Imprimir PDF Republicar

Muniz Sodré

Muniz Sodré

Especialista em comunicação pensa que a mídia se constitui como esfera existencial regida pela economia monetária

Muniz Sodré: "Para a criança, a vida real pode ser apenas mais uma janela da internet"

Marcia MinilloMuniz Sodré: “Para a criança, a vida real pode ser apenas mais uma janela da internet”Marcia Minillo

As formas de se comunicar sofreram, nas duas últimas décadas, uma revolução intensa e transformadora e seu impacto na vida das pessoas pode ser até maior do que o acontecido ao longo do século XX, período em que foram difundidas novas formas de comunicação de massa como telefone, cinema, rádio, histórias em quadrinhos e TV. É a era digital, cuja impressionante velocidade e difusão de informação e conhecimento parece confundir a cabeça daqueles que estudam a comunicação. Aos poucos, no entanto, desenvolveram-se estudos, teses e teorias que tentam explicar o que está se passando. “Estamos num período realmente de rompimento, de pensar reflexivamente a comunicação, mas um belo momento dos estudos dessa área no Brasil”, avalia Muniz Sodré, um dos grandes pensadores contemporâneos da comunicação no Brasil, presidente da Biblioteca Nacional e professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A mídia se constitui, explica, numa nova forma de vida, um novo bios. “E, como esfera existencial, ela é inteiramente regida pela economia monetária”, afirma. Sodré falou sobre isso e outros temas da vida virtual que emerge das relações que os meios de comunicação estabelecem no espaço social na palestra organizada pela revista Pesquisa Fapesp para a exposição Revolução genômica, em São Paulo. Nos últimos anos, sua preocupação maior tem sido estabelecer a mídia não como transmissor de informação, mas como ambiência, uma forma de vida, segundo suas próprias palavras. “Mídia como o que Aristóteles chama de bios, isto é, a cidade investida politicamente. É a sociabilidade da polis. Não é carne o que chamamos de biológico hoje”, acrescenta. Aristóteles falava de três bios: do conhecimento, do prazer e da política. “Eu descrevo a mídia como o quarto bios, que é o midiático, virtual, da vida como espectro, da vida como quase presença das coisas. É real, tudo que se passa ali é real, mas não da mesma ordem da realidade das coisas.”

Em Antropológica do espelho (Vozes, 2002), Sodré detalha esse estudo. O pesquisador observa que a informação, hoje, é espectro, representação, fantasma, palavra e discurso, o que faz da realidade da mídia algo essencialmente discursivo. “Entramos em um momento da história em que a esfera civilizacional que circunda o homem é espectral. Não é substancial, de toque. É feita do impalpável, de ausência/presença de luz, seja circuito fechado/circuito aberto, seja o pingo no papel, a imagem no cinema ou na fotografia.” Tudo é cada vez menos substancial e mais visual – cabeça e olho. “Ora, essa realidade, para mim, é outra forma de vida, é um outro bios. Se entendemos a mídia como ambiência, environment, um mundo em que cerca esse mundo, mudamos inteiramente o foco da análise.”

Segundo ele, todas as concepções antigas de jornalismo e da mídia como transmissão de informação – para educar, instruir – não têm mais sentido e não mais definem mídia no meio de comunicação. “É preciso, inicialmente, considerar que, mesmo pertencendo a um bios específico, a TV não é um ator social isolado, está sempre inserida em contextualizações de ordem socio-histórica.” Colocada dentro de uma tradição sociocultural patrimonialista como a brasileira, a televisão, apesar do transnacionalismo de sua forma, produz efeitos específicos e regionais. Enfim, no bios virtual, o objeto predomina sobre o sujeito.

A transformação de um objeto em imagem, enquanto isso, implica a negação de dimensões materiais – relevo, peso, cheiro etc. Mas também isso é o que interessa como estudo – o tempo e o sentido, que reduzem a duas, as três dimensões do Universo. Sodré refere-se a Baudrillard, que falava do preço da “desencarnação” que a imagem ganha com essa potência de fascinação e se torna medium – que ele chama da “objetualidade pura”. Para o francês, a imagem se tornaria transparente a uma forma de sedução mais sutil do que essa sedução da forma. “Ora, a mídia hoje não se define como um puro dispositivo técnico, embora o suporte técnico seja necessário. Não é também uma forma fechada em torno de uma gramática expressiva. É um conceito maior do que a definição de televisão, rádio, jornal, internet.”

