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Química

Mais sabor no chocolate

Nova levedura reduz a acidez do cacau fermentado e melhora a qualidade da matéria-prima nacional

EDUARDO CESARCacau: sementes fermentadas produzem aroma e sabor associados ao chocolateEDUARDO CESAR

Uma receita criada no interior paulista pode melhorar a qualidade final do cacau nacional destinado à fabricação de chocolate. Uma equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba acredita ter encontrado uma forma de reduzir um dos traços menos atraentes das sementes desse fruto plantado em solo brasileiro: sua elevada acidez. A característica indesejada deriva da fermentação incompleta das amêndoas de cacau, processo que normalmente ocorre de maneira espontânea nas próprias fazendas produtoras, desencadeado por fungos naturalmente presentes nos frutos. Para contornar esse problema, os cientistas criaram um kit de fermentação, do qual faz parte uma levedura híbrida da espécie Kluyveromyces marxianus. Dessa forma obtiveram um maior controle dessa etapa produtiva e diminuíram em cerca de 25% a acidez da massa de cacau.

“O kit é simples, mas funciona bem”, diz o engenheiro agrônomo Flavio Tavares, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), especialista em genética de microorganismos e criador da nova levedura. O kit foi testado em pequena escala em duas fazendas da região de Ilhéus, no sul da Bahia, tradicional zona cacaueira, e a qualidade do chocolate obtido a partir do cacau fermentado com a cepa K. marxianus foi, segundo testes feitos pelos cientistas com 30 consumidores, superior ao do chocolate produzido com cacau fermentado de forma natural. Os resultados do trabalho estão relatados na edição de agosto da revista científica FEMS Yeast Research. Para proteger seu método de fermentação, os pesquisadores pediram uma patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Etapa que antecede a conhecida secagem das amêndoas de cacau, a fermentação é responsável por gerar precursores dos aromas, sabores e até da cor associados ao chocolate. Sem uma fermentação adequada, não se obtém uma boa massa de cacau, ingrediente indispensável num chocolate de nível superior. Cacau não plenamente fermentado costuma resultar em chocolates com sabor mais verde, mais ácido, pouco apreciado pelo consumidor. A nova levedura parece ser benéfica porque ataca a causa que faz as sementes não fermentarem em sua plenitude: reduz o excesso de polpa que reveste os grãos do fruto. Essa mucilagem, que pode responder por cerca de 40% do peso fresco das sementes, impede a plena aeração das amêndoas de cacau, dificultando assim o processo de fermentação. Em tese, contornar o empecilho é fácil. Basta remover mecanicamente ou com o auxílio de agentes químicos, como certas enzimas, a quantidade extra de polpa das sementes. “O problema é que fazer isso em larga escala custa caro para os produtores de cacau”, explica Antonio Figueira, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena-USP), de Piracicaba, outro autor do trabalho. A saída foi procurar por uma alternativa eficiente, mas de custo reduzido.

Originalmente desenvolvida na Esalq para clarear sucos e xaropes de frutose feitos de tubérculos, a variedade híbrida da levedura K. marxianus revelou-se útil no processo de fermentação das sementes de cacau devido à sua alta atividade pectinolítica. Em bom português, isso quer dizer que o fermento é capaz de degradar de forma eficaz a pectina, um polissacarídeo abundante na parede celular da polpa. A levedura transforma a pectina em açúcares menores, mais fáceis de serem fermentados. “Com a levedura, tentamos degradar rapidamente a polpa, para aerar a massa de cacau, e favorecer a fermentação”, afirma Tavares. Nos experimentos que fizeram numa fazenda de cacau na Bahia, os pesquisadores observaram uma evidência bastante palpável da ação da levedura híbrida: houve um aumento de um terço na produção do chamado mel de cacau, um líquido rico em açúcares derivado da polpa, nas fermentações induzidas pela K. marxianus quando comparadas às fermentações naturais. Outro indício foi a maior presença de amêndoas marrons no final das fermentações estimuladas pela levedura híbrida do que nas naturais. A cor mais escura é uma prova informal de que a fermentação ocorreu nas sementes. Quimicamente, os pesquisadores obtiveram outro dado que comprova os efeitos benéficos da K. marxianus: mediram a menor presença de ácidos (sobretudo o lático e o acético) nas amêndoas fermentadas.

Não é qualquer levedura que atua na fermentação do cacau. É preciso ter em mãos um microorganismo capaz de se manter ativo nas condições em que se dá esse processo. Empírica e complexa, a fermentação costuma durar de cinco a sete dias, envolve várias reações químicas (algumas só ocorrem na presença de oxigênio enquanto outras dispensam sua companhia) e pode elevar a temperatura da massa de cacau a 50°C. Para complicar mais a situação, uma série de microorganismos naturalmente presentes no ambiente da fermentação – leveduras de várias espécies, outros tipos de fungos e bactérias láticas e acéticas – costuma  iniciar espontaneamente o processo. Portanto, para se mostrar efetiva, uma levedura introduzida pelo homem na fermentação precisa lidar com essas variáveis e ainda manter o controle do processo. A nova cepa da K. marxianus parece dar conta dessas tarefas. “Agora queremos testá-la numa escala maior, em grandes fazendas, para ver se os resultados se mantêm”, diz Figueira.

Artigo científico
LEAL JR., G. A., et al. Fermentation of cacao (Theobroma cacao L.) seeds with a hybrid Kluyveromyces marxianus strain improved product quality attributes. Fems Yeast Research. v. 8, p. 788-798. ago. 2008.

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