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Literatura

O latifúndio de Lobato

Ensaios analisam cada um dos livros infantis da série do Sítio do Picapau Amarelo

REPRODUÇÃO DA COLEÇÃO CENTENÁRIA DE MONTEIRO LOBATO - EDITORA BRASILIENSE/ILUSTRAÇÕES MANOEL VICTOR FILHOEm junho de 1941 o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de repressão da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas (1882-1954), viu-se diante de um “grave” fato que vinha recebendo generosa cobertura da imprensa paulistana. Segundo os jornais, o Departamento de Ordem Política e Social (Deops) estava investigando uma denúncia feita pelo procurador do estado de São Paulo, Clóvis Kruel de Morais, contra o escritor Monteiro Lobato (1882-1948), autor de Urupês, Negrinha e América e uma série de livros dirigidos às crianças, escritos ou traduzidos por ele. Morais pediu ao Tribunal de Segurança Nacional (TSN) a apreensão imediata em todo o estado de Peter Pan, história do menino que não queria crescer contada por Dona Benta, uma adaptação livre do texto do escritor inglês James Matthew Barrie (1860-1937), publicada pela primeira vez em 1930.

Na verdade, a “denúncia” contra o livro partiu do diretor da Recebedoria Federal do Ministério da Fazenda, em São Paulo, Tupi Caldas, que acusou o escritor de ter acrescentado conteúdo subversivo no texto original. Pela queixa formalizada por Morais, de número 4.180, de 20 de junho de 1941, a versão “alime
ntava nos espíritos infantis, injustificadamente, um sentimento errôneo quanto ao governo do país”. O procurador afirmou que havia na obra um “confronto premeditado” quando se referia às diferenças de vida entre crianças da Inglaterra e as do Brasil com o propósito de incutir nos brasileiros “nossa inferioridade, desde o ambiente em que são colocadas até os mimos que se lhes dão”.

Para ele, o brasileiro agiu “insidiosamente” quando explicou o motivo da desigualdade entre os dois povos, aproveitando-se para criticar as autoridades nacionais. Ao dizer às crianças como eram arrecadados e aplicados os impostos no país, acrescentou ao texto o seguinte comentário: “Há no Brasil uma peste chamada Governo que vai botando impostos e selos em todas as coisas que vêm de fora, a torto e a direito, só pela ganância de arrecadar dinheiro do povo para encher a barriga de parasitas”. O procurador concluiu que a causa para o desrespeito do autor estava justamente na liberdade “excessiva” dada pelo regime aos escritores, numa época em que o livro estava entre os mais importantes veículos de comunicação para as crianças.

REPRODUÇÃO DA COLEÇÃO CENTENÁRIA DE MONTEIRO LOBATO - EDITORA BRASILIENSE/ILUSTRAÇÕES MANOEL VICTOR FILHO Embora o caso seja brevemente citado num dos capítulos, esses detalhes do processo para apreensão e destruição de todos os exemplares da adaptação de Peter Pan não aparecem em destaque em Monteiro Lobatolivro a livro – Obra infantil, de Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, que acaba de ser lançado pela Editora Unesp e Imprensa Oficial. Não tira, de forma alguma, claro, a grandiosidade e o valor do volume. São citados aqui apenas como um detalhe revelador ainda hoje de dois aspectos: o quanto o escritor era popular e reinava soberano na época em sua faixa de público e, em segundo lugar, até que ponto ele levava a sério sua obra e seu público mirim. Embora continue a ser lido, nos últimos 40 anos, sua obra infantil perdeu muito espaço nas livrarias graças a uma briga judicial entre os herdeiros do escritor e a Editora Brasiliense, que ficou proibida de fazer qualquer atualização editorial e gráfica nas edições – que se tornaram pouco interessantes.

Mesmo assim as gerações mais velhas continuam a citá-lo como uma referência fundamental para desenvolver o hábito pela leitura e parte integrante do universo de imaginação quando criança. As versões das histórias do Sítio do Picapau Amarelo para a televisão, a partir de 1978, também ajudaram a perpetuar o legado do escritor. E é essa produção o objeto de análise deste interessante volume de 512 páginas, que trata de aspectos como linguagem, ilustrações e práticas editoriais do escritor. “Uma das novidades deste livro é apresentar o percurso cumprido por cada obra lobatiana – desde, muitas vezes, a discussão de seu projeto original até as alterações perceptíveis em suas diferentes edições”, observa Marisa.

O conjunto do livro é o que ela chama de “uma história da leitura do Brasil de Lobato”. Todos os convidados são pesquisadores da obra lobatiana – entre mestres e doutores. Há, explica ela, um grande esforço de pesquisa nesse sentido. Para análise da obra do escritor, os autores recorreram a documentos inéditos até então, como as cartas enviadas ao escritor por seus leitores, documentos editoriais e escolares. “Nunca se sabe exatamente como nasce uma ideia. No caso deste livro, rolavam conversas entre pesquisadores de leitura e literatura infantil da necessidade de um estudo mais aprofundado da obra de Monteiro Lobato”, recorda, em entrevista à Pesquisa Fapesp. Em uma Jornada Lobatiana na Unicamp, que reuniu pesquisadores seniores e juniores de todo país, surgiu a expressão “livro a livro” como um modo interessante de abordagem. “A ideia ficou em circulação, até que Ceccantini e eu a transformamos em um projeto, preto no branco, roteiro dos capítulos etc.”

