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Revistas

Para pensar a comunicação

Programa de pós-graduação da USP lança publicação para debater as fronteiras teóricas da disciplina

EDUARDO CESAR Reprodução do quadro Central Savings de Richard Estes, 1975EDUARDO CESAR

Há quem insista na pura e simples inexistência de uma produção teórica consistente ou de pensadores originais da comunicação no Brasil. Mas há, também, entre os estudiosos da área quem invista no desmentido dessa visão que parece oscilar entre um certo ceticismo crítico e uma flagrante má vontade. E nesse campo se alinha agora Matrizes, a recém-lançada revista do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP), que vem à luz com o propósito de oferecer ao leitor material denso o suficiente, de dentro e de fora do país, para que ele possa refletir melhor e com mais instrumentos sobre a propriedade de uma ou outra posição.

É em especial no chamado dossiê, concentrado na primeira parte da alentada publicação semestral (247 páginas neste primeiro número), que Matrizes se dispõe a provocar essa reflexão e, talvez, a reorientar o debate sobre fronteiras teóricas da comunicação, às vezes excessivamente preso, para não dizer estagnado, no problema de uma definição precisa, rígida, do objeto dessa disciplina. “O dossiê será sempre temático e sempre montado sobre perspectivas autorais, quer dizer, ele deverá trazer à cena aqueles que efetivamente instigam propostas inovadoras, estabelecem pontes entre diferentes lugares a partir dos quais se pensa a comunicação, propõem um aporte contemporâneo a antigos problemas”, resume Irene Machado, uma das editoras da revista, professora de semiótica da cultura na pós-graduação e de redação em língua portuguesa na graduação da Escola de Comunicação e Artes (ECA). Não se conclua daí que somente quem lida especificamente com teorias da comunicação terá lugar nesse espaço. “O pessoal de jornalismo, fotografia, cinema etc., com competência para dizer sobre os meios com que trabalham, suas linguagens e tecnologias, certamente será chamado a ocupá-lo”, diz Irene.

Matrizes surge, na verdade, como um dos frutos do processo de profunda reestruturação por que vem passando o PPGCOM, desde 2002, sob a liderança de Maria Immacolata Vassallo de Lopes, agora sua coordenadora, além de presidente da Comissão de Pós-graduação da ECA-USP, à qual se vinculam cinco programas: Comunicação, Ciência da Informação, Música, Artes Visuais e Artes Cênicas. Foi naquele ano que o pioneiro dos 31 programas de pós-graduação em comunicação espalhados pelo país aparentemente atingiu o ponto mais crítico de sua existência, assinalado em termos formais por uma nota três na pontuação atribuída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), numa escala de um a sete.

Segundo Immacolata, naquele momento, o que os professores da ECA empenhados na reforma da pós-graduação primeiro buscaram foi “um rearranjo das competências que estavam dispersas, um reagrupamento das grandes áreas que haviam constituído historicamente a força do programa, uma espécie de ‘des-departamentalização’ para rearticular os estudos então dispersos da pós-graduação”. Buscava-se recuperar as competências de três grandes áreas de estudos: teorias da comunicação, os meios e sua produção, e as interfaces da comunicação com a cultura, a tecnologia, a educação, a política e outros aspectos da sociedade. Tudo indica que o esforço vem dando bons resultados, e sinal disso é que na última avaliação da Capes, divulgada em novembro passado, a nota do programa da USP já havia subido um ponto.

EDUARDO CESAR Revista MatrizesEDUARDO CESAR

É claro que os professores comprometidos com o programa – cuja história se narra com a criação do primeiro mestrado em comunicação do país, em 1972, e do primeiro doutorado, em 1980 – querem muito mais. Querem, por exemplo, deixar claro que têm alternativas a propor para que se pense criativamente a complexa área de comunicação. “Só um programa com a tradição e o reconhecimento do PPGCOM da USP poderia propor, como estamos fazendo, uma reflexão sobre as linguagens para, a partir delas, refletir sobre a episteme”, comenta Irene. O que a pesquisadora parece lembrar nesse comentário é que, diferentemente de outros programas, extremamente preocupados com a “cientificidade” dos estudos de comunicação – o que implicaria a rígida demarcação de seu objeto e métodos –, capaz durante algum tempo de garantir pontos adicionais na avaliação da Capes, a pós-graduação em comunicação da USP não põe de lado o âmbito da estética, em que sempre foi forte. “Em sua reestruturação o programa quer levar adiante a acolhida a novas perspectivas sem abandonar sua história”, dizem de diferentes formas Immacolata, que é uma respeitada especialista nos estudos da telenovela brasileira, Irene e Rosana de Lima Soares, outra editora da revista Matrizes, professora de mídias no jornalismo e na pós da Comunicação da USP.

Lugares-chave
Dentro dessa visão, Matrizes pode ser entendida como instrumento expressivo, ao mesmo tempo provocador e potencialmente polêmico, de um projeto acadêmico que reconhece que recortar o objeto permanece como um grande desafio da comunicação, mas não quer ficar aprisionado a isso. “O objeto é sempre instigante e desafiador porque é móvel e relacional, está sempre em transformação”, diz Irene – ainda que do ponto de vista das instâncias políticas acadêmicas o objeto da comunicação sejam sempre os meios de comunicação de massa e ponto. Mais produtivo a esse projeto de onde emerge a revista parece ser, por exemplo, considerar os lugares a partir dos quais os autores expressivos construíram suas visões da comunicação. Lugares de pensamento, bem entendido.

