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Farmacologia

Guerra nas células

Descobertas indicam rumos para auxiliar o sistema imunológico no combate a infecções generalizadas

DENNIS KUNKEL Macrófago (verde) captura bactérias no pulmãoDENNIS KUNKEL

Cuidado ao virar a página. Se cortar o dedo na borda do papel, bactérias entrarão pela ferida e ali se desencadeará uma batalha. Nessas situações, as células de defesa dos tecidos, como os macrófagos, detectam as bactérias invasoras, as englobam e as matam. Esse processo libera em torno das células uma série de substâncias que indicam – como as migalhas de pão da história João e Maria – o caminho da lesão para os leucócitos, células de defesa que patrulham o corpo pela corrente sangüínea. Se tudo der certo, a infecção será controlada e passará despercebida. Mas às vezes – porque há bactérias demais ou porque o sistema imunológico está comprometido – não basta. As bactérias e a inflamação se espalham pelo organismo e causam infecção generalizada, ou sepse. É a segunda causa de morte nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) dos Estados Unidos, onde mais de 700 mil casos são registrados a cada ano – cerca de 30% destes levam à morte. A equipe do farmacologista Fernando de Queiróz Cunha, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP), está desvendando a batalha do sistema imunológico contra a sepse e indica rumos para elaborar medicamentos.

O trabalho de Cunha revela detalhes de como funciona a resposta imunológica: numa reação inflamatória, as substâncias sinalizadoras avançam até o vaso sangüíneo mais próximo, se ligam às células da parede e mandam sinais para o interior. Os leucócitos então rolam por dentro da parede do vaso até achar uma brecha, por onde saem. Em seguida seguem a trilha química até o front e juntam-se aos macrófagos para combater as bactérias, que matam com substâncias como o óxido nítrico. As substâncias liberadas nesse processo também causam uma reação inflamatória que agride os próprios tecidos.

Quando as bactérias ganham a batalha, se disseminam pelo corpo e geram um quadro de sepse, o sistema imunológico vai atrás. Num esforço extremo para conter a infecção, a própria inflamação se torna generalizada, causa queda de pressão arterial e, ao fim, falência múltipla de órgãos. Esse é o quadro hoje conhecido como sepse – o termo septicemia está caindo em desuso pelos especialistas. Pelo menos metade das pessoas que chegam a esse estado morre.

A grande surpresa para a comunidade científica internacional, por volta de 10 anos atrás, foi descobrir que as bactérias invasoras não são o problema mais sério. O grande estrago acontece porque o processo inflamatório, arma valiosa quando se trata de combater bactérias, se volta contra o próprio organismo – o mesmo descontrole que causa doenças como gota, artrite e esclerose múltipla. Parecia óbvio, bastava bloquear a inflamação para conter a sepse. Pesquisadores norte-americanos tentaram, mas sem a reação inflamatória cessa também o combate ao foco infeccioso e as bactérias se espalham sem resistência.

Para encontrar uma forma eficaz de combater a sepse, o grupo de Ribeirão Preto montou um projeto de pesquisa com três vertentes. O médico farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, coordenador do projeto, é responsável por investigar os mecanismos que causam dor diante de um processo inflamatório. Detalhar o processo da sepse e a migração de leucócitos para o foco infeccioso estão a cargo de Cunha.

Ele descobriu que o papel do óxido nítrico, que os leucócitos usam para matar as bactérias, é central no choque séptico. Dentro dos vasos, essa substância contribui para os mecanismos de defesa, pois induz o relaxamento dos músculos vasculares – assim o maior volume de sangue nos vasos leva mais leucócitos para o foco infeccioso. Mas numa situação de sepse a produção de óxido nítrico fica descontrolada e chega a ser mil vezes maior do que o normal, o que leva à queda drástica na pressão arterial. Descobrir isso sugeriu um tratamento: inibir a produção de óxido nítrico no paciente. O que parecia mais uma boa idéia, porém, deu origem a novos problemas. Sem óxido nítrico, os neutrófilos perdem seu principal agente microbicida e já não conseguem combater a infecção.

Cunha descobriu mais: óxido nítrico em excesso também inibe a migração das células. “Os leucócitos não aderem à parede dos vasos, não rolam e não respondem ao gradiente de mediadores inflamatórios”, conta. O grupo de Cunha detalhou, em artigos de 2006 nas revistas internacionais Shock, Blood e Critical Care Medicine, como isso acon­tece. As vias bioquímicas e proteínas – que dão às células um movimento semelhante ao das lesmas – não funcionam na presença de altos teores de óxido nítrico. A equipe de Ribeirão Preto demonstrou também, em artigo publicado em 2007 no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, que o óxido nítrico inibe a expressão de receptores na superfície dos neutrófilos, que por isso perdem a sensibilidade aos mediadores inflamatórios. O sistema imunológico fica assim paralisado e põe a vida do paciente em risco. Essa descoberta sugeriu rumos à equipe de Cunha. “Se restabelecermos os mecanismos de migração, a infecção é controlada”, diz ele.

