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Alan Templeton

A gordura, o cérebro e o coração

Alan Templeton explica como a evolução da espécie humana favoreceu o desenvolvimento de problemas cardíacos

"Reservas de gordura diferenciam bebês humanos de chimpanzés", disse Templeton

“Reservas de gordura diferenciam bebês humanos de chimpanzés”, disse Templeton

Alan Templeton é um pesquisador versátil. Dedica parte de seu tempo a estudar a diversidade genética de lagartos e salamandras. Na outra parte, continua a trabalhar na mesma linha de pesquisa que iniciou há 34 anos durante o doutorado: investiga as causas genéticas de doenças humanas complexas. Ao unir seus conhecimentos de genética e evolução a ferramentas de estatística, vem ajudando a compreender por que os seres humanos desenvolveram características que os tornam atualmente mais propensos a sofrer problemas cardíacos, a principal causa de morte nos países industrializados.

No domingo, 30 de abril, em sua segunda palestra na programação cultural paralela à mostra Revolução genômica, Templeton falou sobre como vem usando a história evolutiva da espécie humana para explicar o risco elevado de doenças coronarianas, caracterizadas pelo bloqueio por placas de gordura das artérias que nutrem e oxigenam o coração, podendo levar à morte. “Dependendo da região em que ocorre esse bloqueio, os sintomas são tão brandos que as pessoas nem os percebem”, disse Templeton. “Mas, em 20% dos casos, o primeiro sintoma é cair morto.”

Por essa razão, nos últimos anos tem havido uma intensa busca de fatores que permitam prever o risco de doença coronariana. Entre esses fatores estão os genes. Como a evolução é um processo genético decorrente da alteração no número ou na estrutura dos genes nas populações através dos tempos, analisar como, quando, onde e em que situação essas modificações ocorreram permite compreender como surgiram na espécie humana traços como o que favorece o bloqueio das artérias coronárias. “A evolução nos permite entender por que desenvolvemos uma característica que nos faz tombar mortos”, disse Templeton, que começou a investigar essa associação em 1974, durante seu doutoramento sob orientação do geneticista Charles Sing, da Universidade de Michigan. “Entender esse passado evolutivo pode nos ajudar a compreender os fatores de risco atuais.”

Mas não basta olhar para os genes. Também é preciso analisar em que contexto determinadas alterações genéticas surgiram e verificar se esse contexto sofreu ou não mudanças. A razão é simples: os genes não determinam por si sós as características dos seres vivos. As informações contidas nos genes interagem o tempo todo com o ambiente. “Os genes podem sofrer alterações e mudar nossos traços, mas mudanças no ambiente também podem afetar nossas características. O DNA não é tudo”, explicou Templeton.

“Sabemos que algumas características se modificaram tão rapidamente na história da evolução humana que não podem ter caráter evolutivo, não se trata de alterações nos genes”, disse o biólogo norte-americano. Se os genes não mudaram, as alterações só podem ter ocorrido no ambiente. Uma característica que mudou muito, em especial no último século, foi a obesidade, que vem aumentando nos Estados Unidos e em vários outros países. Em 1991 na maioria dos estados norte-americanos menos de 15% dos adultos apresentavam obesidade clínica. Em 2004 já não havia estado com menos de 15% de obesos – em vários deles a taxa de obesidade já havia alcançado 25%. “Não é preciso ser um cientista genial para descobrir o motivo. Os norte-americanos estão obesos porque comem muito”, disse Templeton, apontando para gráficos que mostravam o aumento da média de calorias ingeridas diariamente. “Essas alterações ocorreram tão rapidamente que sabemos que são ambientais.” E mudanças na alimentação afetam não apenas a probabilidade de desenvolver doenças coronarianas, mas também de se ter outras enfermidades, a exemplo de hipertensão e diabetes, que aumentam o risco de problemas cardíacos e acidente vascular cerebral. Todos esses problemas, segundo Templeton, vêm se tornando mais e mais comuns principalmente em decorrência de mudanças no ambiente e no estilo de vida: hoje as pessoas comem mais e exercitam-se menos.

Se o excesso de peso não favorece a longevidade – aliás, comprovadamente aumenta o risco de morrer –, por que os seres humanos teriam genes que reforçam essa característica? Quem deu as primeiras pistas para responder a essa questão foi um dos pioneiros da genética humana, James Neel, que chefiava o departamento em que Templeton fez seu doutorado. Em 1962, muito antes de se ter acesso ao volume de informações sobre genética disponíveis hoje, Neel publicou no American Journal of Human Genetics uma hipótese considerada radical para explicar a origem desses problemas. No artigo Diabetes mellitus: a “thrifty” genotype rendered detrimental by “progress”? (Diabetes mellitus: um genótipo “poupador” que se tornou prejudicial pelo “progresso”?), ele sugeriu que genes associados a doenças modernas como diabetes, hipertensão e obesidade teriam sofrido um intenso processo de seleção que teria tornado algumas formas de genes (alelos) muito freqüentes em determinadas populações.

