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Resenha

A Rússia Americana

Estudo revela visão inovadora da terra brasileira

Se já causa estranheza o conceito de uma “Rússia americana”, o que dizer do uso dessa expressão, que reúne ideais aparentemente antagônicos, para explicar o Brasil, ou melhor, para questionar a idéia de que somos um país fadado ao atraso, partindo justamente de um elemento, a imensidão territorial, em geral, entendido como a raiz própria desse atraso? Esse é o tema complexo de que João Marcelo Ehlert Maia trata, com precisão e inteligência, em seu livro A terra como invenção, fruto de seu doutorado, vencedor do Prêmio Anpocs 2007 de melhor tese em ciências sociais.

Num exercício intelectual notável, o pesquisador procura reabrir o pensamento social brasileiro sobre as características do processo civilizador nacional, analisando obras literárias menos conhecidas de dois engenheiros-pensadores, Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso. Na idéia central da dupla a visão de um Brasil cuja formação social, na contramão do senso comum, se baseou no pragmatismo, na modernidade inconclusa e na inventividade bem como na aspereza, que ganha, com eles, status de força positiva. Nesse movimento, o país seria, para usar a expressão utilizada por Gilberto Freyre, uma Rússia americana, trazendo elementos das duas culturas na formação de um pensamento sobre a terra inovador em face daquele em vigor no Velho Mundo. Entre nós, a lógica territorialista sempre nos condenou a uma evolução que impossibilitaria a modernidade.

Daí a importância do debate que, aparentemente acadêmico, é dotado de grande atualidade, aplicável a experiências da sociedade contemporânea brasileira como favelas, ajuntamentos urbanos e sertões galvanizados pela cultura global. Como, porém, compreender uma Rússia americana? “Os exemplos russo e americano guardam diferenças, mas apontam para um campo que guarda elementos convergentes. Nas duas formações sociais, a terra foi a imagem principal de fabulações que buscavam um caminho inventivo e aberto para o processo civilizador, que não repetisse os códigos do Velho Mundo e fornecesse aos seus povos a chance de se recriarem de maneira flexível”, nota o autor.

No caso de Euclides, nos seus escritos sobre a Amazônia (Terra sem história), a chave estaria na “terra em movimento que exige uma sociabilidade nova, ao mesmo tempo bárbara – ele compara os seringueiros a personagens dostoievskianos – e inventiva”. Nessa geografia em que falharam tentativas de se adaptar uma civilização artificial, apenas uma experiência nova e “bárbara” (não vista em oposição ao moderno, mas na sua vanguarda) poderia prosperar. Licínio, em À margem da história da República, que organiza em 1920, reunindo um grupo de pensadores interessados numa visão crítica da República, vai ainda mais longe. O Brasil, como nação americana e tropical, partilharia do potencial americano dos pioneiros que desbravaram as florestas ao norte.

“Essa imagem associa uma qualidade civilizatória americana, fazendo do Brasil uma sociedade marcada pela inventividade.” Ao mesmo tempo, fala em “força da terra”, conceito russo que vê num registro de civilização pujante e aberta, a despeito da aridez da vida nas estepes. No Brasil, as duas “virtudes” se encontrariam e se tropicalizariam na Rússia americana, capaz de dar ao binômio conservação-mudança de nossa sociedade um andamento positivo, já que indicativo de uma forma de modernidade periférica ajustada a uma boa experiência civilizatória que dispensa um código moral das sociedades centrais. “O Brasil se constrói a partir do movimento constante de conhecê-lo e inventariá-lo”, observa o autor. Sorte nossa contar com um guia tão bem preparado como João Marcelo.

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