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As chaves do desenvolvimento

A saída para a América Latina pode estar na 'destruição criativa' baseada em ciência e tecnologia

MIGUEL BOYAYANMIGUEL BOYAYANMuita coisa mudou na América Latina nos últimos 17 anos. A receita de crescimento do Consenso de Washington, formulada em 1989 — que envolve disciplina fiscal, desregulamentação, privatização de estatais, entre outras medidas —, teve forte impacto na economia, nos mercados regionais e até na inovação tecnológica, mas não foi suficiente para garantir um desenvolvimento sustentável: a taxa média do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) na região não ultrapassou os 4% e as desigualdades sociais se aprofundaram. Temos um terço da população vivendo no Primeiro Mundo e dois terços às margens do mercado, disse Jorge Katz, ex-diretor da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), professor de economia industrial da Universidade de Buenos Aires, na Argentina, e professor visitante de teoria da inovação na Universidade do Chile, que esteve em São Paulo. “Precisamos superar o idílio com o Consenso de Washington.” A saída para o desenvolvimento latino-americano, na sua avaliação, está na “destruição criativa”, que, na economia do conhecimento, tem como chaves a ciência e a tecnologia (C&T).

O novo caráter da revolução necessária na América Latina foi o pano de fundo do VII Congresso Ibero-americano de Indicadores de Ciência e Tecnologia, promovido pela Rede Ibero-americana de Indicadores de Ciência e Tecnologia (Ricyt) e a FAPESP, entre os dias 23 e 25 de maio, em São Paulo. Hoje há uma nova revolução social inspirada no conhecimento que levará às mudanças sociais. Necessitamos de políticas de desenvolvimento que consolidem uma nova indústria, criem novos mercados e permitam superar a dualidade regional atendendo às demandas sociais, explicou Mario Albornoz, secretário da Ricyt. Nesse novo contexto, a construção de indicadores de C&T são ferramentas estratégicas para dar suporte às políticas regionais de desenvolvimento.

Essa é a missão da Ricyt, criada em 1995, por iniciativa do Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (Cyted): estimular e facilitar a produção de indicadores para o diagnóstico e a gestão da C&T  nos países latino-americanos, Espanha e Portugal. “Na época, constatamos que a maior parte dos países da América Latina e do Caribe carecia de estatísticas em C&T confiáveis e comparáveis internacionalmente”, lembrou Albornoz.

A rede foi arquitetada como empreendimento coletivo, já que os países envolvidos tinham problemas comuns: baixa taxa de investimento em inovação e de seus resultados para a sociedade, falta de políticas científicas e tecnológicas de longo prazo e escassez de empreendedorismo. Ela articula organismos nacionais de C&T, universidades, institutos de pesquisa e entidades regionais e tem avançado no desenvolvimento de indicadores de informação, de percepção pública de ciência, de impactos sociais da C&T e de internacionalização da ciência. Hoje vivemos uma nova etapa, cujos objetivos básicos devem ser alcançar  maior competitividade e eqüidade social, que se traduzem em necessidade de aumentar as exportações e construir vantagens comparativas dinâmicas baseadas no conhecimento, resumiu Albornoz.

Indicadores de inovação
Num congresso ibero-americano o Brasil tem posição de destaque, sobretudo quando se trata de avaliar o avanço do desenvolvimento tecnológico. O próprio Katz reconhece que aqui o Estado se manteve presente e, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), contribuiu, por exemplo, para a consolidação de uma indústria forte e diversificada, sobretudo no setor estratégico de bens de capital forte. No Chile o Estado não intervém. Agora é que está adotando política de seletividade de investimentos para construir o Chile 2020. Na Argentina é parecido, analisou.

O Brasil também está na frente em matéria de indicadores de desenvolvimento. A principal iniciativa é a Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica (Pintec), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Nas duas primeiras edições — em 2000 e 2003 — a Pintec contabilizou o número de empresas industriais inovadoras em tecnologia e processos, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), as relações de cooperação com outras instituições, pessoas ocupadas, entre outros. Na terceira edição, a ser publicada ainda este ano, a Pintec deverá incluir também o setor de serviços.

A última edição da Pintec revelou que a inovação avançava lentamente no país. Entre 2000 e 2003, embora tenha aumentado o número de empresas que realizavam P&D, esse crescimento se concentrava nas pequenas empresas que desenvolveram inovações de caráter imitativo, de menores custos e riscos. Nas demais houve queda nos gastos com a inovação. Os dados da Pintec revelam os pontos frágeis do avanço da inovação no país e apontam a direção em que deveriam ser reforçadas as políticas de desenvolvimento tecnológico.

As informações da Pintec
Baseadas em metodologia do Manual de Oslo, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – não permitem identificar o desempenho inovativo de setores específicos. Mas forneceram o insumo básico para a construção de um outro indicador mais sofisticado – o Índice Brasil de Inovação (IBI) –, resultado de uma iniciativa editorial da revista Inovação, em parceria com o Instituto Uniemp, o Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IGE), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o apoio da FAPESP.

