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Esper Abrão Cavalheiro

Esper Abrão Cavalheiro

Neurocientista explica por que é importante criar grupos de pesquisa em torno das tecnologias convergentes

Se o Brasil não entrar no debate sobre as convergências tecnológicas correrá o risco de ver os países desenvolvidos decidindo por nós, alerta Cavalheiro

Marcia MinilloSe o Brasil não entrar no debate sobre as convergências tecnológicas correrá o risco de ver os países desenvolvidos decidindo por nós, alerta CavalheiroMarcia Minillo

Um pouco antes do século passado se encerrar, em 1999, grupos de pesquisadores começaram a se reunir nos Estados Unidos para estudar de modo interdisciplinar as interações entre os sistemas vivo e artificial com o objetivo declarado de desenhar dispositivos que permitissem expandir ou melhorar as capacidades cognitivas e comunicativas, a saúde e a capacidade física do homem e, assim, produzir, em tese, um maior bem social. Esses estudos deram origem ao que foi batizado de tecnologias convergentes, pesquisadas hoje em profundidade na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália e no Japão.

No Brasil, o tema começou a ser discutido graças, em grande parte, ao neurocientista Esper Abrão Cavalheiro, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (CNPq) e atual assessor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Na agenda cultural da exposição Revolução genômica, Cavalheiro expôs o tema “Tecnologias convergen­tes e a construção do novo homem”. Seu objetivo é fazer o Brasil se integrar ao debate internacional e criar grupos de estudo. “Nos dois maiores documentos já redigidos sobre o assunto, o norte-americano e europeu, há capítulos específicos discutindo as convergências para o Terceiro Mundo”, diz. “Eles debateram o que poderia ser apropriado para nós nessas áreas sem a participação de pesquisadores do mundo em desenvolvimento.”

As tecnologias convergentes são a união de quatro áreas da ciência e tecnologia. Em comum, elas têm o fato de serem recentes e importantes para a economia e desenvolvimento da sociedade em geral. A proposta é que caminhem entrelaçadas para contribuir com o aprimoramento do ser humano. São elas: nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação (TI) e neurociência (ou ciências cognitivas). A nanotecnologia mostra como se pode construir e trabalhar no universo do imensamente pequeno e tirar vantagem desse conhecimen­to. Na biotecnologia há um conjunto de metodologias que permite compreender a vida de forma geral, utilizando as ferramentas da genômica. A TI pode ser definida como o conjunto das atividades e soluções oriundas da computação para geração e uso da informação. “A força da TI pode ser vista, por exemplo, nos pequenos celulares. Já há alguns deles com 140 funções, embora eu, pessoalmente, só use como telefone e, talvez, para tirar fotos”, diz Cavalheiro. As ciências da cognição são a fronteira do ainda pouco conhecido, de como o cérebro funciona e de como pode ser alterado a favor do homem.

Maior eficiência
Juntas, as quatro áreas formam a sigla NBIC (iniciais das palavras em inglês). “Essas linhas de pesquisa têm caminhado em paralelo. Muitas vezes elas se encontram, como é o caso da nano e da bío, por exemplo, e depois voltam a se afastar.” O que se quer agora é a união das quatro para além da simples multidisciplinaridade. “Mais recen­temente uma quinta linha se uniu às outras quatro – trata-se da biologia sintética, a capacidade de modificar um gene por meio da engenharia genética.” A primeira reunião formal com pesquisadores dos quatro setores ocorreu em 2001, nos Estados Unidos, na qual foram propostas aplicações para as tecnologias convergentes. Foram elas: a expansão da cognição e da comunicação humana, o aprimoramento da saúde, da capacidade física e do alongamento da vida, segurança nacional, unificação da ciência e tecnologia com educação, redimensionamento das organizações dos negócios, nova dimensão política, investimentos e nova infra-estrutura para a ciência, tecnologia e educação.

O assessor do CGEE detalhou algumas dessas aplicações no decorrer da palestra. Sobre a expansão da cognição e da comunicação humana, por exemplo, o mais importante é criar um programa que permita entender a mente humana. “Depois devemos desenvolver dispositivos para uma interface entre o cérebro e a máquina que permita aprimorar a mente ou levar informações muito mais rápidas para ela, enriquecer a comunidade por meio de tecnologias mais humanizadas e aprender a aperfeiçoar instrumentos que facilitem a criatividade”, diz. Já para melhorar a saúde e a capacidade física são pesquisados, na área de nanotecnologia, nanobioprocessadores que possam ser utilizados para novas estratégias terapêuticas. Também se pesquisa a possibilidade de implantes de base nanotecnológica com o objetivo de regenerar ou aprimorar órgãos e sistemas. Hoje já existem chips colocados experimentalmente na mus­­­culatura do animal que o faz andar mais rápido. “Imagine se conseguirmos usar isso em pessoas sem que elas tenham fadiga, aumen­taríamos muito nossa capacidade física sem estresse”, comenta.