Reservas vitais
A razão por trás dessa seleção teriam sido episódios de extrema escassez de alimentos. “Quando há fome, muita gente pode morrer. Nessas condições, Neel disse que haveria seleção do genótipo poupador: qualquer gene que tornasse os seres humanos mais eficientes no uso das calorias seria favorecido”, explicou Templeton. Assim, os mesmos traços que teriam permitido a sobrevivência em um ambiente sem comida facilitariam o desenvolvimento da obesidade e do diabetes tipo 2, quando as calorias se tornaram abundantes. Esse efeito se tornou evidente ao se documentar a história de populações que passaram por situações de extrema escassez de alimento. Um exemplo são os índios Pima, um dos primeiros grupos humanos a habitar a América do Norte. Vítima de freqüentes episódios de falta de alimentos tanto no passado quanto mais recentemente, metade dos adultos Pima desenvolve diabetes tipo 2 em meio à fartura de comida. O mesmo ocorreu com os habitantes da ilha Nauru, na Micronésia, que até a Segunda Guerra Mundial eram muito pobres e sofriam com a falta de alimentos. Depois de descobrir que um recurso natural da ilha – o guano, excremento de aves marinhas, usado como fertilizante na agricultura – poderia ser exportado, os naurus enriqueceram e passaram a comprar comida industrializada. Em poucas gerações, metade deles tornou-se portador de diabetes. “Quando se analisam populações que não sofreram com escassez de alimento, a taxa de diabetes é de 2,8% entre os adultos”, afirmou Templeton.

Essa mesma hipótese vem sendo utilizada para explicar outras enfermidades que afetam o organismo todo, como as doenças coronarianas: a história evolutiva da espécie humana teria favorecido a seleção de genes que favorecem o acúmulo de lipídios (gorduras), como o colesterol. Por que esse perfil prevaleceu ao longo da evolução? Porque os seres humanos têm cérebros grandes. Segundo Templeton, uma das características da evolução nos últimos 2 milhões de anos foi o aumento de tamanho do cérebro – o cérebro humano cresce a taxas semelhantes às de outros primatas durante o desenvolvimento intra-uterino, mas mantém esse índice por muito mais tempo do que outras espécies, até 1 ano depois de nascer.

Naturwissenschaften, 1926Mas há um preço para se adquirir cérebros maiores. Eles consomem muita energia. Só para ter uma idéia, um terço da energia consumida por um recém-nascido é destinada para manter seu cérebro vivo e em crescimento. Além de serem importante fonte de energia, as gorduras entram na composição do próprio cérebro. De acordo com o biólogo da Universidade Washington, os bebês humanos conseguem manter a taxa de crescimento cerebral mais elevada durante o primeiro ano de vida porque são os mais obesos entre os primatas. “Os seres humanos passaram por uma seleção muito intensa que favoreceu a característica de poupar gorduras para manter um cérebro grande”, disse Templeton.

Assim, a seleção de genes que favorecem o acúmulo de colesterol e outros lipídios foi uma adaptação essencial para permitir o desenvolvimento de cérebros que, na vida adulta, chegam a pesar 1,5 quilograma. O problema é que os mesmos genes que proporcionam o acúmulo de gordura necessária ao crescimento cerebral no primeiro ano de vida levam à deposição de gordura nas artérias quando se vive em um ambiente com muitas calorias disponíveis. “Os seres humanos são mais propensos do que qualquer outro mamífero a sofrer de doenças coronarianas”, disse Templeton. “É nosso legado evolutivo.”

Desafios estatísticos
Nos últimos anos, em parceria com Charles Sing, da Universidade Michigan, Andy Clark, da Universidade Cornell, e Eric Boerwinkle e Jim Hixson, da Universidade do Texas, Templeton e Jim Cheverud, também da Universidade Washington, vêm usando a história evolutiva da espécie humana na tentativa de identificar genes ou variações genéticas que funcionem como indicadores do risco de doenças coronarianas. Mas têm um grande desafio pela frente: o número de variações no genoma humano é muito elevado – já se identificaram aproximadamente 12 milhões de alterações –, embora poucas delas estejam ligadas a doenças. Dez anos atrás a equipe coordenada por Sing analisou o material genético de 71 pessoas de três populações distintas e encontrou 88 variações do gene responsável pela produção de uma proteína que digere um tipo de gordura. Combinadas de diferentes formas, essas 88 variações resultam em 3.916 possibilidades distintas. “Esse é um estudo antigo”, disse Templeton. No trabalho atual o número de combinações (genótipos) possíveis é maior que o número de elétrons do Universo, estimado em 10130 (o número 1 seguido de 130 ze­­­­­­ros), o que torna impossível o trabalho de qualquer estatístico.

