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Ficção

A física dos quintais do mundo

A roda do carrinho de repor livros range, num ranger de ocupar todo salão da biblioteca. Um ranger despertador das colunas e mezaninos. Mal sabem os homens que os átomos de um lugar encharcado de conhecimento espreguiçam pela manhã e fazem festa no crepúsculo, sem respeitar sequer o último leitor temporão.

Esse carrinho é empurrado todas as manhãs pelo bibliotecário Antonios, assim mesmo, com “s” no final, como se o nome fosse um plural, e pensando bem é assaz adequado para quem empurra compêndios de assuntos plurais e outros tantos tão específicos, e outros, em menos quantidade, raros. Fato é que Antonios conhece cada ácaro dessa biblioteca que, se não bem servida por conta do descaso público, é muito bem cuidada por Antonios e Dulce, a responsável e prima do prefeito – em tempo, Antonios me pediu o cuidado de não revelar a biblioteca nem a cidade, não quer ficar mal com ninguém, conta ele, já dando pistas de que se trata de uma cidade pequena.

Naquela manhã, Antonios fez como em todas as manhãs. Veio de bicicleta, um modelo barraforte de 1985, o último modelo fabricado com freio de haste. Guardou-a no pátio, cumprimentou Dulce por força da rotina e vestiu o guarda- pó puído. Passou em revista as pequenas seções de corredores estreitos, espanando, verificando, fazendo um reparo ou outro. Tinha especial cuidado com a estante de física. Nunca completou o primeiro grau, tampouco tinha inclinação para as “malditas exatas”, mas era completamente fascinado por física. Algo ali realmente o atraía, a ponto de passar horas lendo tudo aquilo, tendo chegado a dominar toda a estante. Não tinha apreço pelos cálculos ou fórmulas, se interessava pelas intuições e pelo empenho em descobrir, concatenar e decifrar, ainda que parcialmente, na visão dele, claro, os fenômenos físicos.

E seu carinho pela seção se expressava no dedilhar livro por livro, cumprimentando toda História da Ciência, reverenciando-a ou simplesmente marcando as lombadas com afago de digitais quase apagadas. E fazia disso um rito de olhos fechados num braile todo seu.

Naquele dia, com olhos cerrados, nota um sulco, um vão entre Newton e Galileu. Abre só um dos olhos em estranheza-quase-pavor. Nota um bloco de cadernos costurados, muito semelhante a um livro prestes a receber a capa: era um trabalho de encadernação inacabado, nada mais que isso. Não fosse o título curiosíssimo, acharia que algum aluno da rede pública o deixara ali, prensadinho entre o Principia Mathematica e o Sidereus Nuncius. Retirou-o com cuidado, pois parecia tão antigo quanto aquelas reedições.

Nele, o bolor e os furinhos de traça deixavam ler: Física dos quintais do mundo, por Nébias Veiga. Edições Praianas, 1974.

Página seguinte, uma dedicatória: “Para minha mulher, Giulia, e para meus filhos que não vingaram – ou seja, todos”.

À introdução, Nébias alertava: era sobretudo um livro de física, mas que não estranharia alguém o condenar pela falta de rigor ou simplesmente o tomar por imbecil. E assim anunciava o conteúdo:

“Senhores, o que abordo aqui é nada mais que a observação de um versado em vida e apegado às disciplinas de ciência e brisa curiosa. Venho tentar explanar sobre essa ‘força motriz’, num paralelo com estudos e fenômenos já bem catalogados. E atestar que essa força universal nada mais é do que um Moleque de bairro a brincar, e assim deve permanecer.

Na natureza tudo é bem posto e bem proporcionado. E esse Moleque-partícula é assim, pois seu feitio o compele a usar os átomos como bola de gude. Mas antes, muito antes, de brincar, ainda na infância, criado com os vapores e gases nobres, aprendeu a excretar matéria escura, borrando suas fraldas de tecido, assando suas dobras de tempo. Desde cedo, desenvolveu o apetite pra tudo quanto é doce, e assim começou a atração e repulsão da matéria. Exatamente na fase mais densa, se querem mesmo saber, eis o paralelo pertinente em concentração de massa e vontades.

