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Medicamentos

Febre criadora

Articulação entre universidades, empresas e governo facilita a descoberta e o desenvolvimento de fármacos na Inglaterra

de Oxford

CARLOS FIORAVANTIRemadoras do Tâmisa em Oxford: cultivando o senso de equipeCARLOS FIORAVANTI

A penicilina não é só um dos medicamentos mais usados do mundo. É também o resultado de uma abordagem pioneira, descrita por Robert Bud, diretor de pesquisa do Museu da Ciência, em Londres, no livro Penicillin – Triumph and tragedy, lançado no ano passado pela Editora da Universidade de Oxford. A transformação de um extrato de fungo descoberto em um modesto hospital de Londres em um pó que começou a ser usado durante a Segunda Guerra Mundial, desde então salvando milhões de vidas, representa o primeiro trabalho coletivo de desenvolvimento de fármacos no mundo.

As articulações entre as forças científicas, econômicas e políticas, tecidas com dificuldade naquela época, hoje são comuns na Inglaterra. A engrenagem de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos foi se ajustando e hoje é razoavelmente articulada, conectando universidades, empresas, governo e agências de financiamento. A pesquisa de novos medicamentos ocorre em 62 laboratórios de hospitais ou de universidades e em boa parte das quase 500 empresas farmacêuticas instaladas no Reino Unido. Como resultado, 15 dos 75 medicamentos mais vendidos no mundo nasceram e cresceram no Reino Unido, incluindo o Viagra. Só os Estados Unidos, com empresas mais atiradas aos lucros, conseguiram mais.

O governo britânico criou um ambiente favorável à inovação em fármacos, incentivando a formação de pesquisadores, a aproximação entre universidades e empresas e a comercialização da pesquisa acadêmica. Os cientistas ainda têm de fazer sacrifícios e, de vez em quando, pôr uma roupa um pouco mais formal que o guarda-pó quase branco de todo dia e gastar algumas horas conversando com empresários. Pelo menos duas vezes por ano a Isis Innovation, a empresa de transferência de tecnologia da Universidade de Oxford, promove jantares em que não faltam encorpados vinhos tintos franceses regando as esperanças de transformar as idéias nascidas em laboratórios em produtos comerciais.

Tanto os pesquisadores quanto as instituições contam com um forte apoio do governo. Os investimentos em pesquisa pública devem ter chegado a quase US$ 4 bilhões por ano em 2005/2006, embora a maior parte desse dinheiro se destine à ciência básica e a pesquisa clínica ainda seja relativamente mal servida. Quem não quiser dinheiro público pode recorrer a alguma das 25 fundações independentes, as charities. A Wellcome Trust, a maior delas, criou um fundo extra – de até £ 700 milhões (£ 1 equivale a cerca de R$ 4) por projeto durante 3 anos – para estimular a inovação biomédica até o ponto de ser apoiada pelos mecanismos habituais de financiamento. Nich Dunster, da Wellcome Trust Technology Transfer, apresentou esse fundo na BioTrinity, uma feira de negócios que reuniu durante 2 dias em Oxford empresas que pesquisam, produzem ou ajudam empreendedores a elaborar os planos de negócios a encontrar parceiros, a licenciar tecnologias, a conseguir financiamento ou a se tornar mais conhecidos no Reino Unido, na Europa ou nos Estados Unidos. Muitos diretores das pequenas e médias empresas que compareceram à BioTrinity afirmaram que pretendiam concluir os estudos clínicos iniciais dos candidatos a medicamentos em que trabalhavam e depois fazer uma parceria com grandes empresas farmacêuticas, já que não tinham dinheiro suficiente para eles próprios produzir e vender os novos produtos.

Representantes do governo que compareceram a um seminário realizado em novembro na Câmara Britânica de São Paulo mostraram interesse em estimular a criação de um ambiente de inovação em fármacos também no Brasil, de modo a superar a antiga desarticulação entre universidades, empresas e governo. Uma das novas forças é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que li­berou R$ 1 bilhão para empresas de to­dos os portes investirem na produção de princípios ativos e em inovação. “Sem inovação, estamos assumindo que somos periferia ad eternum”, comentou Pedro Lins Palmeira Filho, chefe do departamento da área industrial do BNDES. A história mostra que pode ser difícil. Há duas décadas a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), apoiada pe­­­­­lo governo, pretendia promover a síntese de fármacos e reduzir a dependência externa, mas perdeu fôlego por fal­ta de investimentos.

Em Oxford essa engrenagem fluida começou a tomar corpo em 1997, quan­do Tim Cook entrou na Isis depois de 7 anos como diretor administrativo de empresas de base tecnológica e outros 7 como investidor privado. Segundo ele, o movimento de criar empresas e levantar outras fontes de financiamento emergiu porque a universidade decidiu não só ser útil, formando empresários e políticos, mas também parecer útil e se tornar uma força econômica. Parece ter funcionado: o retorno financeiro foi dez vezes maior que o investimento. Cook e sua equipe avançaram à medida que estimularam a comunicação e as relações de confiança entre pesquisadores e empresários e evidenciaram o valor social e econômico dos cientistas. “Tudo que fazemos aqui é sociologia aplicada”, disse. Qualquer um dos 4 mil pesquisadores da universidade pode contar com a Isis para elaborar o plano de negócios, obter financiamento e gerenciar a empresa.