É assim que no primeiro dossiê reúnem-se artigos dos brasileiros Muniz Sodré, Ciro Marcondes Filho e Lucia Santaella, e dos estrangeiros Jesús Martín-Barbero, Bernard Miège e Giovanni Bechelloni, com perspectivas crítico-teóricas bem diversas. Oferece-se lado a lado com a visão de Barbero, na qual é a cidade e as relações em seu espaço o lugar para pensar contemporaneamente a comunicação ou, dito de outra forma, “as novas visibilidades políticas da vida pública apreendidas como narrativa urbana”, a originalidade do conceito de Muniz Sodré sobre o bios midiático – uma espécie de nova forma de vida, virtual, criada pela existência e pelas relações que a mídia estabelece no espaço social. Diz Muniz desse universo: “Nesse mundo de temporalidade fluida, onde o estável e o durável são postos em crise, fica afetada em vários planos a própria periodização da existência. Um deles é o da indistinção entre tempos de atividade: o tempo de trabalho pode ser o mesmo da diversão ou da formação educacional. As etapas ou os momentos antes tidos como especiais diluem-se agora no frenesi de uma presença permanente em rede. Como o acontecer é ininterrupto, fica difícil conceber atividades ‘desligadas’ ou com ‘duração’, isto é, que escapem ao ordenamento técnico do acontecimento. Este último confunde-se, às vezes, com o clique do usuário de um computador conectado à rede cibernética” (pág. 19).

Vários são os lugares, entretanto, de cada um deles surge a percepção de que é de comunicação que se trata. É assim também, como dito por Immacolota, Irene e Rosana no editorial da revista, com “as indústrias da comunicação na era global de Bernard Miège; a comunicação interpessoal que Ciro Marcondes Filho recupera a partir de Emmanuel Lévinas; as linguagens na cultura das mídias que Lúcia Santaella radiografa nos novos objetos da comunicação móvel; o cosmopolitismo examinado por Giovanni Bechelloni”. De fato, “em cada um, uma vertente teórica na apreensão do campo comunicacional”.

Matrizes, a par de toda essa densidade de conteúdo, tem uma grande preocupação em se apresentar como um projeto editorial bem construído, orgânico. Os textos bem cuidados estão em diálogo com um visual elegante, um tanto raro em suas congêneres. Ao dossiê das primeiras páginas se somam seções como Media Literacy, um espaço específico para a leitura dos produtos de comunicação “mediada em suas articulações mais agudas e pontuais”, como a telenovela ou os telefones celulares. Em Pauta, que traz à tona temas que contribuem para o amadurecimento teórico do campo da comunicação e mais resenhas e notícias de teses e dissertações.

A revista tem uma tiragem de mil exemplares e já está disponível no endereço eletrônico www.usp.br/matrizes, no qual os artigos dos brasileiros estão em inglês e os dos estrangeiros no idioma de origem.

EDUARDO CESARReflexões sobre o desenvolvimento

Com tiragem de 700 exemplares, o Caderno CRH ganhou o meio eletrônico em agosto de 2006 e está disponível no endereço www.cadernocrh.ufba.br Classificado pela Capes como revista Nacional A, recebeu no ano passado parecer favorável do Comitê Consultivo da SciELO para sua inclusão na rigorosa biblioteca eletrônica científica. A denominação Centro de Recursos Humanos remete a um conceito do final dos anos 1960, que englobava pesquisas sobre emprego, educação e questões demográficas. Hoje o espectro do centro é mais amplo — vincula-se às ciências sociais —, mas o nome foi preservado. “Os dossiês da revista se relacionam com as pesquisas que realizamos no CRH”, diz Guaraci Adeodato Alves de Souza, professora da UFBA e uma das fundadoras do  CRH. A revista é distribuída para 200 bibliotecas universitárias.

Seu projeto editorial estrutura-se em duas partes: um dossiê temático e um conjunto de seções que incorporam colaboração de autores na forma de artigos e resenhas. Em sua trajetória, a revista fomentou debates sobre temas-chave do desenvolvimento nacional e regional, como os efeitos da globalização nas relações de trabalho, a natureza da democracia e da cidadania em países de capitalismo periférico e as especificidades regionais da América Latina no cenário mundial, entre outros. “A revista se tornou um agente multiplicador da pesquisa e permite uma estreita articulação entre a pesquisa e o ensino, fundamental à inovação e ao debate de questões das ciências sociais”, diz Anete Brito Leal Ivo, que, além de ser pesquisadora sênior do CRH, também é professora de pós-graduação em ciências sociais da UFBA.

Na avaliação de Anete, a consolidação da revista se deveu a um conjunto de fatores, como a colaboração de pesquisadores de outras instituições e a capacidade de reflexão coletiva do CRH. Mas o principal deles, ela diz, é a dimensão crítica da publicação. “Essa perspectiva só foi possível porque se fundou um centro acadêmico que, desde a década de 1970, se dedicou a pensar criticamente a natureza e o caráter do desenvolvimento brasileiro”, afirma.

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