Na parte de aprimoramento das relações sociais, Cavalheiro acha que seria fantástico se a barreira de comunicação pudesse ser rompida com cada um falando uma língua diferente e todos se entendendo graças a chips instalados nas pes­soas que funcionassem como tradutor. Haveria um óbvio aumento da eficiência e cooperação dos ambientes educacionais. “O que é importante e está presente nos documentos dos Estados Unidos, da Europa, da Austrália, do Japão é a palavra ‘produtividade’”, ressalta. “Isso significa que queremos seres humanos mais eficientes e produtivos.” Nas discussões internacionais de que participa, Cavalheiro também nota grande preocupação com a questão da segurança nacional. Pa­­ra todos os países seria importante se antecipar a ameaças externas, construir veículos de combate teleguiados para evitar mortes e ela­­borar respostas adequadas a possíveis ataques químicos e biológicos.

Nas questões de saúde, é comum as pessoas aceitarem transplantes e outras conquistas tecnológicas. “Na verdade, a única coisa que eu me recusaria a trocar é o cérebro, porque o cérebro sou eu”, avalia. Vale receber coração, braço, perna, fígado, tudo quanto estiver ruim, mas o cérebro é a identidade de cada um. Os anos 1990 foram instituídos como a década do cérebro pelo então presidente George Bush (pai). Ele convocou todos os organismos públicos para que participassem com programas, cerimônias e atividades especiais. Agora foi proposta a década da mente, para começar em 2010. Os objetivos são entender, tratar, enriquecer, modelar e proteger a mente.

Nem tudo, no entanto, traz apenas benefícios pessoais para o “novo homem”. Os avanços na neuroimagem são enormes e, a partir dos estudos que verificam quais são as áreas ligadas à emoção e à tomada de decisão, há toda uma indústria atrás. Como é que se pode influenciar a tal “tomada de decisão” a partir de estímulos adequados aplicados na área da emoção? “As bolsas de valores norte-americanas calculam que esse mercado, isto é, a possibilidade de influenciar mais diretamente as escolhas ‘comerciais’ das pes­soas, pode gerar US$ 1 trilhão por ano”, informa Cavalheiro. A pergunta que se faz é quem tem o direito de usar informações como essa sem que as pessoas saibam? Hoje, as drogas que atuam no sistema nervoso central, chamadas de neurocêuticas, aparecem divididas em três categorias. As cognecêuticas são as que atuam nos processos de tomada de decisão, aprendizado, atenção e memória. As emociocêuticas atuam no humor, sentimentos, motivação e alerta – as drogas antidepressivas e ansiolíticas podem entrar nessa categoria. E as sensocêuticas agem na recuperação e aprimoramento dos sentidos permitindo ver, ouvir e sentir cheiro e gosto de forma diversa. O glutamato de sódio poderia estar nesta última categoria já que altera a sensibilidade dos receptores gustativos ressaltando o sabor dos alimentos. “Se existirem instrumentos e drogas que façam aprender melhor e mais rápido quem irá decidir em quais indivíduos e em que condições eles poderão aplicados? Esse é um novo problema que surge.”

Consulta à comunidade
As possibilidades de intervenção para o tratamento das funções cerebrais têm crescido tão velozmente que, nos últimos anos, os termos neuroindústrias ou neuroempresas têm sido utilizados cada vez mais. Em paralelo, ações dessas empresas têm sido comercializadas na Nasdaq. Outras questões também merecem reflexão. “Imaginemos, por exemplo, a implantação de um braço robótico, tal como foi feito recentemente em uma pessoa quer perdeu o braço na Guerra do Iraque. Caso esse braço robótico, por meio de uma informação proveniente de uma fonte a distância, seja induzi­do a ferir ou a matar outra pessoa, quem seria o culpado?”, questiona Cavalheiro. “Faz-se necessário uma discussão social bastante ampla. Não podemos esperar que o fato aconteça para tomar as providências necessárias, principalmente quando temos a consciência de que isso pode realmente ocorrer.”

Há outras coisas acontecendo nos grandes laboratórios que apenas parecem estar num futuro distante. “Já existem culturas de neurônios sobre chips biológicos para que se possa ‘ler’ os sinais neuronais”, diz. Em sites na internet há produtos à venda para “aprimorar” o cérebro. “É um jeito de ganhar dinheiro fácil, mas mostra a imensa curiosidade do homem por essa última fronteira do conhecimento.” Para Cavalheiro, será necessário um acordo ético e social: é preciso que a sociedade decida o que poderá ser feito e usado pelo “novo homem”. “Isso pode e deve acontecer antes de termos os produtos resultantes da convergência à nossa disposição.”

Depois da palestra, Cavalheiro foi perguntado se conseguia perceber avanços sobre a convergência tecnológica no Brasil. Ele lamentou não ver nada aqui parecido com o que já existe no exterior, especialmente na área médica. De acordo com o neurocientista, o tema ainda não foi assimilado pela comunidade acadêmica brasileira na mesma velocidade com ocorre no exterior, principalmente nas ciências humanas e sociais. Foi feito um primeiro estudo no CGEE e há um grupo trabalhando na conceituação internacional existente. Ainda neste semestre a equipe de Cavalheiro fará entrevistas com os líderes das áreas NBIC e haverá uma consulta à comunidade. “São etapas que pretendemos concluir até o final do ano para entender as percepções locais de nossos pesquisadores – não só das áreas estritamente ligadas ao tema – e, também, verificar a possibilidade de participarmos da construção desse novo futuro e dos seres humanos que ali viverão”, conta.

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