MIGUEL BOYAYANO novo índice avalia o grau da capacidade de inovação das empresas, levando em conta os esforços de inovação e os seus resultados, permitindo assim classificar empresas dos vários setores industriais ordenados por intensidade tecnológica. O ranking das empresas mais inovadoras foi anunciado durante o VII Congresso da Ricyt. O nosso universo de classificação foram 30 empresas do setor de manufatura consultadas pela Pintec, explicou Carlos Vogt, presidente da FAPESP, e idealizador do índice.
Além das respostas das empresas ao questionário da Pintec 2003, voluntariamente cedidas à equipe de pesquisadores para a elaboração do indicador sob compromisso de sigilo absoluto, o IBI também utilizou informações relativas às patentes registradas pelas empresas no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e as da Pesquisa Industrial Anual (PIA) 2003, também do IBGE, que contabilizam investimento na qualificação de pessoal, aquisição de equipamentos, entre outros.

Tecnologia e mercado
A idéia subjacente ao índice é a de que os esforços tecnológicos não são um objetivo em si mesmo, mas instrumentos para garantir o crescimento da empresa, explicou Ruy Quadros, da Unicamp. Assim, o IBI se divide em dois grandes indicadores: Indicador Agregado de Esforços (IAE) – que leva em conta os insumos empregados no processo de inovação – e Indicador Agregado de Resultados (IAR) – que mede o impacto da inovação no desempenho da empresa. Cada um desses grandes indicadores foi subdividido em outros 15, como o de recursos humanos, de receita de venda com produtos inovadores, de patentes, entre outros.

As diferenças intersetoriais nos esforços de P&D e no número de patentes foram compensadas por meio da ponderação dos resultados obtidos por cada empresa com a média do desempenho inovativo do seu setor de atividade. Para evitar que o tamanho da empresa beneficiasse grandes empreendimentos, na avaliação do esforço inovador os pesquisadores levaram em conta a receita líquida e o número de empregados.

Os rankings setoriais de inovação foram construídos com base na similaridade de comportamentos tecnológicos. A partir desse critério, as empresas foram reunidas em quatro grupos: setores de alta tecnologia; de média-alta intensidade tecnológica; de média-baixa intensidade tecnológica; e de baixa intensidade tecnológica.

No grupo 1, de alta tecnologia, um dos mais intensivos em atividades de P&D no país, o setor automobilístico ficou com o primeiro e o terceiro lugares. A primeira colocada foi a Delphi, fabricante de autopeças, com um desempenho tecnológico muito acima da média do setor automobilístico. A Embraer ficou com o segundo lugar porque seu peso relativo no setor é muito expressivo.

No grupo 2, formado por empresas de setores de média-alta intensidade tecnológica, que realizam P&D contínua, os três primeiros lugares ficaram com a indústria química. A campeã foi a Silvestre Labs, fabricante de produtos farmacêuticos instalada no pólo de biotecnologia do Rio de Janeiro (BioRio), que teve destaque no indicador de resultados. Tem 150 funcionários, mais da metade dedicada à P&D, e já coleciona seis patentes. O segundo lugar foi da Vallé, de Montes Claros, Minas Gerais, que atua na área de saúde animal.

O grupo 3, que agrupou setores de média-baixa intensidade tecnológica, teve resultados heterogêneos. O primeiro lugar foi da Brasilata, fabricante de latas de aço com 900 funcionários,  mais de 50 patentes depositadas no Brasil e no exterior, que obteve desempenho espetacular nos indicadores de resultados.  O segundo lugar coube à Faber Castell, empresa classificada no setor de móveis e diversos, com destaque para o seu Indicador Agregado de Esforços. A Usiminas, empresa de metalurgia básica, apresentou resultados equilibrados entre esforços e resultados, ficando em terceiro lugar.

O grupo 4 reúne os setores de mais baixa intensidade tecnológica da indústria brasileira. O primeiro lugar foi da Santista Têxtil; o segundo da Grendene, fabricante de calçado, e o terceiro da Rigesa, indústria de papel e celulose.

Na sua próxima edição, o IBI deverá ser aprimorado para corrigir  desvios observados na comparação de pequenas e grandes empresas e incorporar também o setor de serviços. Mas, segundo Quadros, já apresenta uma tripla vantagem: permitirá que a sociedade conheça a atuação das empresas inovadoras por um prisma diferente dos indicadores tradicionais; servirá como referência para que o governo e as agências de fomento calibrem instrumentos de política pública voltados para o setor privado; e possibilitará às empresas avaliar seu desempenho inovativo em relação às demais concorrentes no mercado. “O próximo passo será fazer o Manual de Campinas, uma espécie de gramática do IBI, com explicações sobre sua sintaxe”, adiantou Vogt.

