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Urbanismo

Dentro da boca de mil dentes

Centro de Estudos da Metrópole é um instrumento fundamental para entender e melhorar as cidades grandes

Trabalho do CEM desvenda os mecanismos materiais e simbólicos que articulam a reprodução da desigualdade e do bem-estar

MIGUEL BOYAYANTrabalho do CEM desvenda os mecanismos materiais e simbólicos que articulam a reprodução da desigualdade e do bem-estarMIGUEL BOYAYAN

“Horríveis as cidades! Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! Paulicéia – a grande boca de mil dentes. Giram homens fracos, baixos, magros. Estes homens de São Paulo, todos iguais e desiguais, quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos, parecem-me uns macacos, uns macacos”, alertou Mário de Andrade, em Paulicéia desvairada (1922), ao perceber os primeiros sinais da modernização da futura metrópole. Se a cidade moderna era libertação do homem, ela tirava sua singularidade; desiguais em suas características sociais e culturais, viraram miseravelmente iguais no aglomerado urbano, vulneráveis, segregados, enfim, menos do que homens: macacos. Esse “desvairio” só aumentou de 1922 para hoje. Afinal é preciso coragem para adentrar a tal boca. Mais: é preciso conhecimento para localizar e avisar o Estado e as entidades sobre onde estão as “cáries sociais”, como faz o Centro de Estudos da Metrópole, o CEM.

“Nosso trabalho é estudar os mecanismos materiais e simbólicos que articulam a reprodução da desigualdade e também do bem-estar em grandes centros urbanos”, afirma Eduardo Marques, professor da Usp e diretor do CEM, que desenvolve estudos sobre os processos de urbanização e metropolização de São Paulo e, mais recentemente, de outras cidades brasileiras, como Salvador e Rio de Janeiro. Até 2006, o CEM recebeu R$ 4,5 milhões da FAPESP e R$ 2,7 milhões de outras fontes; para 2007, a FAPESP disponibilizará mais R$ 950 mil e será gerado 1,2 milhão de outras fontes. Criado em 2000, e sediado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM realiza atividades de pesquisa, transmissão de conhecimento (em especial para órgãos públicos) e difusão de informações para especialistas e o grande público.
Os objetivos do centro, segundo Marques, são: analisar as mudanças em curso nas metrópoles e avaliar seus efeitos, usando novas abordagens conceituais e metodológicas; servir como centro de referência para documentação e consolidação de informações e estudos sobre a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e outras cidades; sustentar e atualizar um Sistema de Informações Geográficas (SIG), que mapeia a metrópole, inclusive por meio de satélites.

“A hipótese central e o foco de nossos esforços analíticos, hoje, é verificar que a reprodução social da pobreza é resultado de uma combinação de processos econômicos e mecanismos socio-políticos”, afirma Marques. A partir dessa constatação o CEM passou a priorizar em sua agenda de pesquisas formas de socialização, redes sociais, padrões de segregação residencial e eficácia e extensão das políticas públicas sobre esse estado de coisas. As pesquisas igualmente revelaram que havia, na literatura especializada nacional, uma ênfase excessiva no aspecto econômico na análise da dinâmica da metrópole. “Nossa pesquisa revelou um aparente paradoxo: que um cenário econômico/emprego negativo pode coexistir com melhorias nos indicadores sociais, mesmo nas regiões de favelas”, nota Marques. Entraram em cena então duas variáveis, as redes sociais e o espaço urbano, que ajudaram no entendimento dos mecanismos que ligam processos macro e estruturas com ações micro, ligadas ao indivíduo e ao comportamento familiar, cujo impacto poderia reduzir ou reforçar as desigualdades. Mesmo a religião e lazer entraram no escopo das pesquisas.

“Esse mapeamento e descobertas das nossas pesquisas permitiram o surgimento de um painel mais amplo da dinâmica espacial e social das metrópoles, não apenas trazendo novas luzes para o debate acadêmico, como também contribuindo para a idealização e formalização de políticas públicas”, analisa Marques. Nisso, o CEM tem trabalho de sobra para mostrar. Entre as várias parcerias de tecnologia com o setor público estão os seguintes projetos de transferência de tecnologia com o setor público: execução do projeto Aplicação de Geoprocessamento para a Política de Habitação em Assentamentos Precários – Ministério das Cidades; Consolidação e Atualização de um SIG com Indicadores Sócio-Ambientais e Publicação dos Resultados – Secretaria do Verde e Meio Ambiente (São Paulo); Estimativas da População Infantil e Análise da Oferta e Demanda por Serviços Educacionais – Secretaria Municipal de Educação (Guarulhos); Caracterização Socioeconômica e Estimativas da População Favelada de São Paulo – Secretaria Municipal de Habitação; Estratégias de Desenvolvimento Econômico para a Área Central do Município de São Paulo – Empresa Brasileira de Urbanização (Emurb); entre outros.

