notar uma constante que subjaz à variação das imagens. Todas elas têm como referência o corpo feminino como imaginado pelo discurso masculino”, nota Chaui. O toque notável do livro é justamente revelar como, apesar de suas imagens nascerem do imaginário do homem, ainda assim, elas conseguem, nas fotos, expressar a sua capacidade de luta e suas conquistas, feitas quietamente como as de Eva e Pandora. Assim, por exemplo, retratos de Alzira Vargas ao lado do pai, Getúlio, em meio a uma reunião de políticos dos mais graúdos. Ou, ainda, um belo instantâneo da líder feminista Bertha Lutz em plena campanha política e a ex-prefeita Luíza Erundina, numa imagem chocante, enfrentando policiais militares ainda como deputada estadual.

Há um quê de razão para a palavra luta ser feminina, ao menos no Brasil. As primeiras organizações de mulheres do país tinham na causa abolicionista o seu tema principal e há mesmo o caso das Cearenses Libertadoras que, já em 1884, aboliram a escravatura no estado. Outra conquista, exibida em várias fotos, foi o direito de estudar, obtido em 1827. Elas, porém, precisaram esperar até 1875 para ingressar nas universidades. A próxima batalha foi pelo direito ao voto, em que teve papel notável a bióloga Bertha Lutz. Apenas sob o governo Vargas, após a Revolução de 30, é que as mulheres venceram mais essa luta.

Mas é preciso também lembrar das mais “invisíveis entre as invisíveis”, mulheres negras, índias, que romperam tabus, como Maria José de Castro Mendes, a primeira mulher a ingressar no Itamaraty, não sem antes ver seu pedido várias vezes recusado. O livro é preciso na recuperação dessas mulheres, seja por meio de imagem de esportistas, como Maria Lenk, a primeira sul-americana a competir numa olimpíada, em 1932, seja por meio de nossas artistas, como Carmen Costa, Ivone Lara, Carolina de Jesus, entre outras. Importante, a raça não é fator limitante das conquistas femininas. Na obra há igualmente fotos de Clarice Lispector, Cora Coralina, Nise da Silveira, Rachel de Queiroz na sua posse pioneira na Academia Brasileira de Letras. Há também mulheres menos célebres, mas nem por isso menos fortes: é tocante ver a negra favelada Marli Pereira, firme e forte, passando uma tropa de PMs em revista, em busca dos assassinos de seu irmão. Ou a solidão de Alzira Soriano, a primeira prefeita eleita, em Lages, no centro de uma multidão de rostos masculinos. Evas ou Pandoras, elas souberam tomar o século de assalto.

Republicar