Para contornar a impossibilidade de analisar o efeito de cada uma dessas variações, Templeton e seus colaboradores desenvolveram uma nova maneira de tentar identificar apenas aquelas que causam alteração na estrutura ou no funcionamento das proteínas. Em um primeiro passo, eles avaliam a história evolutiva dessas variações gênicas (haplótipos) – como surgiram e se acumularam através dos tempos – e as organizam em uma estrutura semelhante a uma árvore, a chamada árvore de haplótipos. Em seguida, usando uma estratégia descrita em 2005 na Bioinformatics, que denominaram TreeScan (análise de árvore), confrontam o efeito de uma variação contra todas as demais agrupadas, como se fossem apenas duas alterações, em vez de comparar uma a uma centenas ou milhares de mutações. Assim, reduzem muito o número de possibilidades, tornando possível analisá-las do ponto de vista estatístico. “Na árvore, temos o mais eficiente desenho estatístico para estudar como uma mutação está associada a uma doença”, disse Templeton, que em sua apresentação no Ibirapuera comparou a árvore de haplótipos a um mapa que não informa a distância entre São Paulo e Rio de Janeiro, mas mostra como ir de uma cidade a outra.

Eduardo CesarAlém dos genes
O grupo de Templeton demonstrou que variações em um gene específico, responsável pela produção da apolipoproteína E (apoE), permitiam estimar o risco de desenvolver bloqueios de gordura nas artérias que irrigam o coração, em estudo feito anos atrás com pacientes idosos da Clínica Mayo, em Minnesota. Na década de 1980, Charles Sing demonstrou que, isoladamente, o gene da apoE permite prever parte do risco de desenvolver doenças coronarianas. Essa proteína liga-se a um dos tipos de colesterol e permite que seja transportado do intestino, onde é absorvido, para os diferentes órgãos e tecidos do corpo – entre eles, o cérebro.

Usando a TreeScan, o grupo de Sing e Templeton constatou que uma das quatro variantes do gene da apoE – a apoE-4 – realmente favorecia o aumento no sangue dos níveis do colesterol LDL, que adere à parede dos vasos sangüíneos formando placas de gordura, e elevava o risco de problemas coronarianos. Em seguida ao anúncio da descoberta, a imprensa passou a rotular a apoE-4 como a variante assassina ou alelo assassino desse gene. Essa classificação, que seduz por indicar um culpado pelos problemas cardíacos, irritou profundamente os pesquisadores porque as pessoas estavam olhando apenas uma parte da questão – os genes – e haviam se esquecido da influência do ambiente.

A equipe das universidades Michigan, Cornell, Texas e Washington constatou que a afirmação da imprensa não fazia o menor sentido ao comparar como se associam duas a duas as variações mais freqüentes do gene (apoE-2, apoE-3 e apoE-4) com os níveis de colesterol dos idosos (baixo, normal ou elevado). Não havia um alelo assassino. “Os genes explicam apenas 7% do risco de desenvolver doença corona­riana”, afirmou Templeton. Os outros 93% dependem de fatores ambientais, como o nível de colesterol no sangue, determinado pela dieta e pelo estilo de vida sedentário. A combinação mais perigosa para o coração foi apresentada pelos portadores de uma cópia do alelo apoE-2 e outra do apoE-3, que tinham níveis de colesterol elevados. Essas pessoas corriam um risco até 10 vezes maior de desenvolver problemas cardíacos do que as demais. Já os idosos com ao menos um alelo apoE-4, taxado de assassino, mas que mantinham níveis considerados normais de colesterol, foram menos suscetíveis a desenvolver problemas coronarianos do que aqueles que, nessa mesma condição, eram portadores dos alelos apoeE-2 ou apoE-3. Segundo Templeton, esses dados mostram que há interação entre os genes e os fatores ambientais. “Qual o gene assassino? Não sei. Depende do contexto.”

“Infelizmente os médicos usam essas duas informações separadamente”, comentou Templeton. Mas a natureza é mais complexa e não funciona assim, porque há interação entre os genes e o ambiente. Quando se analisa apenas a informação genética ou ambiental separadamente, o resultado pode ser enganoso. “Essa complexidade nos desafia”, disse Templeton, “mas temos mais informações sobre o risco de doenças coronarianas quando avaliamos as duas informações juntas”. Os genes são parte, e apenas parte, dessa história, reforçou o pesquisador, que em 1974 deu aulas durante 3 meses na Universidade de São Paulo. “Hoje a medicina tenta tratar a doença coronariana. Com esses dados estamos dizendo que é preciso tratar o indivíduo com doença coronariana. Os bons médicos já fazem isso”, disse Templeton. A razão é que o que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona para outra. O pesquisador lembrou ainda ser mais fácil alterar as condições ambientais do que mo­­­­­­dificar os genes.

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