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Especial Einstein

Michel Paty: Filósofo a toda prova

Análise da obra de Einstein revela sua dimensão filosófica

Paty: Einstein usava a filosofia para refletir sobre a ciência

marcia minilloPaty: Einstein usava a filosofia para refletir sobre a ciênciamarcia minillo

Einstein foi um cientista com estilo, dono de uma singularidade poderosa que, nos primeiros anos do século XX, lhe permitiu fazer dialogar dialeticamente três campos teóricos aparentemente inconciliáveis da física – mecânica, termodinâmica e eletromagnetismo –, para sobre isso criar suas próprias e novas teorias. Einstein foi também um consciente, arguto e bem preparado pensador da ciência até o fim da vida, e não um ingênuo que se aventurava a filosofar sem base sólida quando refletia sobre seu fazer científico. Foi a força dessa dupla face do mais importante físico do século passado que emergiu da densa palestra do filósofo francês Michel Paty, diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), no domingo 14 de dezembro, no Parque do Ibirapuera. Ao situar o lugar especial de Einstein na construção humana de mundos pela via do conhecimento, a fala de Paty encerrou com grande propriedade o ciclo de palestras sobre o físico alemão organizado por Pesquisa FAPESP, paralelamente à exposição científica trazida ao Brasil pelo Instituto Sangari e aqui coordenada por Marcelo Knobel, professor de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Na verdade, o tema proposto por Paty – “Einstein, o físico e o filósofo” – é um de seus objetos de estudo há muito tempo e, recentemente, foi publicado no Brasil, pela Estação Liberdade, um trabalho de 1997, Einstein (traduzido por Mário Laranjeira, do original francês Einstein, ou, la création scientifique du monde), em que ele aborda a personagem nessa dupla dimensão. Registre-se, aliás, que o próprio Paty, cujo currículo inclui uma já longa colaboração com o Brasil, da qual faz parte a condição de professor visitante da Universidade de São Paulo (USP) em algumas ocasiões, a mais recente delas de 2004 a 2006, é filósofo e físico. Doutorou-se em ambos os campos e circula à vontade entre eles.

Michel Paty começou por investir contra as fantasias mais recorrentes sobre Einstein, incapazes todas de traduzir para o público o significado da obra desse homem-chave do século XX, sejam elas “a de um demiurgo que teria aberto as portas do mundo do futuro, desconhecido e inquietante”, a de um cientista extravagante, “longe da vida cotidiana e da maneira comum do pensar”, ou ainda a de alguém apartado do mundo do pensamento, mais vinculado a uma ciência que é só “prosaica transformação de formas materiais, longe do mundo das ideias”.

Para ele, o que permite “compreender, captar alguma coisa de essencial, encontrar um sentido profundo na obra realizada, sem que seja necessário dominá-la inteiramente nem, é claro, reinventá-la”, é seguir o pensamento do cientista em seu trabalho de pesquisa. “Mesmo parcial e limitado, esse apanhado de sua obra participa da intelecção do mundo que esta realiza”, disse. Se o mais incompreensível é, como mais ou menos dizia Einstein, que o mundo seja inteligível, para Paty, vê-se que ele realmente o é, quando se avança nos caminhos do conhecimento, pelas pegadas do grande físico, e admira-se o mundo a se abrir pelo trabalho do pensamento. “Dois aspectos aqui são notáveis: trata-se de trabalho do pensamento, e este cria, por assim dizer, formas novas de representação (dos fenômenos, do mundo) que atravessam a escuridão e nos fazem ver mais claramente, mais longe, mais profundamente”, ressaltou.

Michel Paty ofereceu ao público um resumo de Einstein como o grande físico, dos maiores do século XX, que revolucionou sua ciência “pela teoria da relatividade geral ou teoria relativista da gravitação, pelas perspectivas oferecidas pela possibilidade de pensar uma cosmologia física, pelos passos decisivos que conseguiu no conhecimento da matéria elementar (átomos, radiação, física quântica)”. Acrescentou que esses avanços decisivos relativos à matéria nas suas várias escalas ergueram “as colunas da física e da cosmologia contemporânea”, de tal forma que mudou de forma fundamental conceitos pelos quais se pensa o mundo, “tais como o espaço, o tempo, a massa, a energia, o campo etc.”.

Como essas transformações e ideias inovadoras vieram à luz através do pensamento humano, neste caso particular, através de Einstein? Foi procurando responder a essa interrogação que Michel Paty enfatizou o que é, para ele, o “estilo” próprio de Einstein em sua maneira de pesquisar, “diretamente ligado com seu pensamento a respeito da matéria, do mundo e da capacidade do intelecto em aproximar-se, por suas representações conceituais e teóricas, desta realidade, e de torná-la inteligível”. De certa maneira, observou, apesar de seu caráter singular e excepcional, o processo de pensamento do cientista Einstein nos permite relacionar “ao vivo” três aspectos muito diferentes, raramente considerados de forma conjunta, mas indissociáveis, da possibilidade da ciência e da sua invenção: “a realidade material exterior ao pensamento, o pensamento simbólico e criativo guiado pela exigência racional de inteligibilidade e a filosofia como perspectiva de conjunto e como momento reflexivo da apreensão intelectual do mundo”.