Dentre as várias formas que o CEM utiliza para disponibilizar suas pesquisas para agentes públicos e privados estão os Servidores de Mapas, que trazem dados sobre política e sociedade, comércio, condições de vida, saneamento, educação, finanças públicas, eleitorado, habitação, indústria, justiça e segurança pública, trabalho, sistema financeiro, rendimento e transporte saúde, empresas, demografia, empregos, renda mínima, renda domiciliar e dinâmica religiosa. Por meio dos Servidores de Mapas é possível analisar e comparar dados estatísticos de áreas da Região Metropolitana de São Paulo e dos 654 municípios do estado. Numa segunda etapa, o CEM também está desenvolvendo o mesmo sistema para o Rio de Janeiro e Salvador, ainda em caráter experimental. Além desse tipo de ferramenta de fácil utilização, o CEM disponibiliza bases de dados para usuários mais especializados. Para esses, o CEM tem desenvolvido cursos básicos de geoprocessamento voltados para as políticas sociais. Até o momento foram realizados quatro cursos, nos quais foram treinados mais de 70 profissionais de diversas áreas.

Vulnerabilidade
O CEM também disponibiliza, gratuitamente, CD-ROMs com informações sobre saúde, demografia, educação, regiões eleitorais, empresas, divisão geográfica (incluindo-se um extenso trabalho nas favelas) e o Mapa da Vulnerabilidade Social. Se a transferência de dados já não é tarefa fácil, a difusão de todo esse trabalho é feito por meio de palestras, inserções na imprensa e de uma revista eletrônica, a DiverCidade (o site do CEM tem uma média de 11.501 visitas, destas quase 700 são para a revista), que pode ser acessada livremente no site. No processo de divulgação das pesquisas também são utilizados documentários feitos por cineastas a partir dos achados das várias pesquisas.

“Essa forma de difusão, já adotada, e discutida há algum tempo pela antropologia, permite que façamos uma interface entre a arte e as ciências sociais. Os pesquisadores do CEM aprovam essa nossa opção diferenciada e têm o sentimento de que essa ligação traz uma oxigenação necessária”, afirma Ismail Xavier, teórico do cinema e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, que, no CEM, coordena a área de difusão. O uso do cinema traz, ao estudo árduo, o toque de “poesia” desejado por Mário de Andrade, sem que, no entanto, se deixe de lado a necessária objetividade.

“A idéia é complementar, com meios estéticos, a interlocução acadêmica e, dessa forma, alcançar um público maior”, explica. Os documentários do CEM, porém, não são meras ilustrações das pesquisas, mas têm marca autoral e recortes definidos pelos cineastas a partir dos resultados obtidos pelos pesquisadores. “Assim, a partir de uma pesquisa feita em Paraisópolis, a diretora do documentário decidiu por um recorte específico em que mulheres da região falam de sua vida. Na maioria das vezes, os próprios pesquisadores são surpreendidos com aspectos de seus estudos que eles mesmos não tinham observado.”

Vulnerabilidade social: mapeamentos feitos pelo centro direcionam políticas públicas

MIGUEL BOYAYANVulnerabilidade social: mapeamentos feitos pelo centro direcionam políticas públicasMIGUEL BOYAYAN

Para Xavier, essa tensão entre estética e objetividade científica revela o erro do afastamento da ciência da idéia de que a arte também é uma forma de conhecimento. Mas, é claro, não é a única forma utilizada pelo CEM de divulgar os resultados de suas análises sobre os padrões de desigualdade na Região Metropolitana de São Paulo e, agora, das novas cidades dissecadas por estudos. A inovação funcionou tão bem que, dos média-metragens, o centro arriscou-se, com um orçamento reduzido, a produzir um longa, Em trânsito, dirigido pelo cineasta e pesquisador do centro Henri Gervaiseau. No filme vemos o dia-a-dia dos moradores da Grande São Paulo no trânsito e no transporte coletivo e como isso se articula com outras dimensões de suas vidas. O filme foi premiado na Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 2005 e será relançado no dia 18 de maio no Cine Bombril, em São Paulo. Mais informações sobre o lançamento podem ser obtidas no site.

