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Ecologia

Os perigos da terra nua

Separação entre florestas e riachos elucida o escasseamento de anfíbios na Mata Atlântica e em outros ambientes

FERNANDO DE ALMEIDABastam 100 metros de descampado separando um trecho de mata e um riacho para eliminar a maioria de sapos, rãs e pererecas da Mata Atlântica que dependem da água para procriar. Quando saem da floresta rumo aos riachos onde vão se reproduzir, esses animais têm de atravessar pastagens e plantações e se expor ao ataque das aves, à contaminação por agrotóxicos e ao sol, capaz de ressecar suas peles úmidas. Muitos dos que sobrevivem aos perigos da ida não conseguem fazer a viagem de volta. Para os frágeis filhotes, essa travessia é ainda mais árdua.

Um estudo realizado em São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba, uma das áreas em que a Mata Atlântica se encontra bastante degradada no interior de São Paulo, mostrou o quanto a derrubada da vegetação natural para retirar madeira, formar plantações ou pastos ameaça a sobrevivência dos anfíbios – em especial quando a retirada da mata deixa a terra quase nua entre os dois ambientes de que esses animais precisam para se alimentar e se reproduzir.

Descrito em um artigo da edição de 14 de dezembro da Science, esse fenômeno pode explicar o desaparecimento de maior parte dos anfíbios da Mata Atlântica e de outras regiões tropicais como a América Central e a Austrália, onde se encontram em declínio as populações de sapos, rãs e pererecas, essenciais para o equilíbrio desses ecossistemas. Também pode ser aplicado para entender melhor o que acontece com os peixes de um rio quando se cria uma barragem interrompendo o caminho entre o ambiente em que vivem e aquele em que desovam, sugere o trabalho que reuniu equipes das três universidades estaduais paulistas e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Rio Grande do Sul.

CÉLIO HADDAD/UNESP Quatro espécies de anfíbios naturais da Mata Atlântica que se reproduzem na água e sofrem com a desconexão de hábitats: Phasmahyla cochranaeCÉLIO HADDAD/UNESP

No Brasil, a separação entre a mata e os riachos é conseqüência da forma de ocupação predominante em boa parte da costa, onde vivem 70% da população. Ao deixar o litoral, os colonizadores quase sempre se instalavam nas terras mais férteis do planalto próximas aos riachos. Abriam clareiras para criar gado e plantar fumo, cana-de-açúcar ou algodão. Ao mesmo tempo que garantiam o acesso à água, construíam o cenário hoje comum no Sudeste e em parte do Sul do país: uma casa ao pé de uma colina, cercada por plantações e por um campo onde pastam vacas, algumas ovelhas e um ou outro cavalo. O pouco que restou da vegetação natural muitas vezes está confinado ao topo dos morros, bem distante dos ribeirões e igarapés que se arrastam por vales nus.

Se por um lado essa forma de ocupação da terra abriu caminho para o desenvolvimento de estados como São Paulo, por outro impôs imensas barreiras a anfíbios e outros grupos de animais que necessitam da floresta e da água para viver. Os autores desse trabalho chamaram esse fenômeno de desconexão de hábitat, por destruir a ligação entre os ambientes aquáticos e terrestres indispensáveis à reprodução desses seres vivos. Seu efeito revelou-se muito mais nocivo do que outras duas formas mais conhecidas de destruição da vegetação natural identificadas na década de 1960, a redução dos ambientes naturais (perda de hábitat) e o isolamento de trechos de matas (fragmentação da paisagem).

Essas três expressões definem fenômenos aparentemente semelhantes causados pela derrubada da vegetação natural de uma área, mas que geram resultados muito distintos. Sempre que os seres humanos se instalam em áreas de Mata Atlântica ou Cerrado, por exemplo, provocam o que os especialistas chamam de perda ou redução de hábitat, cujo efeito mais evidente é a diminuição da área com vegetação original. A perda de hábitat também altera o solo e o ciclo de chuvas. Já de início as populações de animais que vivem na região começam a diminuir de tamanho à medida que o alimento escasseia.

CÉLIO HADDAD/UNESPCeratophrys auritaCÉLIO HADDAD/UNESP

Mata isolada
O desmatamento também pode deixar a vegetação confinada em blocos menores, separados uns dos outros por descampados e com pouca ou nenhuma conexão – essa é a fragmentação da paisagem. Para os animais, os principais efeitos desse tipo de alteração são sentidos ao longo de várias gerações. Espécies que necessitam de grandes áreas para sobreviver – como o muriqui, o maior macaco das Américas – não conseguem atravessar as pastagens ou plantações e permanecem em um único fragmento de mata. “Além do efeito imediato de redução da população, há outros de longo prazo sobre os animais e plantas que sobram”, explica o ecólogo Paulo Inácio Prado, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo da Science. Com o tempo, os animais isolados nos trechos de mata passam a se acasalar com parentes próximos, aumentando o risco de doenças genéticas.

A situação descrita no artigo de dezembro é ainda mais drástica, em especial para 80% das 483 espécies de anfíbios da Mata Atlântica. É o caso do sapo-de-chifre (Proceratophrys boiei), cujas larvas (girinos) se desenvolvem em córregos até que se transformem em jovens adultos capazes de sobreviver na floresta. Quando pastagens ou plantações substituem as árvores e os arbustos próximos aos ribeirões, aumentam as dificuldades para os anfíbios e outros animais, como algumas espécies de libélulas, que precisam da água para se reproduzir. “A desconexão de hábitat pode reduzir drasticamente uma população de anfíbios em apenas uma geração”, afirma o ecólogo gaúcho Carlos Guilherme Becker, primeiro autor do artigo da Science, que desenvolveu o estudo durante seu mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“A desconexão de hábitat também pode afetar outros grupos de animais”, afirma Becker. Algumas espécies de libélulas, por exemplo, usam o ambiente de modo semelhante ao dos sapos: precisam da água para procriar e da floresta para se alimentar. Também se pode entender como desconexão de hábitat a construção de barragens, que impedem a migração de peixes para a desova, e a eliminação de lagos ou grandes áreas de vegetação natural usados por aves migratórias para comer e descansar durante as longas viagens.