Para fornecer indícios daquilo que denominou o estilo de Einstein, Paty destacou que “se deve a ele a reunião dos conceitos de massa e de energia no conceito único de massa-energia, assim como avanços do mesmo porte no conhecimento da matéria que carrega essa massa-energia, tais como o caráter discreto (quântico) da energia da radiação, a ligação da massa-energia com o campo da gravitação e a relação deste último à estrutura do espaço-tempo”. Ou seja, as contribuições de Einstein tornaram clara a dependência mútua desses conceitos físicos antes concebidos separadamente, ao mesmo tempo em que indicaram dificuldades fundamentais para se considerar conjuntamente esses conceitos e as teorias físicas correspondentes. Dessa forma, destacou Paty, “o pensamento físico de Einstein se revela simultaneamente construtivo e crítico. E se inscreve, de fato, num pensamento da matéria que é tanto científico – físico – quanto filosófico”. Einstein mobiliza essas duas dimensões, tomando-as como distintas que são, para fazer o mundo inteligível, segundo a visão de Michel Paty.

O estilo Einstein
A partir dessa interpretação foi que o filósofo, na sessão de encerramento do ciclo de palestras, procurou caracterizar o estilo do trabalho de pesquisa do cientista, vinculado a seu pensamento propriamente físico, vinculado à matéria, e, em seguida, relembrar as concepções mais gerais de Einstein sobre o conhecimento da matéria, em diálogo com outras ciências, a biologia em especial. Nessa segunda parte, Einstein realizou, segundo Paty, “uma reflexão sobre a relação entre as ciências e desenvolveu um pensamento filosófico em seu sentido próprio sobre a matéria e sobre o conhecimento”.

No esforço para caracterizar o estilo de trabalho do cientista, o palestrante observou que as primeiras contribuições de Einstein à física ocorreram quando se debatiam intensamente, nos primeiros anos do século XX, os méritos das várias abordagens teóricas e conceituais da matéria – as da mecânica clássica, originada no século XVII, da termodinâmica, que se constituíra com vigor na metade do século XIX, e do eletromagnetismo, mais recente. Einstein, longe da tentação tão comum na época de reduzir a descrição do conjunto dos fenômenos físicos a uma só das teorias disponíveis, considerando uma delas mais fundamental que as demais, partia da constatação, em suas pesquisas, exatamente dessa pluralidade teórica que lhe permitia tomar cada uma e ir se virando, avançando na perspectiva de uma teoria unificada, dado que a matéria é una na perspectiva da física, “mas sem tentar obrigar as várias teorias a serem uma antes do tempo”.

Michel Paty falou sobre o que Einstein tomou de cada teoria. E a respeito da mecânica, por exemplo, ciência do movimento dos corpos, disse que ele a aceitava, primeiro, por sua possibilidade de ser expressada com o uso do cálculo diferencial integral, ou seja, por sua possibilidade analítica, algo fundamental para todos os físicos e, em segundo lugar, por ter identificado um princípio de relatividade em relação aos movimentos da inércia, que irá depois generalizar e usar em todos os seus trabalhos. No texto escrito de sua palestra, que em muitos momentos abandonou, dada a premência do tempo, Paty observou que “a respeito da mecânica, Einstein foi devedor das lições críticas de Ernst Mach sobre os conceitos absolutos de espaço e tempo, que lhe serviram de premissa para a teoria da relatividade restrita, e também sobre a relação necessária entre a massa de inércia de um corpo (concebida como seu ‘coeficiente de aceleração’) e os outros corpos presentes no espaço, que ele batiza de princípio de Mach e que foi, alguns anos mais tarde, um dos pontos de partida de sua teoria da relatividade geral e de sua cosmologia física”. Tudo isso fundamenta a afirmação do filósofo francês de que “Einstein não abandonou a mecânica, ele a reformou”.

A criação científica
Paty foi examinando de modo similar e com múltiplos exemplos como Einstein reformou também a termodinâmica e o eletromagnetismo, em sua busca por tornar o mundo inteligível dentro das representações da física. Uma busca, em seu entendimento, sempre construtora de teorias e sempre crítica, que torna inaceitável a ideia de um Einstein jovem, empirista, e um Einstein velho, crítico.

Entre as muitas conclusões que apresentou ao público sobre o cientista e o filósofo que conviveram em Einstein, Paty afirmou que, “de maneira explícita, a filosofia é convocada por Einstein quando se trata, para ele, de refletir sobre sua ciência. Pois as respostas da ciência têm implicações filosóficas e informam as grandes questões da filosofia – Einstein era consciente disso”. Entretanto, a mais instigante de suas afirmações em relação ao lado filosófico do cientista foi observar que essa dimensão é óbvia no pensamento de Einstein “pelas raízes profundas de suas interrogações sobre a física, isto é, sobre a descrição, por representação conceitual e teórica, do mundo material”. Trata-se, assim, de uma filosofia na prática, “na atitude prática do físico como pensador”.

Se a isso se juntar a afirmação de Paty, ainda quando falava sobre o estilo singular do cientista, a respeito de como Einstein tratava de assegurar o caráter físico mesmo dos conceitos, apertando sua inserção na teoria de tal maneira que eles terminassem sendo determinados pela estrutura dessa teoria, que por sua vez tinha que ser estreitamente adequada aos elementos do mundo físico que ele buscava representar, algo mais se entenderá sobre a originalidade de Einstein.

O último credo filosófico de Einstein, que ele próprio referia à filosofia de Kant, disse Paty, é que o mundo real, exterior ao pensamento, existe, e o pensamento humano pode, por seu próprio exercício, a ele aceder, porque o mundo pode se tornar inteligível, mas sem a física e sem as ciências em geral isso não seria realizável. Einstein fala em criação científica e não vê paradoxo na expressão. “Ele indica que não há um caminho lógico que leve diretamente da experiência do mundo à sua representação e, sob esse aspecto, o pensamento é livre e, portanto, criador.”

Einstein, o físico e o filósofo
Michel Paty, diretor de pesquisa emérito no  Centre National de la Recherche Scientifique, França,  e autor de Einstein (Estação Liberdade)

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