Em breve o longa será transformado em DVD. Enquanto isso não ocorre, o CEM vai disponibilizar por esse meio os seus média-metragens. “É uma nova experiência. Até fins de maio estará pronto um DVD reunindo os três filmes feitos pelos cineastas:A moda do centro, de Martha Nehring, Cinco mulheres de Paraisópolis, de Cláudia Mesquita, e Inventar o cotidiano, de Mônica Simões. Ele será distribuído gratuitamente para interessados e instituições de pesquisa e ensino”, revela Xavier. A difusão, é claro, não se esqueceu da televisão. Entre 2004 e 2006 foi estabelecida uma parceria entre a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e a TV Cultura, que resultou numa série de cinco reportagens feitas pela emissora a partir de pesquisas realizadas pelo CEM-Seade.

Interface
Apostando no futuro, nas mídias mais modernas, o CEM também edita uma revista virtual. “Além dos documentários, que dialogam mais intensamente com as pesquisas, estamos aprimorando mecanismos de interface mais jornalísticos entre os acadêmicos e o público especializado e geral”, conta Xavier. A revista eletrônica DiverCidade sistematizou o contato entre os pesquisadores do centro e os interessados, trazendo notícias, imagens sobre as pesquisas, trailers dos filmes e entrevistas aprofundadas que atingem o internauta comum e a imprensa, que acaba se “pautando” pelas notícias e matérias produzidas pela equipe da revista. “A intenção, com a revista, é intensificar uma forma mais jornalística de divulgação das atividades científicas do centro”, explica Xavier. O coordenador de difusão, porém, sonha, com razão, mais alto. “O nosso grande desafio é estabelecer uma relação produtiva e contínua com a Secretaria de Educação que nos propicie uma interação sistemática e funcional com a rede de ensino médio”, avisa.

“O foco de nossos esforços analíticos hoje é verificar que as situações sociais e a pobreza são resultado de uma combinação de processos econômicos com mecanismos sociopolíticos”, diz Marques. A partir de então, o CEM passou a priorizar em sua agenda de pesquisas formas de socialização, redes sociais, padrões de segregação residencial e a eficácia e extensão das políticas públicas sobre esse estado de coisas.

Daí o reconhecimento do CEM ser generalizado. “Definimos em nosso plano de governo a região central de São Paulo como prioritária para um grande programa de investimentos. Foi fundamental compreender o processo de mudança socioeconômico da região central, suas tendências e potencialidades. Uma coletânea de estudos produzidos por pesquisadores do CEM, por solicitação da Emurb, fundamentou um diagnóstico do centro e orientou as bases de contratação de um empréstimo internacional junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento”, elogiou, num texto do centro, a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy. A parceria com a Prefeitura de Guarulhos demonstrou a importância dos mapas produzidos por geoprocessamento como ferramenta para a expansão e bom funcionamento da rede escolar de uma cidade. “Os mapas ajudam a evitar uma situação típica das cidades brasileiras: carência de vagas na periferia e ociosidade no centro. Foi possível, com esse mapeamento, transferir os alunos para as escolas mais próximas de suas moradias, verificando de antemão a possibilidade de formar classes de acordo com o estágio de aprendizagem ou por faixa etária”, afirma Eneide de Lima, ex-secretária da Educação em Guarulhos.

A Secretaria de Assistência Social (SAS), da Prefeitura de São Paulo, encomendou, em 2003, ao CEM um mapeamento da vulnerabilidade social do município de São Paulo, com dados sobre o acesso da população a equipamentos públicos, como unidades de saúde, escola, lazer, entre outros. “A prefeitura nunca antes teve um estudo desse tipo nas mãos e nunca fez um plano municipal de assistência. Esse mapeamento é um instrumento de diagnóstico da cidade que nos ajuda a conhecer os níveis de desigualdade até mesmo entre as camadas mais pobres”, observa Dirce Koga (então na SAS), doutora em serviço social e consultora para políticas públicas. Trabalhos do CEM receberam elogios mesmo de autoridades da Organização das Nações Unidas, como Edna Roland, coordenadora de combate ao racismo na América Latina da Unesco (hoje coordenadora da Política de Igualdade Racial da Prefeitura de Guarulhos), que, ao se referir ao mapa de exclusão social, preconceito e estigmatização, produzido pelo centro, afirmou: “O mapa traz informações valiosas. Embora não existam leis que determinem onde o negro pode morar, há mecanismos discriminatórios, revelados pelo estudo, que permitem prever com enorme precisão os locais de moradia de negros e brancos”.