O medium seria propriamente o conceito dessas formas e também do desdobramento tecnológico da cidade humana. Significa que a mídia é uma espécie de prótese odontológica para o controle das relações sociais e o controle das novas subjetividades por tecnologias informacionais. É preciso ressaltar, prossegue, que a manifestação mais evidente da virtualidade é o bios midiático, dentro do conceito aristotélico de bios como a esfera existencial da vida ético-social, distinta da natural – a vida crua em que se insere a revolução genômica e onde se mapeia o genoma. “É uma intervenção da tecnologia e no limite controle da vida nua e da vida crua. Ao lado dos bios tradicionais emerge essa nova forma de vida, dos fluxos digitalizados e redes artificiais definindo por uma materialidade leve ou mesmo pela imaterialidade dos circuitos eletrônicos.”

Afetivas
A partir de uma realidade sistêmica que foi ponto de partida e ponto de chegada das análises de Habermas, nasce essa verdadeira forma de vida que é o bios virtual. A ponta desse iceberg é o bios midiático, espécie de comunidade afetiva, de caráter técnico e mercadológico, onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social. É esse o objeto dessa nova ciência social chamada comunicação para Sodré. “Não há nada de intrigante aí em termos de civilização. Essa realidade que chamo de bios midiá­tico só é possível porque as imagens já estão inscritas na própria cultura, na mediação do sujeito consigo mesmo.” Assim, o novo bios seria só uma nova exacerbação do processo, uma forma de vida que torna socialmente relevante quem intervém nas relações espaço-temporais e percebe o mundo por essas relações espaço-temporais e age sobre o mundo a partir do tempo e do espaço.

Como conseqüência, o indivíduo e o mundo se relacionam efetivamente por meio do tempo e do espaço, que é a base de toda comunicação concreta, que são os  quadros de percepção mutáveis e as formas modificáveis, segundo as variações da história e da cultura. O bios midiático aparece como uma transformação técnica do espaço-tempo adequado às novas estruturas e às novas configurações da vida social. “É uma maneira, digamos, mais sociológica. O bios virtual de que nós estamos falando é mais de que o conjunto de atribuições e de competências técnico-profissionais de um grupo, de um campo, porque é uma forma de vida duplicada, que engloba o profissional em público e estala um novo tipo de relacionamento com o real, um novo tipo de relacionamento com a história.”

A nova forma de vida identificada por Muniz Sodré implica a intervenção profunda na dimensão espaço-temporal clássica. “Se retirarmos daquilo que chamamos de real o espaço e o tempo, temos o virtual, que é o real menos o espaço e o tempo. Ora, o bios virtual não está alinhado de modo neutro ao lado dos campos sociais. Por quê? Porque ele participa ativamente hoje da luta pelo controle das representações do real.” O comunicólogo explica que o bios virtual afeta ontologicamente a própria idéia moderna do social e do exercício do poder. Isso pode ser observado na própria academia, nas próprias pesquisas em comunicação. “Quando se desconfia um pouco das utopias de felicidade difundidas pela internet ou pela cibercultura e se diz que podem não ser a solução para o relacionamento humano, imediatamente se é acusado de reacionarismo. Há novas utopias ligadas à cibercultura e toda a normatização social traz os seus detratores e seus utopistas. Qual a razão disso? “Porque há alguma coisa de visceral, de fundo surgindo dessa intervenção no tempo e no espaço, junto com outras interferências que a ciência vai fazer na vida nua dos indivíduos. Aqui há intervenção na comunidade, na vida comunitária, com a revolução genômica, com a ciência, intervenção no corpo, na reprodução, no indivíduo mesmo em sua reprodução.

Para além desse viés sociológico, vários autores apontam para a mesma idéia. Fala-se da telecracia (poder das teles), da cibercracia (sociedade de controle), em Deleuze, telerrealidade etc. “Bourdieu se refere à telemorfose para se referir à vida plasmada, à vida idealizada, o que ele chama de grau zero de significância da televisão. Mas destôo um pouco dele. Não acho que se trata de arrolar os efeitos catastróficos da televisão (que é o principal meio síntese imagem do século passado) sobre a realidade tradicional. Acho que se trata agora de identificar uma nova forma de vida, para cuja construção concorrem transformações importantes de toda uma estrutura social básica.”

Transparente
Para Sodré, não se trata mais de tornar as coisas visíveis a um olho externo, a um olho exterior, mas de tornar as coisas transparentes a si mesmas. “A potência de controle é como que internalizada e os homens não são mais vítimas das imagens. Eles mesmos se transformam em imagens. Uma telemorfose integral da sociedade, portanto, não deve ser compreendida como um efeito específico de programação de televisão, mas é um evento da midiatização, da articulação exponencial, das tradicionais instituições sociais, com o conjunto da tecnologia da informação a reboque do mercado.” Em outros termos, trata-se de uma associação estreita entre práticas sociais e espaço público, ativada por processos tecnológicos da comunicação.

