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xico sá

Ai de mim, Walter Benjamin!

FERNANDO DE ALMEIDADepois de uma paixão à primeira vista, de um namoro relâmpago, avexadíssimo, e de uma lua-de-mel mais às pressas ainda, gênero bate-e-volta, ali no balneário mais próximo, Copacabana, princesinha dos mares, ela afundou o juízo, determinadíssima, nos estudos.

Tese de doutorado.

Eu a procuro e nada.

Eu chego perto, faço carinho, insinuo, abro um vinho…

– Desculpa, amorrrr, mas estou em cima do prazo – ela diz com voz de filme macabro.

Puro Alfred Hitchcock.

– Só um recreiozinho de nada, meu bem – insisto, beijando no cangote, tentando as safadezas possíveis.

– Minha bolsa está expirando, amorrr, já te falei – ela argumenta, na maior neura, tensa, tudo bem, acontece.

– Eu te sustento – faço uma graça para ver se amoleço aquele coração acadêmico.

– Eu te avisei da tese, disse como você teria que ser compreensível – ela relembra. – Disse e repeti como era importante para a minha carreira.

Tese de doutorado.

Sobre umas coisas complexas que não entendo direito, mas finjo que manjo só para agradá-la.

Não, não sou analfa de tudo, até engano muito bem, sou capaz de discorrer horas, principalmente depois de uns vinhos, sobre livros e filmes nas mesas dos restaurantes com os amigos.

Depois do São Google, então, meu santo protetor, dou um baile. Eles abrem a discussão, eu vou ao banheiro, acesso a milagrosa ferramenta no celular e haja sabedoria, frases feitas ditas com solenidade, citações, datas, picaretagens.

Outro dia puxaram um papo sobre Brecht e mandei de primeira:

“Pensa na escuridão e no grande frio…

Que reinam nesse vale, onde soam lamentos”.

Sim, da Ópera dos três vinténs, mandei na lata, para impressionar geral, para a minha deusa acadêmica ficar orgulhosa e, quem sabe, me recompensar, esquecer um pouco aquela tese sinistra.

Recitei o Brecht em tom dramático, lindo, lindo, lindo, tão sério que até dom Ailton, nosso garçom predileto, virou estátua de sal por alguns segundos.

Mais uma garrafa e eu estava discorrendo sobre a teologia negativa em Adorno… e não me pergunte que diabo entendo por isso. É que um advogado de júri, criminalista acostumado a defender ou acusar as piores almas, tem as suas manhas e representa como um grego.

Chegamos em casa.

Estávamos altos, no ponto, era a minha crença.

Depois de alguma peleja… ela correu para o escritório e me sobrou um telecine de quinta.

Maldito Walter Benjamin. Esse é o cara da tese. A afetividade narrativa não-sei-lá-o-quê em Walter Benjamin ou, dois pontos, e mais uma ladainha sem tamanho, dane-se!

Aqueles títulos enormes de tese.

Alemão desgraçado, miserável, afetividade só se for lá com as suas negas, aqui em casa mesmo tem sido um jejum maior do que o de Jesus na Quaresma.

Eu não desistia, afinal de contas não casei com a doutora da Escola de Frankfurt, casei, com todas aquelas promessas, “na saúde e na doença”, “na riqueza e na pobreza”, com a futura mãe dos meus filhos. E para ter filhos, digamos, é preciso que haja pelo menos a conjunção carnal mínima, mesmo que seja sem nenhuma sombra de perversão ou de sacanagem, mesmo que seja estritamente dentro dos limites do catolicismo mais romano.

Não, não sou o porco chauvinista, machista, que você pode julgar a essa altura, mas essa tese tem, como digo, me tirado das minhas pobres e limitadas faculdades mentais.

É grave a crise. Nem em Lisístrata, a greve do sexo, de Aristófanes, peça que vimos juntos, na fase da conquista, há tanta perversidade.

Juro que não sei mais o que fazer.

Nem beijo na boca, daqueles beijos de recém-casados, tem ocorrido na alcova.

A futura doutora está enlouquecendo, à vera, mal posso pegar na sua bunda, ela já salta, nervosa, passando-me pitos que me fazem brochar na hora:

– Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.

São pitos ditados por Walter Benjamin. Em uma brabeza alemã de que o afetivo W.B. jamais seria capaz.

Ela citando o objeto de estudo, porém, é de um autoritarismo que nem o Adorno, coleguinha mais esquentado da Escola de Frankfurt, faria com tanta ênfase.

Pior são os trajes com os quais ela estuda essa coisa séria.

Queria que você visse os shortinhos.

Não sou de ferro, velho Benjamin.

Ela de bruços, eu balbuciando envergonhadamente um “GOSTOSA”… e ela lendo algo como um mantra benjaminiano:

– Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada.

Sim, amigo, tem hora que passa pela cabeça a vontade de ir atrás da loura mais vagabunda e burra da esquina.

Mas a perversão da futura doutora triunfa, não se sabe até quando, mas a tudo vence.

Isso mesmo, você já acompanhou teses de perto, isso mesmo, é como se ela nem estivesse ali naquele ambiente.

Amigo, trago as melhores sobremesas, tortas, ambrosias, chocolates que lhe eram afetivamente caros… Parece que nem tem paladar ou olfato.

Amigo, é duro, mas a defesa está marcada.

Defesa marcada, ou seja, a mulher está mais louca ainda.

Agora nem dorme, agora nem bom dia ou pão na chapa.

Está chegando a hora.

A banca.

Ave!, a banca!

Ela tem pesadelos com os “gorilas marxistas”, como ela trata a banca nos pesadelos.

“Aqueles neoliberais trogloditas”, ela tem pesadelo com os possíveis gorilas da ala dos marxistas arrependidos, que por acaso poderão compor a mesa.

Ela tem pesadelos.

Eu faço chás incríveis, lexotans da caatinga.

Haja também comprimidos.

Ela não dorme.

Estamos há meses sem sexo.

AMANHÃ É A DEFESA!

Se houver amanhã, amigo Sidney Sheldon, será o dia mais feliz da minha vida!

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Caballeros solitários rumo ao sol poente (romance); Catecismo de devoções, intimidades e pornografias; Modos de macho & modinhas de fêmea, entre outros.

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