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Sociologia

Luz. Câmera. Onde está a ação?

As muitas dificuldades para o cinema nacional se transformar numa indústria

Cena de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos

Reprodução

“Se ganha dinheiro, o cinema é uma indústria. Se perde, é uma arte.” Ainda que curta, a frase de Millôr é um bom trailer da longa metragem dos muitos e desencontrados discursos feitos sobre a formação de uma indústria cinematográfica no Brasil. “Desde os primórdios, entre anos 1920 e 1940, quando ainda se debatia a existência ou não de um cinema nacional digno do nome, o discurso industrialista permitiu que meio aceitasse a ‘mediocridade do presente’ em nome do futuro brilhante que viria com a afirmação industrial. A industrialização, assim, transformou-se em objetivo central a ser alcançado, porque, insistia a corporação, sem ela não haveria continuidade na produção de filmes”, explica o historiador da Universidade Federal de São Carlos, Arthur Autran, que desenvolve, com apoio da FAPESP, pelo Programa Jovens Pesquisadores, o estudo O pensamento industrial e a política cinematográfica brasileira (1990-2005), continuação de seu doutorado, defendido em 2004 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que cobriu o perío­do entre 1924 e 1990. Essa questão, após todos esses anos, ainda permanece em cartaz. “Como entender que um país, cuja industrialização teve sucesso em campos mais complexos do que o cinema, tais como o petrolífero, o automobilístico ou o aeronáutico, não conseguiu desenvolver adequadamente do ponto de vista econômico uma atividade em que o México, um país com problemas estruturais semelhantes aos nossos, teve êxito mesmo com percalços?”

Segundo Autran, ainda que a corporação cinematográfica repise o discurso de que o objetivo do apoio estatal é fazer com que a atividade alcance a idealizada autonomia econômica via industrialização, nunca como hoje a produção dependeu tanto do Estado para existir. Velhos problemas continuam: fraca participação do produto brasileiro no mercado interno; o aviltamento mercadológico desse produto na televisão aberta e fechada, com a qual o cinema não consegue fazer as pazes; a visão romantizada e ideológica do que seria o público. “Se a industrialização já foi o laço ideológico da corporação cinematográfica, hoje ela está próxima de acabar figurando como maneira decorativa entre as razões eternamente arroladas pelas quais o Estado deve apoiar o cinema nacional.” Afinal, para a corporação, desde os anos 1950, o Estado ganhou um papel central como principal vetor que possibilitaria a industrialização do cinema, já que o produto importado (norte-americano) impediria que a produção nacional competisse em igualdade e se tornasse economicamente viável. “Mas a cinematografia nacional nunca se industrializou efetivamente, apesar de tentativas de vulto, como quando se pretendeu copiar o modelo americano de produção (cujo grande exemplo foi a Vera Cruz) ou quando o Estado assumiu a tarefa de financiar o processo de industrialização, como foi o caso da Embrafilme, nas décadas de 1970 e 1980”, observa o pesquisador.

Grande Otelo no documentário Tudo é Brasil, sobre visita de Orson Welles ao país

Sem negar as obrigações sociais e econômicas que o Estado tem de manter para ajudar o desenvolvimento do cinema, Autran nota nisso uma perversão: a total dependência da atividade como vemos hoje. Assim, analisa, se a política de fomento do período 1990-2005, a tal “retomada do cinema nacional”, aumentou a produção de longas, a possibilidade de o produto ter retorno financeiro em salas de exibição, na TV ou no DVD continuou pequeno. “Agora o industrialismo não tem mais a força ideológica de antes e sua resistência se deve mais à tradição de quase oito décadas. Até porque não houve industrialização, mas capitulação, já que o projeto industrialista de base nacionalista não faz mais sentido diante da configuração do resto do audiovisual brasileiro, totalmente envolvido no jogo complexo da mundialização. Resta ao cinema fraca participação no mercado e há a inviabilidade econômica na maior parte dos casos, o que leva a uma total dependência estatal”, observa. “Abdicar de refletir seriamente sobre como o cinema pode se inserir de forma minimamente viável do ponto de vista econômico na constelação audiovisual, o que significa ir muito além das leis de incentivo, traduziu-se também em recusar a busca de uma relação artística mais complexa entre cinema e sociedade”, alerta. Segundo o historiador, a única forma de a atividade cinematográfica se tornar independente das injunções do Estado é ter alguma autonomia econômica via sua industrialização. “O problema é que, a partir da década de 1990, há uma descrença da própria corporação em relação ao Estado como vetor de industrialização, sem que, no entanto, se avance em direção a nenhuma plataforma nova.” É história pura.