CÉLIO HADDAD/UNESPPhrynomedusa marginataCÉLIO HADDAD/UNESP

Becker identificou esse fenômeno ecológico ao estudar o que acontecia com os anfíbios onde poucos se animam a investigar. Em vez de se embrenhar em brejos e córregos dos remanescentes de Mata Atlântica maiores e mais bem preservados, ele se uniu ao grupo de Prado, que analisava como a interação entre os moradores de São Luís do Paraitinga e o espaço em que viviam modificava a biodiversidade da região. Ali o pouco que resta de Mata Atlântica se aninha no alto dos morros, separado dos rios por plantações, pastos e povoados.

Uma pesquisa histórica feita por Allan Monteiro, da equipe de Prado, indica que esse padrão de ocupação surgiu em meados do século XVIII, quando o rei de Portugal dom José I nomeou Luiz Antônio de Souza Botelho, o Morgado de Mateus, governador da então província de São Paulo. Com o objetivo de proteger o sul do país dos espanhóis, Morgado de Mateus iniciou a criação de cidades no interior de São Paulo. Ele dividiu o leste do estado em sesmarias e as distribuiu para quem tivesse condições financeiras para ocupá-las. “Os povoadores enviados pela Coroa portuguesa começavam a se instalar nos vales, onde estavam as terras mais férteis e fáceis de ocupar. Uma de suas obrigações era abrir estradas, normalmente às margens dos rios, ligando as sesmarias à sede das vilas”, diz Prado. “Até hoje muitas estradas vicinais de São Luís do Paraitinga seguem os traçados daquela época”.

Fragmentos secos
Sob orientação de Prado e de Carlos Roberto Fonseca, da Unisinos, Becker analisou o que acontecia com os anfíbios da Mata Atlântica em São Luís do Paraitinga. Ao procurar as manchas de floresta da região, notou que praticamente nenhuma era cortada por um rio. Depois de analisar mais de 60 fragmentos, Becker encontrou só três, com mais de 10 hectares, em que havia ribeirões. Aos poucos começou a imaginar a dificuldade que os anfíbios teriam de enfrentar para chegar aos córregos para se reproduzirem.

Para descobrir se os descampados de fato atrapalhavam os sapos, ele instalou uma tela com 45 metros de comprimento e 1 metro de altura em meio a pastos e plantações nas encostas dos morros. Sob essas barreiras, enterrou baldes de 60 litros divididos ao meio, que permitiam distinguir os anfíbios que vinham da floresta para se reproduzir nos riachos daqueles que faziam o caminho de volta para casa. Em março, no final do período de reprodução, Becker confirmou a suspeita: quando não havia vegetação unindo o córrego à floresta a quantidade de anfíbios era menor.

CÉLIO HADDAD/UNESP … e Hylodes ornatusCÉLIO HADDAD/UNESP

A desconexão de hábitat, no entanto, só afetou os anfíbios que precisavam sair da mata para se reproduzir nos córregos e riachos. Esse efeito não influenciou a variedade dos sapos que vivem exclusivamente na floresta e procriam no solo, gerando filhotes que já saem saltando pelo chão da floresta. Faltava, porém, saber se o efeito da desconexão de hábitat era exclusivo da região de São Luís do Paraitinga ou se poderia ser generalizado para outras áreas.

Becker, Prado e Fonseca se uniram então ao biólogo Célio Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro, que coordena um levantamento de anfíbios em São Paulo, e a Rômulo Batista, à época pesquisador da Unicamp. Juntos, calcularam a perda de hábitat, a fragmentação e a desconexão de hábitat em outras regiões do estado. Ao cruzar as informações sobre a diversidade de espécies com o padrão de desmatamento de cada um desses trechos de Mata Atlântica, concluíram que o número de espécies de anfíbios era mais bem explicado pela desconexão de hábitat, e não pela perda ou fragmentação das florestas, a hipótese mais aceita para o declínio das populações de anfíbios.

Além desse novo efeito, esse trabalho gera idéias que podem orientar a preservação e a recuperação do que restou da Mata Atlântica e de outros ambientes. “Ao compreender melhor como o uso humano da terra reduz a diversidade biológica nessas áreas, podemos pensar em maneiras específicas de reduzir esses danos”, afirma Prado. Uma primeira proposta é enfatizar a recuperação das matas ciliares, a vegetação que bordeja os rios. Embora protegidas desde 1965 pelo Código Florestal Brasileiro, 76% das matas ciliares de São Paulo foram destruídas.

Nas regiões que ainda não sofreram o impacto da intervenção humana, os pesquisadores propõem a criação de reservas biológicas que compreendam o maior número possível de recursos hídricos. Onde o ambiente já foi alterado, sugerem a restauração das matas ciliares e a criação de corredores de florestas reconectando os ambientes terrestres e aquáticos. “Agora”, diz Prado, “temos mais argumentos para mostrar aos proprietários de terras e aos órgãos públicos a importância de conservar e também de recuperar essa vegetação”.

O Projeto
Biodiversidade e processos sociais em São Luís do Paraitinga, São Paulo (nº 02/08558-6); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Pesquisa (Biota); Coordenador Paulo Inácio de Prado – USP; Investimento
R$ 121.023,44 (FAPESP)

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