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Ficção

Vênus e Marte

LUANA GEIGERO professor doutor Paulo Schmidt, livre-docente do Departamento de Microbiologia de uma das mais respeitadas universidades do Brasil; reconhecido mundialmente por seus achados científicos; famoso pelas polêmicas com os colegas; querido por alguns; detestado por muitos; em uma manhã calorenta do mês de dezembro enviou um e-mail ao também professor doutor Silvio Nogueira, publicamente seu adversário acadêmico e, privadamente, seu rival em uma questão amorosa, propondo que após mais de 25 anos de hostilidades intelectuais e de um rompimento pessoal, escrevessem e publicassem juntos um trabalho científico.

Quando o professor Nogueira recebeu a mensagem, imediatamente a lembrança de Laura veio à sua mente. Como ela estaria? Trazia sua imagem congelada na memória, o que a conservava intocada pela idade. O outro era um homem prático; um tanto tímido pessoalmente, mas um adversário formidável nas querelas científicas. Leu a mensagem duas vezes, e adquiriu a certeza de que ali havia mais do que estava escrito. Sabia o que fazer: em poucos minutos havia encontrado o número do telefone do professor Paulo.

Quando foi atendido não soube como cumprimentar o antigo amigo. Mas teve suas suspeitas confirmadas: tratava-se muito mais do que a publicação de um paper. O professor Paulo revelou-lhe que tinha a confirmação, já fazia dois meses, de ser portador de um tipo particularmente agressivo de câncer e sua esperança de vida era pequena. Esta era a notícia ruim. A notícia boa era que havia encontrado um tipo de enzima que possuía um enorme interesse científico e econômico, pois viabilizava a transformação de celulose em etanol, com uma eficiência sem paralelo. Mas, com a doença, não estaria, brevemente, em condições de continuar seus trabalhos. Propunha, enfim, que ele assumisse seu lugar, como líder daquele projeto

– A troco de quê, Paulo? – perguntou, agressivo.

– A troco de minha paz. Não quero que você me perdoe pelo passado. Mas não vou morrer em paz se deixar este projeto na mão dos incompetentes daqui e dos aproveitadores de fora. Só você pode terminar o projeto, cuidando de uns e de outros.

Respondeu que iria meditar. Desejou boa sorte ao colega e desligou o telefone.

Em casa, o professor Nogueira sentiu-se confuso para narrar aquele dia ímpar para sua mulher. Quando terminou, Bia lhe fez a pergunta inevitável, se Paulo havia mencionado Laura. Não; não mencionou o nome dela, eu também não perguntei. Ah! Bom…, fez ela introspectivamente, o faro de mulher desconfiando. O que ele iria fazer?

Não sabia. Ou melhor: sobre Paulo Schmidt sabia tudo; conhecia em detalhes sua linha de pesquisa, desde a graduação seguiam caminhos paralelos. Compartilhavam o mesmo interesse pelas enzimas e tinham um passado em comum. Haviam morado na mesma república nos tempos da faculdade. Paulo havia lhe roubado Laura, que era a sua namorada. Não sentia culpa quando, como ?assessor? e protegido pelo anonimato, emitia pareceres cáusticos sobre os trabalhos dos orientandos de Paulo. Uma vez, no comitê científico de que fazia parte, havia dado um parecer desfavorável a um pedido do próprio Paulo. Não julgava isso um mal; ou uma desonestidade. Eram as regras de um jogo que o próprio Paulo também jogava. Assim, eram rivais na ciência e na vida.

Lembrava-se de Paulo, na época da república, recém-chegado de Paris, proclamando um exílio político nunca comprovado. Exibia o charme do romantismo ideológico da época; falava do socialismo e do Instituto Pasteur. Ele nunca tinha saído do Brasil; não tinha os dotes e os encantos do colega; não sabia música e dançava sem jeito. Era apenas um bom aluno, e tinha o senso pragmático que o levou a ser bem- sucedido na carreira; não era um romântico. Para Laura, a escolha foi fácil. Casou-se com Paulo, tiveram dois filhos, e apesar de sua fama de garanhão da universidade, eles se mantiveram juntos por quase três décadas.

Passou a dormir mal. Como católico praticante, confessou e comungou. Mas a confissão não o aliviou e, uma noite, tentou sair de uma amargura que imaginava apagada pelo tempo, narrando para o filho como ele mesmo havia apresentado Laura a Paulo.

Era 1975. Uma noite, chegou na república com Laura na hora em que Paulo tentava reproduzir no violão os acordes de Venus and Mars, do Paul McCartney. Ela conhecia a canção. Em pouco tempo, Paulo a acompanhava, enquanto ela, sentada no tapete, as pernas cruzadas, cantava:

Standing in the hall of the great cathedral,
Waiting for the transport to came,
Starship 2IZNA9,
A good friend of mine studies the stars
Venus and Mars are alright tonight.

Viu, então, surgir o encanto mútuo; o Paulo; a Laura. Tentou o que pôde, mas era uma luta perdida. O resto o filho já sabia.

O professor Paulo Schmidt faleceu quatro meses depois. O próprio filho do amigo de juventude telefonou dando-lhe a notícia. Teve que suportar o murmúrio que sua chegada provocou no velório, acompanhado por Bia e os dois filhos. Lá estava Laura com os cabelos grisalhos, desmentindo com sua velhice viva a fotografia congelada de sua memória, serena, que abraçou ele e Bia, e ele viu que era sincera ao agradecer por terem comparecido:

– Por favor, Bia, acredite. Paulo sempre se considerou amigo de seu marido.

Algum tempo depois, atendeu em sua sala o diretor da faculdade onde o professor Paulo havia lecionado. Laura havia pedido que lhe entregasse o computador pessoal do falecido professor Paulo Schmidt, o qual continha todos os dados e anotações de suas pesquisas com enzimas. O diretor piscou os olhos quando falou: porém o computador está travado com uma senha. O professor Paulo havia dito a Laura, antes de morrer, que era uma precaução para que aqueles dados não caíssem ?nas mãos de aventureiros e incompetentes?.

O professor Silvio Nogueira suspirou antes de perguntar:

– E o que mais?

O diretor enxugou o suor da testa com um lenço:

– O professor Schmidt disse para sua esposa, Laura, que o senhor saberia como destravá-lo. Disse que o senhor sabe a senha.

Então, tudo terminava ali. A ele caberia o epílogo daquela vida que ele conhecia, agora, em sua inteireza, do começo ao fim. Aquela vida, cristalizada em trabalho, estava ali, tudo estava em suas mãos.

– O que mais ele disse? – perguntou, fazendo-se de ingênuo.

– Que o senhor compreenderia quando lhe dissessem que tudo está entre o amor e a guerra.

Suspirou mais uma vez. Despediu o diretor dizendo que não era bom em enigmas, mas faria o possível. Fechou a porta da sala, e resmungava, enquanto se dirigia para o computador, que eram mesmo uns incompetentes, oras! Amor e guerra, e nem conhecem <em>rock</em> antigo. Amor e guerra, Vênus e Marte. Ligou o computador, quando a máquina pediu-lhe a senha, sem vacilar, digitou: 2IZNA9.

O computador zumbiu alegremente enquanto começava a dar acesso aos seus segredos, e o professor Silvio Nogueira ficou um longo tempo olhando por sua janela.

Carlos Eduardo Viega, economista pela Unicamp, é professor temporário no campus da USP em Pirassununga-SP. Doutorando em ciências sociais pela UFSCar-SP, pesquisa a teoria da guerra e aventura-se na ficção.

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