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Ficção

Cobaia

THIAGO BALBIFiz a inscrição porque quis. Ser cobaia de uma experiên­cia médica à base de mistério foi o que me motivou. Conheço outras cobaias. São pessoas curiosas, dóceis e até saudáveis. Muitas tiveram parentes mortos por doenças letais e se botam como sacrifício da ciência. É uma forma de suicídio, querem ficar iguais ao finado.

Sou técnico em informática, mas sempre quis ser médico, atender gente mais fraca que eu. Aviar receitas, orientar o horário dos comprimidos, proibir o cigarro e ver o paciente dois meses depois com o rosto inseguro, querendo que eu diga a verdade sobre seu caso. Digo que por mais três meses ele poderá ficar tranqüilo, mas que exames mais elaborados esclarecerão a origem dos sintomas. Ele dirá que os sintomas sumiram, eu informarei que é esse o sintoma do agravamento, o seu sumiço. O paciente me visitaria toda semana, os exames sempre imprecisos, confiaria em meu diagnóstico e nas bulas.

Fui médico placebo. Exerci medicina ilegal e fui pego por um juiz. Abri consultório em uma pequena cidade, havia um cardiologista e um dentista. Eu me ofereci como clínico-geral. O hospital me aceitou com os documentos falsificados que apresentei. Não mantive contato com os médicos, dizendo que nunca podia tomar um café mais tarde por conta de minha mãe adoecida, ainda tinha que dirigir por duas horas até minha cidade-dormitório. Não havia reuniões de planejamento e pude gastar o receituário por quase um ano. Namorei uma mulher de quarenta e alguma coisa, só soube que seu pai era juiz quando ele se apresentou no quarto da pensão que aluguei na cidade vizinha.

Minhas fichas são limpas, nas delegacias de polícia, nos consultórios dentários e nos financiamentos de magazine. Apesar do flagra, a queixa foi retirada e fui convidado a desaparecer, a fiança foi paga a pedido da filha madura. Topei o acordo e sumi. Tratei de levar uma vida comum, fazendo conserto de eletrônicos, o problema é que as manchetes me excitam.

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De um hospital pra outro não foi difícil. Com a ficha limpa e sem a pretensão do jaleco branco, caneta de prata e carimbo, ofereci meu sangue. Doei muito. Sou doador universal, o tipo sangüíneo mais antigo do planeta. Ou o mais ultrapassado, o caboclo que vai levando na maciota em condições naturais. Talvez seja híbrido o sangue do homem atual, com anticorpos vindos do espaço, transmitidos em alguma festa de ufólogos em Goiás. Se bem que do espaço somos todos, boiando em torno da omelete com a gema mole do sol.

A doutora Sandra, responsável pelos procedimentos, me fez várias perguntas. O hábito gentil e cívico da doação somou pontos no meu tipo psicológico, humanista e social. A ciência é rígida e seus seguidores são obedientes. Há leis de ética, punições e aquele que a exercer para fins individuais não consegue respeito nem bolsa de estudo. Ai do pesquisador que não faça uma análise de mercado, para saber o que a massa precisa e então formular suas questões. Eu daria um bom pesquisador, assim como fui excelente médico. Pesquisador ilegal é bem mais radical. Problema é que fingir ser um me escapa à técnica, ao discurso, onde pôr as mãos durante a palestra, se a armação dos óculos pode ser de acrílico fosco.

Sendo cobaia, pretendo ter acesso aos laboratórios nem que seja a portinhola de onde saem as seringas que a enfermeira gentilmente espreme no meu braço. Fico deitado em ambiente asséptico, sou bem tratado.

Um doutor me observa e disca números em um celular.

— Brandão? Deu negativo, fase quatro em andamento.

Um dia essa cena se dará dentro do corpo de um homem adulto, seremos diminuídos à nano-escala e viveremos em edifícios de osso, jardins de plaqueta, presídios de aspirina, beliches de benzetacil. Assinei uma cláusula de sigilo pela qual não poderei abrir a boca sobre exatamente o que não sei: o objetivo do experimento. Sei que há outros como eu, mas que ficaram em outra seleção, outra sala, outro contrato. Assinei também um papel em branco, mas foi em troca de uma boa grana. Agora tenho casa própria, moto roliça, geladeira cheia e plano de saúde com direito a helicóptero. Claro, a qualquer momento um pesquisador poderá criar uma nova tecnologia sob a qual deverei me expor: uma substância, uma agulha, uma ressonância barulhenta.

Tenho pra mim que eles sabem de meu passado, e meu futuro sem glória faz de meu corpo um elemento branco e peludo de laboratório. Gosto disso. E não vai ser uma estudante de direito hospitalar que irá me salvar do que ela chama de absurda violação da integridade física e mental de um cidadão. Cidadão não doa sangue, não doa o corpo, não salva vidas ainda que sem o diploma. Diga a ela que eu não assino, não denuncio, não dou testemunho.

— Sim, Brandão, estou gravando o que ele diz, a substância está em contato com a medula, posso observá-la.

Estamos na terceira sessão, o médico acha que pode rastrear meu pensamento, pois ele carrega moléculas elétricas que são detectadas por aparelhos. Essas moléculas revelariam o DNA de um possível tumor criado por pensamentos desalinhados no berço, ou seja, na minha cabeça. Os caras são loucos, eu fico quieto. Não consigo precisar um pensamento, nem impedi-lo de nascer, o tal Brandão defende que tumores malignos têm consciência, os benignos são acéfalos. Os malignos pensam por si, se reproduzem quando encontram, no corpo do ratinho, um ninho de paranóia e carinho.

O que farão com a consciência do maligno só posso especular: contato em primeiro grau, pedirão que a comunidade escolha uma molécula líder, exigirão que a líder explique sob o microscópio os seu objetivos, por fim oferecerão animais criados em laboratório no lugar do corpo humano, a molécula aceitará porque suas companheiras se rebelam justamente na multiplicação. Os cientistas terão que lidar com tumores do tamanho de animais, pois preferirão organismos constantemente alimentados para hospedá-los. Aglutinados, pensarão com força, todas as moléculas dispersas encontrariam seu território, terão time de futebol, bandeira, hino nacional e cobaias.

Andréa del Fuego é escritora, nasceu em São Paulo, em 1975. É autora da trilogia de contos Minto enquanto posso, Nego tudo e Engano seu (projeto contemplado com a bolsa de incentivo à criação literária da Secretaria do Estado de São Paulo) e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Mantém o blog www.delfuego.zip.net

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