É o que seu grupo busca fazer agora. Eles verificaram que uma substância essencial nessa cadeia bioquímica é o ácido sulfídrico, também conhecido como sulfeto de hidrogênio (H2S), o gás que dá mau cheiro a ovos podres. Quando se inibe sua síntese dentro dos leucócitos, a migração celular se paralisa; ao devolver H2S ao meio celular, os pesquisadores viram que as células de defesa voltam a rolar por den­­tro das paredes dos vasos sangüíneos. A estratégia é nova e o farmacologista de Ribeirão Preto está agora preparando o artigo para publicação. Para ele, os resultados são motivo para otimismo. Talvez agora a compreensão da sepse esteja mais próxima de permitir salvar vidas.

Enquanto isso não acontece, o choque séptico permanece um problema de saúde pública sem solução. Ao contrário, com o envelhecimento da população, a cada ano uma proporção maior dos pacientes de UTIs entra em sepse. Um artigo publicado em 2006 na Endocrine, Metabolic & Immune Disorders – Drug Targets, coordenado por Eliézer Silva, médico do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein em São Paulo e presidente do Instituto Latino-americano para Estudos da Sepse (Ilas), compara o impacto da sepse em diversos países e mostra que, a cada cem pessoas admitidas numa UTI norte-americana, por volta de dez entram em choque séptico.

No Brasil, Silva coordenou o estudo conhecido como Bases (Estudo epidemiológico de sepse no Brasil), que avaliou 1.383 pacientes internados em cinco UTIs brasileiras e foi publicado em 2004 na Critical Care Medicine. O estudo, um dos mais amplos no país, verificou que por volta de 30% desses pacientes entraram em sepse e metade evoluiu para choque séptico. Os intensos cuidados médicos só conseguiram salvar metade dos pacientes com sepse. A Associação Brasileira de Terapia Intensiva promoveu um outro estudo, conhecido como Sepse Brasil, que examinou mais UTIs e obteve resultados semelhantes ao Bases.

Segundo dados divulgados pelo Ilas, em 2003 o sistema de saúde brasileiro gastou R$ 41 bilhões com terapia intensiva. Desse montante, mais de R$ 17 bilhões foram destinados aos 400 mil pacientes sépticos. Com resultados insatisfatórios, já que cerca de 227 mil desses pacientes morreram devido à sepse grave, levando para o túmulo um investimento de quase R$ 10 bilhões.

Para reduzir esses números, em 2005 o Ilas aderiu à campanha internacional Sobrevivendo à Sepse. Com o objetivo de reduzir a mortalidade por choque séptico em 25% até 2009, 48 países estão implementando diretrizes internacionais de atendimento a pacientes sépticos. Para controlar e otimizar os resultados da campanha, os participantes enviam informações para um banco de dados internacional. O Brasil, com 50 instituições integradas ao programa, é um dos países que mais contribuíram com dados.

“A principal dificuldade é a mudança cultural”, explica Eliézer Silva, que em 2006 publicou pela editora Atheneu um manual para treinamento de profissionais dentro do novo conceito que tem o tempo como ponto central. As novas diretrizes determinam que quando um paciente com sepse grave chega ao pronto atendimento de um hospital é preciso imediatamente colher uma amostra de sangue para identificar o germe causador da infecção. Em seguida já nas primeiras 6 horas é essencial dar ao paciente antibióticos, soro fisiológico em grande quantidade e medicação para estabilizar a pressão arterial. Conforme a pro­gressão nesse período, uma outra série de providências são necessárias até a 24ª hora de tratamento: medicar com corticóides e proteína C ativada, controlar a glicemia e, quando o paciente está com dificuldades respiratórias, fornecer ventilação para manter a pressão de oxigênio em nível adequado. Os dados mais recentes, que ainda não foram publicados, indicam que ao longo da campanha a mortalidade por sepse já diminuiu cerca de 7%, no mundo todo. Pelo menos no que pode ser facilmente medido.

Segundo Fernando de Queiróz Cu­nha, dar alta ao paciente não equivale a um suspiro de alívio. Ele mostrou, em pesquisa com ratos ainda não publicada, que a sepse deixa o sistema imunológico debilitado. O farmacologista verificou que, passados 15 dias da crise séptica, basta borrifar bactérias perto do focinho do animal – uma situação não muito diferente de conversar com alguém resfriado – para causar a morte das cobaias. Os trabalhos de Silva e de Cunha deixam clara a necessidade de aliar pesquisa básica, clínica médica e políticas públicas para vencer a batalha contra a sepse.

O projeto
Mediadores envolvidos na  gênese da dor e na migração  de leucócitos e na sepse; Modalidade Projeto Temático; Co­or­de­na­dor Sergio Henrique Ferreira – USP/Ribeirão Preto; Investimento R$ 2.277.550,31

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