Acesso à ciência
Os indicadores permitem também que se avalie o grau de informação do público sobre o desenvolvimento científico e tecnológico de um país. No Congresso da Ricyt foram apresentados os primeiros resultados da pesquisa Percepção Pública da Ciência e Tecnologia, elaborada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), em parceria com a Academia Brasileira de Ciências, a Fiocruz, com a colaboração do Labjor, da Unicamp e apoio da FAPESP.

MIGUEL BOYAYANMIGUEL BOYAYANFoi a segunda investigação em nível nacional sobre o tema. A primeira foi realizada em 1987 pelo Instituto Gallup, por iniciativa do CNPq, quando se constatou que apenas 20% dos entrevistados manifestavam interesse em estudar temas da ciência. Dessa vez foram consultadas 2.004 pessoas em todo o país — com idade média de 36 anos e renda mensal média de R$ 952,29 — por meio de um questionário com perguntas quantitativas, em novembro e dezembro do ano passado. Observou-se, por exemplo, que o brasileiro gosta mais de ciência do que de política. Na Europa também é assim, comparou o pesquisador Yurij Castelfranchi, do Labjor. Mas a atração pela ciência perde para temas relacionados a medicina e saúde (60% de interesse), meio ambiente (58%), religião (57%), economia (51%) e esportes (47%).

A pesquisa também revelou  discrepâncias no acesso ao conhecimento: o acesso à informação científica varia em função da renda e da educação. O público de classe A tinha visitado museus de ciência ou de arte, freqüentado bibliotecas e zoológicos, ou ainda participado de olimpíadas de ciências nos últimos 12 meses. Esse resultado se assemelha a padrões europeus. Na classe E, no entanto, a freqüência foi bem próxima de zero. E mais: 90% dos entrevistados não souberam mencionar nenhuma instituição de pesquisa científica no país.

A pesquisa do MCT utilizou a mesma metodologia do Projeto de Indicadores de Percepção Pública, Cultura Científica e Participação dos Cidadãos, que começou a ser arquitetado pela Ricyt em 2001, no Uruguai, Espanha, Argentina e Brasil. O projeto revisou os indicadores tradicionais — que relacionam atitudes positivas quanto à ciência com o nível de escolaridade, por exemplo —, buscando ampliar a abrangência da análise  e observar o grau com que a cultura científica está impregnada na sociedade. A metodologia foi testada e aperfeiçoada e um manual de orientação de pesquisa deverá ser publicado em novembro.

Acesso à ciência
A América Latina também está empenhada em construir indicadores que permitam avaliar efetivamente a sua produção científica. A principal referência mundial é o Thomson ISI (Institute for Scientific Information), que indexa mais de 8 mil jornais e revistas científicos rigorosamente selecionados, referentes a 164 áreas do conhecimento. “Por isso, temos tido a tendência de publicar em revistas internacionais indexadas ao ISI”, afirmou Rogério Meneghini, do Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme). O impacto dos artigos de pesquisadores brasileiros, medido pelo número de citações — e a regra vale para toda a América Latina —, perde seu efeito ante a concorrência qualificada: o índice de impacto da ciência brasileira no Journal Citation Repport é de 0,20. Para efeito de comparação: o da Holanda é de 9,58 e o dos Estados Unidos, de 38,33. Na média, os artigos produzidos por países desenvolvidos têm um fator de impacto de 1,90 e o dos países em desenvolvimento de 0,30, afirmou Meneghini.

A opção por publicar em revistas indexadas ao ISI enredou os pesquisadores brasileiros num círculo vicioso, alimentado por autores, que manteve escondida boa parte da ciência produzida no Brasil nos últimos anos. A SciELO, criada em 1997, com o apoio da FAPESP e parceria do CNPq, ampliou a visibilidade da pesquisa nacional — e de uma parte significativa da ciência latino-americana — com 200 revistas indexadas, selecionadas por meio de um processo de avaliação crítico e rigoroso. Seu conteúdo é totalmente aberto e gratuito.

A consulta aos artigos  na grande maioria das bibliotecas eletrônicas, no entanto, é paga. No Brasil, a democratização do acesso é garantida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que investe US$ 32 milhões anuais na compra de assinaturas de 9 mil revistas indexadas. “Como lidar com trabalhos científicos, do ponto de vista ético, que levam a um lucro fabuloso, sem facilitar o acesso?”, indagou Meneghini, que defende  a idéia de que os artigos científicos, sobretudo os que são produto de investimentos públicos, têm de estar disponíveis em meio eletrônico, sem cobrança de taxas ou direitos autorais.

Índice Brasileiro de Inovação
As mais inovadoras

Setores de alta tecnologia
1o Delphi (automobilística
2Embraer (outros equipamentos de transportes)
3o Marcopolo (automobilística)Setores de média-alta intensidade tecnológica
1o Silvestre Labs (química)
2o Vallé (química)
3Natura (química)Setores de média-baixa intensidade tecnológica
1o Brasilata (produtos de metal)
2Faber Castell (móveis e diversos)
3Usiminas (metalurgia baixa)Setores de baixa intensidade tecnológica
1o Santista Têxtil (têxtil)
2o Grendene (calçados)

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