Nova geração
Em conjunto também com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o CEM organizou o seminário “Sistemas de informações aplicados às políticas públicas locais”. “Atlas são estáticos e dados de 2000 já não são os mesmos hoje, depois de meia década. Então o desafio para nós é criar um sistema que possa ser atualizado. E a realização desse seminário foi o primeiro passo para o início de uma nova geração de produtos pós-Atlas”, reconhece José Carlos Libânio, do PNUD. Mesmo o lazer está na mira dos estudos do CEM. Uma pesquisa sobre a ocupação do tempo livre na RMSP revela que os equipamentos culturais legítimos (museus, cinemas, teatros etc.) estão concentrados nas regiões centrais, enquanto a juventude, em sua maioria, está nas periferias.

“Essa análise do CEM (com o qual aliás estamos ligados, participando das discussões e tentando entender a realidade de uma grande cidade como São Paulo, mostra que há um desequilíbrio, uma assimetria efetiva com relação à concentração e à dispersão de equipamentos e demandas. É um dado efetivo e o Sesc não tem pretensão de dar sozinho a resposta”, observa Danilo Miranda dos Santos, especialista em ação cultural e diretor do Departamento Regional do Sesc no estado de São Paulo. Jovens e crianças igualmente recebem, indiretamente, os benefícios dos vários estudos do CEM, como no Portal Criança e Adolescente, ligado ao Instituto Lidas, que utiliza o material de pesquisa do centro.

O Lidas teve sua origem em 1988 no movimento de Oposição Sindical Metalúrgica na cidade de São Paulo. “Nós lidávamos com mapas quando organizávamos as greves. A partir desse trabalho me aproximei da Seplan e uma técnica me disse: ‘Você fez um GIS’. Para mim, giz era para escrever em lousa, mas logo depois verifiquei que se tratava de sistema de localização geográfica”, lembra Cleodon Silva, metalúrgico e coordenador do Lidas.

Para ele, os dados do CEM são informações, fornecendo bases de dados para o instituto, com dados de oferta de empregos, fábricas, diagnósticos etc. “Muitas entidades sociais estão usando os perfis que disponibilizamos e são do CEM. Agora boa parte dos projetos sociais tem uma melhor base de informação para reformular as políticas das várias organizações. Ressalto, em especial, os trabalhos feitos nos Jardins Ângela e Lúcia”, afirma. As mesmas informações, direcionadas para a problemática das crianças e dos adolescentes, são a substância do portal. “Em 1993, uma nova tecnologia despontava possibilitando através de software associar bancos de dados a cartografia digital, permitindo maior conforto na navegabilidade escalar, desagregando e agregando informações segundo a necessidade. O Lidas, de posse dessa tecnologia, pôde oferecer um diagnóstico adequado às novas áreas administrativas estabelecidas por lei municipal no ano anterior”, lembra. “Passados 14 anos, o Lidas tem a honra de ser convidado pelo poder público municipal, através da Secretaria Especial para a Participação e Parceria, atendendo à solicitação do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente da cidade de São Paulo, para o desafio que já se colocava em 1993.”

O CEM mexeu também com a vida de artistas e produtores de cultura como Cláudia Mesquita, do Núcleo de Audiovisual do Centro de Estudos da Metrópole e diretora de Cinco mulheres de Paraisópolis, um documentário que faz parte do projeto de difusão do centro. “Tudo teve como ponto de partida a pesquisa do CEM. Desde o começo, embora esse aspecto não fosse tematizado na pequisa, os dois antropólogos demonstraram interesse em ver privilegiada, no documentário, uma perspectiva feminina de Paraisópolis hoje. Foi por meio do trabalho do Cem que pude experimentar o exercício de realização em interlocução com pesquisas desenvolvidas no campo das ciências sociais, o que me colocou uma série de desafios novos”, acredita Cláudia. Com isso, a Paulicéia ganha suas asas, sua poesia e, talvez, no futuro, com todos esses estudos e mapeamentos, receba de volta a sua alegria e sorriso.

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