Seu modelo cosmológico padrão é um campinho de terra batida onde ele e seus múltiplos desafiam as próprias possibilidades da gravitação no já clássico hidrogênio versus hélio. Dessas peladas cósmicas sempre surge um talentoso pra formar um novo elemento químico. Esses moleques colidem até atingir a massa crítica, e a cada gol se forma uma estrela. Cada partida entre hidrogênio e oxigênio era um engenho de estrelas. Quem perde não é punido, mas apenas transferido pra uma dimensão inferior de tempo-espaço.

Mas os pormenores e cálculos aproximados, bem como gráficos detalhados, o leitor poderá encontrar ao longo das três partes em que este livro está dividido: Parte 1. O nascedouro – em que trato de como e por que os elementos mais primordiais forjaram o Moleque; Parte 2. O quintal – em que descrevo as brincadeiras e folguedos antimatéria, os brinquedos eletromagnéticos, inerciais e de alavanca.”

Nesse momento Antonios é interrompido por Dulce.

– Antonios, quer um café?

– Quero não! Dulce, diga uma coisa, já ouviu falar de Nébias Veiga?

– Sim, foi um padre que passou pela cidade na década de 50. Famoso por ter três amantes, Giulia, Gilce e Giuliana. Eram conhecidas como o “triângulo de Nébias”. Na época foi um escândalo, o Vaticano mandou até representante pra averiguar. O padre tinha um telescópio, e nas noites claras estudava astronomia; já nas noites escuras, apontava pra alguma janela. Nas missas colocava um bilhetinho entre o polegar e a hóstia e as moças não engoliam imediatamente, seguravam na boca para depois, discretamente, tirá-lo e ler ali geralmente alguma poesia ou algum delírio do tipo.

– E o que tem isso de tão extraordinário?

– Nada, na minha opinião. Só acho que ele exagerou quando tentou impor aquela tese disparatada sobre os Moleques. Não vai me dizer que já ouviu falar disso!

– Pra falar a verdade, eu acabei de encontrar isso na prateleira.

– Física dos quintais do mundo? Jura?

– Juro pela minha barraforte modelo!

– Modelo 85, a última com freio de haste? Sei, sei. Esse livro é mal-assombrado. Nós sempre devolvemos para o museu da cidade e ele sempre volta à prateleira, misteriosamente. Passe pra cá, vou devolvê-lo de novo.

– Espera, deixa eu terminar de ler a introdução. Veja só:

“Parte 3. A perda da inocência. Fase que o mundo adulto obriga o Moleque à retração ou ao encarceramento. É o embate da verdade se propagando pelo vácuo numa corrida de pés descalços com a mentira.”

Nas semanas seguintes, o livro sempre era devolvido duas vezes por semana. Até que sumiu por 45 dias. Foi quando Dulce, de repente, saiu da biblioteca aflita:

– Acudam o Antonios, acudam o Antonios!

– O que sucede? – pergunta Rita, a faxineira

– Ritinha, ele tá lá estatelado no chão, babando, de olhos saltados dizendo que viu um menino nu colocando um livro na estante.

– Vixe, dona Dulce. O Antonios tá variando mesmo, nunca achei ele muito normal, não.

Ele jurava e jurava que vira um menino nu trazendo de volta o Física nos quintais do mundo, jurava pelo que havia mais sagrado para ele, jurava pela sua barraforte modelo 85: a última com freio de haste.

Karmo é ilustrador e publica, todos os domingos, a tira “Dois reis”, na Folha de S. Paulo. Ilustrou o livro infantil Quem sou eu?, da Cubzac Editora. Além disso, de vez em quando escreve umas letras de samba.

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