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ciência geral

General de Napoleão

Talento, sorte e superação marcam a trajetória do bioquímico Jerson Lima da Silva

Jerson: rotina de pesquisador e administrador

Leo Ramos Jerson: rotina de pesquisador e administradorLeo Ramos

A biografia do cientista carioca Jerson Lima da Silva desperta atenção por qualquer ângulo que se observe. Sua produção acadêmica é farta e versátil. Com mais de 130 artigos publicados, boa parte deles em revistas de alto índice de impacto, já orientou 25 dissertações de mestrado e 27 teses de doutorado e tem contribuição expressiva no campo da biologia estrutural. Seu grupo trabalha com ferramentas de espectroscopia, como fluorescência e ressonância magnética nuclear (RMN), e acumula avanços em temas como a montagem de estruturas virais, com impacto no desenvolvimento de vacinas, e no entendimento dos mecanismos responsáveis pelo dobramento incorreto de proteínas, fenômeno importante em moléstias como câncer e Parkinson e doenças causadas por príons, como a encefalopatia espongiforme transmissível, conhecida como mal da vaca louca.

Paralelamente ao trabalho como pesquisador e professor titular do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele também atua como gestor. Desde 2003 é o diretor científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), agência de fomento que ganhou importância nos últimos cinco anos graças à disposição do governo fluminense de investir fortemente em ciência e tecnologia. Também dirige o Centro Nacional de Ressonância Magnética Nuclear Jiri Jonas da UFRJ, principal centro da América Latina aparelhado com equipamentos de ressonância magnética nuclear de alto campo. E é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Biologia Estrutural e Bioimagem, uma das 122 redes temáticas criadas pelo governo federal em parceria com estados.

O extenso currículo científico contrasta com a aparência jovem – nascido num dia 29 de fevereiro de 1960, tem 50 anos – e ganha contornos ainda mais notáveis quando se analisa sua origem. Nascido num subúrbio da zona norte carioca, Jerson Lima da Silva sempre estudou em escolas públicas. “Eu talvez tenha sido o primeiro carioca a publicar em um dos periódicos de maior prestígio na área de bioquímica sem conhecer a zona sul”, afirma Jerson, referindo-se a um artigo que publicou aos 20 anos de idade no Journal of Biological Chemistry, que seria um dos 15 trabalhos feitos no Brasil no período de 1970 a 1985 mais citados no campo da bioquímica. O pesquisador vive hoje em Copacabana com a segunda mulher, a pesquisadora Débora Foguel, 45 anos, atual diretora do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, e quatro filhos, Juliana, de 25, Estevão, 22, Vitor, 21, e Ana Luisa, de 12.

Os pais de Jerson, um sargento da Marinha e uma dona de casa que fazia flores artificiais e doces para complementar o orçamento doméstico, ressentiam-se de não ter podido estudar e fizeram sacrifícios para dar essa chance aos filhos. Por isso, Jerson sempre estudou em boas escolas públicas e aos 12 anos pôde frequentar um curso de inglês. “Ganhava mesada e podia comprar fascículos semanais no jornaleiro”, lembra, referindo-se a enciclopédias paradidáticas como Conhecer e Os Animais. Leitor voraz e aluno curioso, sentia-se em desvantagem nas brincadeiras com os vizinhos. “Uma teimosia quase doentia me fazia jogar futebol, às vezes oito horas por dia, para tentar vencer uma total falta de irmandade com a bola. Aprendi um pouco a perder batalhas e a conviver com um traço de minha personalidade, o de ser altamente competitivo”, diz Jerson. “Sempre me considerava como o que tinha menos sorte entre os garotos, pela falta de destreza. Mais tarde eu descobri que estava errado, e que sorte não me faltava, especialmente por ter conhecido as pessoas certas, e de ter tido os mestres certos, nos momentos certos.”

O pesquisador: “Orientar é lapidar pedras de origens diferentes”

LEO RAMOS O pesquisador: “Orientar é lapidar pedras de origens diferentes”LEO RAMOS

Esse vislumbre sobre sorte e oportunidade aconteceu em meados dos anos 1980, quando, aos 25 anos, encerrou o primeiro ano de estágio na Universidade de Illinois, no laboratório de Gregorio Weber (1916-1997), e recebeu o convite para permanecer mais um ano. “Fiquei muito agradecido e ensaiei um discurso sobre o merecimento daquela oportunidade”, recorda-se Jerson. Weber respondeu-lhe: “Quando Napoleão precisava nomear um general para uma determinada batalha, ele perguntava a seus conselheiros se aquele general tinha sorte. Pois na ciência e na medicina a sorte também é um fator determinante, senão o mais importante”. Weber, que morreu em 1997 aos 81 anos poucos dias depois de receber uma homenagem no Brasil organizada por Jerson, foi um dos “mestres certos” que passaram pelo caminho do pesquisador carioca, mas ele dá crédito a vários outros, da professora primária na Tijuca que o levou a tomar gosto pela leitura (hoje ele é um aficionado na obra de Marcel Proust) ao professor da Escola Técnica no bairro do Maracanã que lhe revelou o método científico. Há uma figura-chave nessa lista: Sérgio Verjovski-Almeida. Então professor da UFRJ, o hoje pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo foi um grande incentivador quando Jerson ingressou no curso de medicina e arrumou um estágio de iniciação científica. “Ele me deu um projeto para eu conduzir sozinho, quando tinha apenas 19 anos. Ele me dava pistas, mas não a receita. Quando, alguns anos mais tarde, eu recebi a resposta de que havia sido selecionado para ser pesquisador do Howard Hughes Medical Institute, falei com o Sérgio e lhe agradeci. Ele respondeu que apenas me ensinou a me virar sozinho. Aprendi com ele que orientar é como lapidar pedras de origens diferentes e torná-las brilhantes, mesmo que com cores ou matizes diferentes”, diz.