Para Graham Richards, diretor do departamento de química da Universidade de Oxford, um aspecto notável desse modelo é que os pesquisadores não precisam deixar o laboratório: como as novas empresas normalmente têm seus próprios gerentes, que não são os cientistas que as fundaram, quase nada muda na vida acadêmica. Não é o bastante, porém, para mudar a cultura acadêmica: “Precisamos (também) de campeões”, comentou. “Duas ou três pessoas fazem toda diferença.” Ao lado de Cook, Richards faz a diferença. Além das empresas que ele criou ou ajudou a criar, articulou a construção de um novo laboratório de química, de £ 64 milhões, sem nenhum apoio financeiro da universidade.

MUSEU FLEMINGHeroínas anônimas: as garotas da penicilina cuidando da produção dentro da universidade. Acima, a placa de Petri com o fungo que originou o medicamento mais usado no mundoMUSEU FLEMING

O departamento de química exibe o recorde de 18 spin-offs, que trouxeram £ 80 milhões para a universidade. De toda a universidade saíram cerca de 60 empresas, principalmente a partir de 1987, quando uma nova lei concedeu às universidades o direito de explorar a propriedade intelectual. Quem provocou a mudança foi a então primeira-ministra Margareth Thatcher, que não gostou nada da história de um anticorpo monoclonal desenvolvido em Cambridge que não fora patenteado e gerou muito dinheiro quando começou a ser explorado pela indústria.

Quase 50 empresas, incluindo muitas das maiores dos Estados Unidos, Europa e Japão, coordenam os testes clínicos de cerca de 500 potenciais medicamentos no Reino Unido. Os testes são feitos principalmente nos hospitais do National Health Service (NHS), o sistema público de saúde inglês. Os compostos aprovados nos testes serão depois novamente avaliados pela autoridade regulatória, a European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (Emea), que pode fornecer uma licença única para venda em todos os Estados membros da União Européia.

Esse modelo daria outro final para histórias como a da penicilina. “Fleming ficava aqui, com outros três médicos, fumando 60 cigarros por dia”, conta uma senhora sexagenária muito magra e falante, ao exibir uma pequena mesa de madeira coberta por vidros, potes e um microscópio, no segundo andar de um dos prédios do Hospital St. Mary, em Londres. Foi nessa sala em que o médico escocês Alexander Fleming em setembro de 1928, ao voltar de férias, encontrou em uma placa de Petri um fungo que exterminava bactérias.

No início Fleming trabalhou com entusiasmo. Em 1929 publicou um artigo na British Journal of Experimental Pathology, mas alguns meses depois perdeu o interesse: nem ele nem sua equipe haviam conseguido purificar a penicilina. Além disso, seu chefe imediato, Sir Almroth Wright, não gostava de bioquímicos, que poderiam resolver esse problema, e não os queria por perto.

Um dos editores da British Journal, o patologista australiano Howard Florey, que anos depois teria um papel fundamental no desenvolvimento da penicilina, deve ter visto o trabalho de Fleming, mas não o medicamento que poderia nascer dali. Nove anos depois, foi o bioquímico Ernst Chain, um refugiado judeu da Alemanha nazista, quem abriu os olhos de Florey ao encontrar o estudo de Fleming em uma biblioteca da Universidade de Oxford e desconfiar que ali havia algo precioso. Como professor da Universidade de Oxford, Florey iniciou então a transformação do extrato de Fleming em medicamento. A equipe que ele formou trabalhava ao mesmo tempo nos testes em animais, na purificação e na produção da penicilina – inicialmente em urinóis – em quantidade suficiente para fazer testes em seres humanos.

Mesmo mostrando que a penicilina aplacava infecções bacterianas em camundongos, Florey não conseguiu atrair o interesse das indústrias farmacêuticas britânicas, preocupadas em sobreviver à Segunda Guerra Mundial. Mas atravessou o mar e conseguiu apoio do governo dos Estados Unidos. As empresas farmacêuticas norte-americanas se uniram e priorizaram a produção da penicilina, enquanto as britânicas custavam a chegar a um plano comum. Mais tarde, a Inglaterra teve de comprar dos Estados Unidos a patente sobre os métodos de produção de penicilina. Fleming, Florey e Chain dividiram o Prêmio Nobel de Medicina de 1945.

Hoje Florey não teria de ir aos Estados Unidos para completar o desenvolvimento da penicilina. Poderia abrir uma empresa, pedir uma patente, conseguir financiamento, concluir a pesquisa e ganhar muito dinheiro recebendo royalties de multinacionais que produziriam penicilina e a venderiam para todo o mundo. Ao chegar à Emea é que perceberia que os ventos não estavam mais a favor. Diferentemente dos anos 1940, quando quase não havia regulação para registro de medicamentos, no atual ambiente regulatório os técnicos da Emea não aprovariam a penicilina por causa dos 3% ou mais de risco de rea­ções alérgicas que pode causar. Nada pessoal, claro: muitos outros medicamentos seriam hoje vetados.

Os europeus estão mais cautelosos também porque, como demonstrou uma exposição do Museu de Ciência que manteve o título do livro de Robert Bud, a penicilina foi uma história de triunfo sobre as infecções, mas seu uso descontrolado deixou o caminho livre para a propagação de bactérias e de vírus. Neste momento um dos maiores medos de quem vive na Inglaterra são as superbactérias, como as que causam infecção hospitalar ou tuberculose e resistem a qualquer medicamento à mão.

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