Entre 1924 e 1954, a corporação flertou com Hollywood como o modelo de industrialização a ser seguido, diretamente ou temperado com a realidade nacional; eram tempos cujos grandes marcos foram a criação da Atlântida e a ascensão e queda da Vera Cruz. A partir de 1955, não há mais ilusões em cartaz e surgem outras propostas de industrialização: o cinema independente e autoral, a necessidade “patriótica” da intervenção do Estado e, para alguns menos à esquerda, a associação com o capital externo. “O Cinema Novo surge, de início, em extrema oposição à industrialização, num tom em que não faltou mesmo um viés religioso na necessidade de ‘purificar’ o cinema do comércio. Tanto ele como o cinema independente dos anos 1950 foram importantes na definição do papel do Estado como motor da industrialização, porque ambos associaram a luta contra a invasão cultural estrangeira com a luta econômica pelo mercado, gerando um amálgama entre as duas visões a partir de um ideário político de esquerda.” Essa oposição, avalia Autran, teve vida curta, pois o lançamento comercial das primeiras obras do Cinema Novo levou ao enfrentamento concreto de problemas que iam das dificuldades de lançar os filmes no exterior, passando pela resistência da exibição nacional, até o crescente endividamento dos produtores.

Cacá Diegues durante filmagens de A grande cidade

“Os cineastas ligados ao grupo do Cinema Novo perceberam que era impossível brigar por um cinema transformador da sociedade financiado pelo Estado se o aparelho estatal estava dominado por uma ideologia conservadora. Restou, então, a eles refazer sua proposta de política cultural por meio de delicadas démarches ideológicas, buscando, ao mesmo tempo, abrir diálogo com o Estado e se autojustificar por estar fazendo isso.” Foi nesse espírito que o grupo passou a dominar, nos anos 1970, a Embrafilme, tendo diante de si a inglória tarefa de legitimar um conceito que não fazia mais sentido: a luta contra o imperialismo, já que o Estado ditatorial apropriou-se do discurso, que transformava a argumentação da corporação em “mera justificativa ideo­lógica”. O desgaste do órgão, ao lado da crise econômica quase permanente do cinema brasileiro, facilitou para o governo Collor extingui-lo em 1990.

“A sobrevivência pífia da produção brasileira durante o governo Collor levou a corporação a se voltar novamente para o Estado, mas dessa vez por meio das leis de incentivo (como a Lei do Audiovisual, criada em 1993, no governo Itamar Franco) para o setor, e não mais por meio de um órgão estatal”, analisa. “O dinheiro público continua a financiar a produção, mas gerido de forma privada. Isso se reflete ainda hoje, apesar de discursos corporativos em contrário, já que nunca antes a produção brasileira de longas teve tanta sustentação por fundos públicos e a maioria delas depende das leis de incentivo.” O então cineas­ta Arnaldo Jabor chegou a elogiar a criação da Lei do Audiovisual como “a Carta Magna do cinema, moderna, sem dependências do Estado”. “Falar em independência do Estado quando se tem que esperar por todas as assinaturas de pessoas ligadas ao governo para que o nosso cinema pudesse ‘sair do labirinto’ é no mínimo incoerente, sem falar que se trata de renúncia fiscal, ou seja, dinheiro público.”

