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História

Sem idéia na cabeça e uma arma na mão

Lampião soube usar sua imagem para criar um mito imortal

DIVULGAÇÃO/CANGACEIROS. EDITORA TERCEIRO NOMELampião e Maria Bonita por Benjamin AbrahãoDIVULGAÇÃO/CANGACEIROS. EDITORA TERCEIRO NOME

Em janeiro de 1935, um grupo de turistas pernambucanos passeava de carro quando deu de cara com Lampião e seu bando. Revirando a bagagem do grupo, um cangaceiro encontrou uma Kodak e entregou ao chefe, que perguntou a quem ela pertencia. Apavorado, um deles levantou o dedo. “Quero que o senhor tire o meu retrato”, disparou o “rei do cangaço”, pondo-se a posar. O homem, esforçando-se, bateu uma chapa, mas avisou: “Capitão, esta posição não está boa”. Dando um salto e caindo de pé, Lampião perguntou: “E esta? Está melhor?”. Outra foto foi feita. Quando libertava os turistas, após pilhá-los, o “fotógrafo” de ocasião indagou-lhe como podia enviar as imagens. “Não é preciso. Mande publicar nos jornais”, disse o cangaceiro.

Quando foi morto, em julho de 1938, em Sergipe, após 12 anos de domínio sobre o sertão, o “rei deposto” tinha os bolsos cheios de fotografias suas, como as que costumava distribuir aos seus admiradores, nas famosas paradas organizadas que fazia ao entrar nas cidades que conquistava ou protegia. “As fotografias de Lampião são da mesma sorte que os artigos e as narrativas a seu respeito, instrumentos de comunicação que lhe permitem dialogar com o mundo do litoral e desafiá-lo. Instaura-se, então, um vaivém contínuo e desejado por ele entre o mundo do sertão e o do litoral, entre o arcaísmo que lhe é atribuído e os artifícios e instrumentos dessa modernidade que o fascina e que ele soube usar a seu favor”, explica a brasilianista francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião: o senhor do sertão (seu doutorado na Universidade de Paris IV), recém-publicado pela Edusp. Numa região em que a oralidade predominava, o símbolo maior do “atraso” era um “marqueteiro” de primeira, a ponto de enfurecer outro mestre nessa arte: Vargas, que, a partir do Estado Novo, lutará contra o imaginário do “rei”.

“As fotos de Lampião e de seu bando eram uma verdadeira provocação e foram interpretadas pelas autoridades como tal. Foi uma disputa que passava pela imagem e a imprensa passou a ser o novo campo de batalha, em que a imagem fotográfica passava a ser uma arma”, observa a francesa, que também lançou recentemente Cangaceiros (Editora Terceiro Nome), reunião de 90 fotos que revelam a esperteza com que Virgulino Ferreira da Silva soube, pelas imagens e pelo imaginário, se transformar em Lampião. No livro estão também as célebres fotos tiradas pelo mascate libanês Benjamin Abrahão, protagonista do filme O baile perfumado, e fotógrafo “oficial” do bando, autor de O rei do cangaço (1936), película que mostra os cangaceiros e seu líder no cotidiano, com Lampião lendo, costurando, tendo os cabelos penteados por Maria Bonita e fingindo atacar inimigos, sob os risos mal escondidos de seus seguidores. Curiosamente, não foi o primeiro filme a tratar do tema: já em 1925 Filho sem mãe mostrava um cangaceiro em cena. Dos anos 1920 até os 1990, entre curtas, longas e documentários, há 50 exemplares do gênero, que no Brasil já serviu de mote para “nordesterns”, pornochanchadas e alegorias glauberianas.

“O gênero cangaço se constituiu de tal forma que dialogou com outros gêneros para se criar. Os filmes de aventura, o documentário, a comédia e o erótico se integraram a ele para resultar num gênero nacional que, creio, nunca deixará de existir, pois está passível de novas leituras e é sempre revisitado. É o nosso épico por excelência, um universo mitológico fundamental para a cultura brasileira”, analisa Marcelo Dídimo, autor da tese de doutorado “O cangaço no cinema brasileiro”, orientada por Március Freire e defendida este ano na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Criador de seu próprio mito, Lampião ilumina mesmo movimentos sociais. “Até fins dos anos 1950, mal se falava do cangaço, mas a partir de então sua figura ressurge num novo contexto quando o mundo rural volta a ser objeto de interesse e surge, com a consciência política camponesa, uma identidade regional nordestina que se cristaliza em torno de Lampião, que assume uma dimensão política, como um herói da luta contra a grande propriedade”, nota Élise. A ponto de, em 1959, Francisco Julião declarar, em entrevista, que “Lampião foi o primeiro homem do Nordeste oprimido pela injustiça dos poderosos a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade. É um símbolo de resistência”.

“Meio século mais tarde, o Movimento dos Sem-Terra vê também em Lampião a encarnação de um revolta contra o capitalismo rural. Qual o sentido dessa paradoxal recuperação, por movimentos de esquerda, de uma personagem desprovido de consciência e projeto político? Ele acabou por encarnar valores essenciais ao Nordeste e ao mesmo tempo é a negação deles; é aí que reside todo o poder desse personagem e sua ambivalência, zona de sombra que deixa o campo aberto a todas as apropriações”, analisa a pesquisadora. Segundo ela, a maior questão do cangaço é entender como personagens que poderiam ser considerados de pouca envergadura, com uma zona de poder e influência restrita a uma região miserável, conseguiram se transformar em reveladores das falhas de um sistema político, econômico e social, da incapacidade do Brasil de forjar sua unidade, numa época em que a sociedade queria se acreditar moderna e unificada. Lampião e um punhado de cangaceiros desafiaram não apenas os líderes locais, mas também o poder central. “Lampião, porém, não foi um revolucionário, mas um insubmisso. Sua vontade não era agir sobre o mundo para impor mais justiça, mas usar o mundo a seu gosto e em seu proveito. Diante da injustiça original ele não propõe nenhuma alternativa além da violência”, observa.