Com Verjovski, Jerson participava de estudos que usavam a técnica de fluorescência para estudar alterações da proteína Ca2-ATPase do retículo sarcoplasmático, responsável pelo bombeamento de cálcio e crucial para a função da fibra muscular. “Um aspecto interessante destes estudos é que a dissociação da Ca2-ATPase ocorria em uma faixa de concentração de proteína menor do que a teoricamente esperada”, recorda-se. Resultados parecidos haviam sido encontrados no laboratório de Gregorio Weber para a proteína enolase. Isso aproximou-o de Weber e resultou no convite para ir a Illinois. Jerson trabalharia em seu laboratório entre 1985 e 1986. Recebeu convites para radicar-se nos Estados Unidos, mas optou por retornar. “Conversei com Weber e concluí que poderia contribuir mais e realmente fazer diferença se voltasse ao Brasil. Se ficasse lá, do jeito que sou competitivo, a busca por uma trajetória de sucesso poderia comprometer um pouco a minha liberdade científica, e isso não era o que eu queria”, afirma.

O laboratório de Weber mantinha uma interação com o Instituto Max Planck de Biofísica-Química em Goettingen, em que métodos de fluorescência e de eletroforese de alta pressão eram usados em estudos sobre a dissociação do DNA. Foi nesse período que Jerson começou a interessar-se por vírus de interesse médico. Junto com Weber, começou a aplicar os conhecimentos adquiridos com modelos proteicos simples para o estudo de partículas virais, imaginando a possibilidade de produzir partículas virais em estado inativado utilizáveis no desenvolvimento de vacinas. Eles iniciaram estudos com o BMV (brome mosaic vírus) e SV40 (simian vírus 40) que serviram de base para pesquisas com vírus de importância médica e veterinária. Hoje o grupo de Jerson é referência no emprego de métodos de alta pressão tanto para inativar partículas virais patogênicas quanto para gerar novas vacinas, em parceria com a Fiocruz. “Recentemente, registramos no Brasil e no exterior uma patente de uma formulação de vacina oral antipoliomielite que aumenta a estabilidade da vacina atenuada Sabin, dispensando a refrigeração”, diz.

Mapeamento de príon por ressonância magnética, um dos alvos de Jerson

Jerson Lima da Silva Mapeamento de príon por ressonância magnética, um dos alvos de JersonJerson Lima da Silva

No início dos anos 1990, voltou à Universidade de Illinois para uma temporada de 18 meses. Nessa época passou a dedicar-se com afinco a um novo tema de pesquisa: o estudo das proteínas envolvidas nas chamadas doenças do enovelamento proteico, como Alzheimer, Parkinson, mal da vaca louca e também o câncer. “Em geral, dentro da célula, o enovelamento de uma proteína é rápido e robusto. Às vezes, porém, mudanças súbitas no balanço entre essas diferentes forças resultam no mau enovelamento da cadeia peptídica, que pode acabar gerando agregados dentro da célula que levam à perda de uma função ou ao ganho de uma função tóxica.” No caso do mal da vaca louca, o grupo de Jerson descreveu como a proteína do príon precisa de auxílio de moléculas de ácido nucleico que não lhe pertencem para se converter em sua forma patogênica. “Esses resultados mudaram o paradigma segundo o qual a conversão da proteína do príon para sua forma patogênica era catalisada por ela própria quando na sua conformação alterada.” Os estudos mostram que ácidos nucleicos do hospedeiro participam de forma decisiva na conversão e propagação da doença.

Na temporada em Illinois, aproximou-se do então diretor da Escola de Química da instituição, Jiri Jonas, pioneiro no uso da ressonância nuclear magnética em alta pressão. Ele utilizou essa técnica para o estudo de uma proteína chamada repressor ARC. Com Jonas, que homenagearia em 1997 batizando o Centro de Ressonância Magnética da UFRJ, Jerson compreendeu a importância de conciliar a rotina de pesquisador com o trabalho de administrador, o que o levaria a aceitar a incumbência de acumular a diretoria científica da Faperj, em 2003. “Tive que diminuir um pouco o número de alunos. Mas isso teve um lado bom: me tornei um colaborador de meus ex-alunos e tenho pouco tempo para atrapalhá-los. Aprendi que os trabalhos deles são os trabalhos deles e que posso ajudar sem exercer uma influência exagerada.”

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