Batalhão
Onde, em meio a essa querela sobre as várias faces da indústria cinematográfica, está sentado o espectador? “Nos anos 1920, o público era visto como um ‘batalhão patriótico’ que tinha a obrigação de prestigiar o cinema nacional em nome do amor ao Brasil; nos anos 1950, ele passou a ser visto tanto como consumidor como sinônimo de povo, vertente ligada a Nelson Pereira dos Santos; a partir dos anos 1970, na construção de cinema-novistas, ele se transforma no ‘público popular’, alvo de conscientização política orientada pelo cineasta intelectual, e, depois, entendido como a massa cuja cultura seria resgatada e transformada para o seu consumo pelo cineasta atento à opressão e às mazelas dos deserdados.” Essa “construção” abstrata do público, continua Autran, só servia para reafirmar as posições de cineastas e críticos no campo cultural. Ou, mais recentemente, se transformou em nova justificativa para a manutenção do apoio estatal, já que, segundo alguns cineastas e produtores, as classes mais baixas, que seriam o público do filme brasileiro, teriam abandonado os cinemas por causa da crise econômica que elevara o preço dos ingressos. A solução, então, defendem, seria a construção, pelo governo, de uma enorme rede de salas com preços populares.

“São medidas inviáveis para o governo e nada atrativas para a iniciativa privada. A meu ver, o primeiro passo para se pensar melhor a questão do público no cinema, ou da sua ausência, é encarar a mundialização da cultura. Negar isso ou querer voltar ao tempo no qual o Estado possuía importância central na vida social é uma forma de impedir o aprofundamento da reflexão e da discussão”, avisa Autran. “Há muito tempo que o espectador do cinema nacional não tem mais nenhuma relação com a simpática figura do caipira que quer ver uma fita de Mazzaropi, ao qual chama de ‘nosso filme’, como representado no filme Tapete vermelho, de Luiz Alberto Pereira, forma de insinuar uma identificação direta entre espectador e povo brasileiro. Este personagem é mero desejo saudosista de parcela da corporação.” Um desejo útil: confundir espectador e nação implicaria, nesse sentido, que defender (apoiar financeiramente) o cinema brasileiro seria defender o próprio interesse popular. Mas quem afinal mais chegou ao público foi a televisão.

“Enquanto o cinema preferiu continuar desvinculado das pesquisas empíricas, já que a noção de público era uma criação intelectual dos cineas­tas, a televisão optou por uma noção de espectador em consonância com a modernização conservadora do capitalismo brasileiro, buscando vincular sua programação a tendências captadas pelos gostos e desejos do público. A televisão, na maior parte dos casos, era vista como “a grande inimiga do cinema”, tendência que ainda se mantém em alguns círculos da corporação, para os quais a TV é algo sem significação intelectual, já que ao cinema estaria reservada a “fruição qualificada”. Quando essa postura mudou e o cinema tentou se aproximar da televisão, qualquer negativa gerava lamúrias contra a suposta má vontade das emissoras com o cinema nacional. “Em verdade, o cinema tentou penetrar num mercado já ocupado e, ao contrário do que ocorria nas salas de exibição, quando se podia invocar o discurso nacionalista como forma de luta, na TV não há espaço ou razão para isso.” Assim, o futuro tampouco parece salpicado de “poeira das estrelas”.

“O governo Lula não avançou muito, pois se havia a previsão de a agência Ancine ficar ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o que reforçaria o aspecto industrial, ela acabou subordinada novamente ao Ministério da Cultura.” Assim, historicamente, num notável paradoxo, os maiores defensores do cinema brasileiro é que colocaram sobre a sétima arte brasileira suas piores pechas: atividade cara e atrelada eternamente às benesses governamentais; tendência ao encarecimento exagerado da produção; despreocupação em relação ao público etc. “Diante desse quadro, é preciso verificar se existe pertinência em ainda pensar uma indústria cinematográfica brasileira, já que o que existe é uma quase total incapacidade da área para organizar sua atividade de forma minimamente autossustentável.”

O projeto
Pensamento industrial e a política cinematográfica brasileira (1990-2005) (nº 08/50935-8); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Coordenador Arthur Autran; Investimento R$ 217.229,25 (FAPESP)

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