O cangaço, aliás, nasceu muito antes de Lampião, que, no entanto, foi responsável, com seu senso inato de propaganda, pela sua consolidação imagética. De início, a entrada no banditismo era fruto da necessidade de vingar uma afronta, reparar uma injustiça. Saídos da legalidade, os cangaceiros excluíam-se voluntariamente da sociedade, para recuperar sua honra e a de suas famílias. No sertão, impregnado por um espírito medieval, como já bem observou a professora Walnice Nogueira Galvão em seu Metamorfoses do sertão, havia um vínculo entre violência e certa forma de heroísmo, legitimada pela literatura popular e pelas canções de gesta. O próprio Lampião soube manipular essa forma de comunicação ao justificar sua vida de bandido como vingança contra a morte de seu pai. “Lampião fez da vingança um álibi, da reparação das ofensas pelas armas uma justificativa do horror que impôs a toda uma região”, lembra Élise. “Manipulador, estrategista, dotado de um senso notável de comunicação surpreendente para a época, ele rapidamente coloca em cena um banditismo de ostentação, em que o enfeite, o ornamento, o fausto dão destaque particular aos crimes.”

Para a francesa, Lampião transmutou o cangaço “de honra” num modo de vida, numa profissão lucrativa e glamourosa, um meio para adquirir bens materiais, riquezas e uma notoriedade que lhe permitia obter respeito de parte da classe abastada da sociedade do sertão e de algumas personalidades da vida pública e política. Sob seu reinado, multiplicaram-se a violência e as fontes de renda. Para tanto, hierarquizou o movimento, organizou para ele um código de honra e de respeito a leis internas. Também permitiu a entrada de mulheres, entre elas Dada, mulher de Corisco, que criou a roupa típica da trupe. Lampião entendeu as possibilidades da “guerra de imagens” cedo: em 1926, quando se “incorpora” aos Batalhões Patrióticos, formados para lutar contra a Coluna Prestes. Políticos e o Padre Cícero chegam mesmo a prometer a ele a patente de capitão, que usará pelo resto da vida sem nunca tê-lo sido verdadeiramente. Em março de daquele ano, ao entrar em Juazeiro, com 49 cangaceiros, foi recebido como herói por uma multidão de 4 mil pessoas, distribuindo autógrafos. “A partir desse momento foi o primeiro cangaceiro a cuidar de sua imagem, e aí reside sua originalidade. Teatralizou sua vida, usou modos de comunicação da modernidade que não faziam parte de sua cultura, como a imprensa e a fotografia”. Chamava repórteres para escrever sobre ele.

“Lampião, embalado pela ilusão de ter um papel maior a cumprir, se expôs, desfilou, pavoneou-se, exibiu seu grupo: acabara de encontrar seu público”, observa Élise. Em 1936 chegou mesmo a ponto de renunciar a uma relação direta com a imprensa, fazendo com que se escrevesse sobre ele por meio de intermediários de sua confiança e preocupou-se com comentários de jornalistas a seu respeito. Aceitou, então, o pedido de Benjamin Abrahão para registrar sua imagem, pois sabia que a dominaria a seu gosto. Com material fotográfico ofertado pela Zeiss (que enviou um par de óculos ao cangaceiro, como presente), com patrocínio da Bayer (que queria tirar proveito publicitário do filme: há fotos de Maria Bonita tendo ao fundo um anúncio para a cafiaspirina), o libanês, como cineasta, deu liberdade aos cangaceiros para mostrarem-se como queriam ser vistos, a ponto de irritar o governo federal, em particular o Departamento de Imprensa e Propaganda. “Após dura campanha do governo Vargas contra seu filme, sem a proteção dos coronéis, ele foi assassinado em 1938”, nota a pesquisadora.

No mesmo ano cairia o protagonista da película. Apesar de ter conseguido tecer uma rede de relações de clientela e corrupção no interior do Nordeste, a partir do Estado Novo, diz Élise, “ficou inadmissível que Lampião continuasse a desafiar não apenas as autoridades locais, mas todo o sistema político centralizador sobre o qual repousava a ditadura recém-instaurada”. Mortos, ele e o bando foram decapitados, ação até então inédita na guerra entre volantes e cangaceiros. “Em uma resposta à alegação de poder e invulnerabilidade do cangaceiro, exibiram sua cabeça como troféu. Estudiosos do mundo a disputaram e cientistas brasileiros, na contramão do progresso da ciência, a examinaram a partir de teorias lombrosianas”. Apenas em 1969 os troféus foram enterrados. Seu mito, porém, sobrevive. “É por isso que é preciso entender como a morte de Lampião, da qual se fez um espetáculo, como seu corpo e cabeça, reivindicados por todos os atores da época e mesmo por seus descendentes, serviram de suporte para as imagens e as representações que ainda hoje assombram o Nordeste brasileiro”.

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