Não há, garante o pesquisador, nenhum problema nisso. “Há sim uma mutação, tão-somente uma mutação. É, assim, uma totalidade espacial, virtualizada, que eu chamaria um fato social total.” Sodré toma emprestada uma expressão de Marcel Mauss para designar fato social total como um acontecimento que permeia as instâncias econômicas, políticas, culturais da sociedade. “A informação hoje permeia todas essas instâncias, está na economia, na política, na cultura, mas com uma duração continuada com uma forma de vida. É por isso que eu falo em bios, que é característico de um novo tipo de ordem social em que a designação de sociedade controle pode ser adequada.” Quando se pensa nesse bios como parte das estratégias de indução, de um dispositivo técnico de controle da vida nua, da vida natural, como parte dessa estratégia de indução, de certo modo se aceita. “Estamos preparados pelo bios virtual para aceitar a virtualização da vida pela ciência. Trata-se de um novo tipo de operador social, mais temporal do que espacial, movido à tecnologia avançada.”

Sodré compara o bios midiático a uma espécie de clave virtual aplicada à vida cotidiana, à existência real e histórica do indivíduo. Em termos de puro livre-arbítrio, exemplifica ele, pode-se entrar e sair dele, pois não se está absolutamente dominado. “Mas, nas condições civilizatórias em que vivemos (urbanização intensiva, relações sociomercadológicas), onde há um predomínio do valor da troca capitalista, estamos imersos nessa virtualidade midiática e isso nos dá uma forma de vida vicária, que quer substituir Deus.” Ou seja, tem-se uma forma de vida substitutiva, paralela, virtual, alterada. “Vivemos uma vida alterada pela intensificação da tecnologia audiovisual conjugada ao mercado e é isso que faz do bios midiático a indistinção entre tele e realidade no sentido tradicional.”

É isso que explicaria, por exemplo, o comportamento de entrevistados como os do livro de Sherry Turkle sobre a vida na tela. Psicanalista que investiga a televisão e a internet, Sherry entrevista um homem que vive totalmente conectado à internet e descobre que, para ele, a vida real é apenas “uma janela a mais na internet.” Realmente, afirma Sodré, é possível que, para o adolescente, uma criança hoje que passa o dia grudado na internet a vida real se torne apenas uma janela a mais. Por outro lado, a vida virtual que ele leva já é plenamente real. “É isso que está permitindo às pessoas namorarem pela internet, mas não namorar trocando cartas, namorar realmente. Na virtualização é possível, em determinadas circunstâncias, substituir a vida nua e crua.”

Tal idéia faz do bios midiático a indistinção entre tele e realidade. “A realidade de hoje se constitui sob a égide da integralidade espetacularizada ou sob essa realidade imagística a que o real aspira e o real quer. Portanto, trata-se de uma inflexão exacerbada do imaginário, que como Deleuze disse, não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal.” Não é que nada disso seja mentira ou, se for, vivemos em um mundo irreal, porém cada vez mais difícil se fazer a distinção que antes havia com muita clareza entre o que é real e irreal. Nesse contexto, esse bios não se define como a soma de todas as imagens tecnicamente produzidas.

Assim como na ordem mítica, o mito é o poder dos símbolos primordiais e dos arquétipos, o bios midiático é o poder desses modelos, que se atualizam e se concretizam em determinados tipos de imagem. As imagens midiáticas que regem as relações sociais vêm dos modelos hegemônicos do capital e do mercado globais. O espetáculo de hoje em que todos estão imersos resulta de uma sobredeterminação histórica da imagem. “A espetacularização é, na prática, a vida transformada em sensação, em entretenimento com a economia poderosa voltada para produção e consumo de filmes, programas de televisão, música popular, moda, parques temáticos, jogos eletrônicos, efeitos de fascinação, celebridade e emoção a todo custo. Tudo isso permeia sistematicamente essa forma de vida.”

Esse modelo em que a estesia detém a primazia sobre velhos valores de natureza ética é algo em ascensão. “O fenômeno estético se tornou hoje insumo para estimulação da vida, que está, de agora em diante, dirigida para a indústria e para o mercado. Isso é mais esthesis do que ethos. Embora se possa falar do ethos, da estética, você pode tratar de uma inteligibilidade sensível, capaz de levar uma ética, uma arquitetura social de valores.” Essa absorção faz pensar que há um vínculo não exatamente disciplinar científico entre o mapea­mento do genoma, o bios social e o bios midiático porque é essa absorção de dígitos, de imagens e de realidade paralela que leva o indivíduo a viver virtualmente no espaço imaterial das redes de informação. “A isso chamamos de bios midiático, onde o contato é mais do que simplesmente visual, é tátil como interação dos sentidos, a partir de imagens de simulação do mundo.”

Sodré explica que vem do tátil a sensação de que se está ocupando um ponto qualquer do mundo em uma ambiência ou em uma paisagem feita de matéria audiovisual, de compreensão numérica em alta velocidade, que é o caso da internet. “Essa é a idéia que Kerckhove trouxe da existência, em vez da perspectiva, o que permitiria ao individuo encontrar uma posição física e meio sentidos que são tecnologicamente prolongados.” É textual se dizer que a sensação física de estar em algum lado é uma experiência tátil, não algo visual, frontal ou exclusivo. É, sim, ambiental, compreensiva. “O ponto de existência em vez de distanciar da realidade, como acontece com o ponto de vista, torna-se o ponto de partida do mundo.”

Para ele, é algo perigoso porque  não se tem ponto de vista, uma crítica. “Se eu só tenho ponto de existência, estou tão imerso que Deleuze tem razão quando diz que o controle é total nesse caso. Dessa maneira, quando levamos em consideração toda uma forma de vida virtual e não a gramática exclusiva de um meio de comunicação separado, a experiência sensorial do indivíduo, do espectador, ultrapassa a das expressões externas do corpo de alguém que fala, faz manejo de cabeça, sorrisos ou movimentos. “Acontece porque hoje não podemos ser instituídos como simples espectadores. Somos, sim, membros orgânicos de uma ambiência que deixa de funcionar na escala tradicional do corpo humano para se adequar existencialmente. É essa a idéia do ponto de existência, pelo êxtase ou pelo deslumbramento à imersão. Nos adequamos à escala de um sistema neural que é a interconexão dos multidispositivos de representação, que damos o nome precário de mídia.”

Índices
Nesse sistema, explica Sodré, a corporeidade como tal desaparece e fica em segundo plano, em um sentido físico, real, ela fica em segun­do plano. O corpo e a corporeidade são substituídos por seus índices. Estes favorecem as formas não representativas que introduzem a todos em um novo tipo de sensibilidade individual e de sensibilidade coletiva. “Isso nos leva a ficar sob a égide de um paradigma cultural. É algo mais indicial do que cognitivo e sígnico.” A televisão, para ele, é indicial, pois dá um índice que vai levar o espectador a sensações, a sentimentos. “As palavras estão nesse contexto também, claro, mas são muito ocas, vazias.”

O comunicólogo afirma que o Brasil vive um momento, inclusive no jornalismo, em que as palavras são cada vez mais ocas, já que o jornalismo é indicial e o índice, diferente do signo. A palavra com signo é plena, é cheia. Quando diz a palavra “mesa” ou “cultura”, Sodré se refere a signos plenos, que têm um significado na língua. “Enquanto o índice me aproxima fisicamente, existencialmente de uma significação, como quando vejo uma fumaça e sei que ali tem fogo. A fumaça não significa fogo. Não é a significação que está ali, é um índice que me aproxima existencialmente do fogo. É esse tipo de categoria semi-ótica, a categoria indicial, que predomina hoje no conteúdo da mídia e que no fundo dá a chave para a indução que a mídia exerce sobre nós, que nos induz a um afeto.”

Muniz Sodré não vê com olhos pessimistas a mídia. O afeto, observa, não é necessariamente bom. “A raiva e o ódio são um afeto. A mídia neutraliza também as velhas tensões comunitárias afetivamente. Mas o modo de se acercar de nós é pela emoção, pela sensação, que diz respeito a entretenimento, a espetáculo e também ao próprio conhecimento que os bytes e os dígitos nos dão.” O bios midiático, a intervenção da tecnologia do ver e da tecnologia do sentir na vida nua e crua dos indivíduos, tudo isso obriga o intelectual, o professor, a mãe e o pai a repensarem a forma de vida em que estamos ingressando como algo não afetado por gracinhas tecnológicas que se acumulam. Ao menos quando se usa a técnica. “É preciso pensar na radicalização desse uso e ter, de algum modo, coração técnico para ampliar esse uso.”

Esse coração técnico não é ruim. “Está na hora de pensarmos radicalmente, com coração, nesse novo modo de compreensão do mundo que se insinua agora junto com o mapeamento do genoma e com o bios virtual, o bios midiático.” Pode ser que num futuro próximo esse mundo, que Muniz Sodré percebe tão claramente e de forma entusiasmada, se torne cada vez mais perceptível e admirável.

Republicar