REPRODUÇÃO DA COLEÇÃO CENTENÁRIA DE MONTEIRO LOBATO - EDITORA BRASILIENSE/ILUSTRAÇÕES MANOEL VICTOR FILHOMarisa concorda que, do ponto de vista histórico ou crítico, os livros infantis de Monteiro Lobato foram realmente subestimados, apesar de terem sempre sido bastante populares no decorrer de todo o século XX. “Lobato ainda é muito lido, felizmente! E creio que também a perspectiva crítica com que ele é visto está mudando.” Ela acha que o conjunto de artigos do livro monta um Monteiro Lobato muito rigoroso na construção de seu texto. “Seus livros são constantemente reescritos e é, na comparação entre as várias versões deles, que podemos ir percebendo a concretização do projeto literário lobatiano: o humor cada vez mais refinado, a linguagem cada vez mais simples, o respeito cada vez maior pelo seu leitor.”

A pesquisadora, porém, não crê em “retratos acabados” de obras ou de autores. “Cada livro sobre um autor abre um feixe de caminhos a serem trilhados por outros pesquisadores, e com isso a imagem que se tem de um autor e de sua obra é sempre meio caleidoscópica, isto é, sempre cambiante, embora as peças sejam as mesmas.” Monteiro Lobato, livro a livro, acrescenta ela, é uma espécie de “amostra” do resultado a que é possível chegar quando se trabalha com uma noção de literatura que inclui na discussão a materialidade do objeto livro e sua dimensão comercial. “Nesse sentido, tenho certeza de que nosso trabalho pode gerar outras pesquisas que irão aprofundar e complementar esta visão do artista da palavra enquanto trabalhador.”

O material de que se vale Lobato na construção de sua obra é, em sua opinião, muito variado: o folclore brasileiro, clássicos da literatura universal, conteúdos escolares. Nesse sentido, seu conteúdo é bastante representativo do caráter plural e mestiço da cultura brasileira. “A sua vasta correspondência, quer com outros escritores e amigos, quer com seus leitores, parece sugerir que ele – à medida que foi amadurecendo como escritor – trabalhou em um projeto cada vez mais articulado. A reescritura de suas primeiras publicações, livrinho muito curto que em 1931 foi reunido em Reinações de Narizinho, pode representar uma espécie de modelo do modo de trabalho do escritor, isto é, alguém sempre voltado para o que se poderia chamar de unificação de sua obra, unificação esta internamente garantida pela constância das personagens e do espaço.”

REPRODUÇÃO DA COLEÇÃO CENTENÁRIA DE MONTEIRO LOBATO - EDITORA BRASILIENSE/ILUSTRAÇÕES MANOEL VICTOR FILHOCada autor escolheu uma abordagem para tratar do escritor. Maria Alice de Oliveira Faria, professora titular de Literatura Brasileira da Unesp e que faleceu antes de ver o livro pronto, optou por falar das ilustrações de Belmonte (1896-1947), um dos mais importantes cartunistas brasileiros da primeira metade do século XX. A verve crítica de Lobato, escreveu ela, seu temperamento polêmico, a participação em grandes discussões políticas e educacionais de seu tempo e a vertente educacional e pedagógica de seus livros encontraram no traço do artista a transposição ideal das palavras para a linguagem visual. E um dos livros em que a dupla realiza um dos melhores trabalhos em parceria, para Maria Alice, foi Emília no país da gramática, publicado em 1934. “Quanto ao texto de Lobato nesse livro, dois aspectos se contrapõem: de um lado, a paródia, a gozação da gramática escolar do tempo; e, num campo mais amplo, a sua entrada na polêmica sobre a simplificação ortográfica do português, na qual tomou partido pela grafia fonética contra os partidários da grafia etimológica.”

O outro organizador do livro, João Luís Ceccantini, preferiu escrever sobre a contribuição de Lobato para o universo editorial brasileiro no papel de editor – que desenvolveu na década de 1920, quando se tornou um nome importante na modernização do livro como produto de consumo, na sua divulgação e promoção. De acordo com o pesquisador, só é possível compreender esse aspecto de sua vida “por meio do esforço contínuo em perceber a sobreposição dos papéis de escritor e editor, nessa mesma figura humana, em que se dá ênfase sucessiva de um ou de outro desses dois aspectos, mas ambos sempre em estreita relação de complementaridade”.

Para ele, esse aspecto constituiria apenas uma dentre as outras muitas facetas de um fenômeno maior, ligado à personalidade de Lobato, que teria permitido a convivência, no mesmo homem, entre o humanista engajado socialmente e cheio de ideais e seu lado de empresário plenamente alinhado à lógica do capital. Ou entre o literato lusitanizante, vinculado a modelos estéticos do século XIX, com o escritor afeito ao coloquialismo, aos neologismos e à metalinguagem, do admirador da cultura greco-latina com o apreciador de inúmeros produtos da indústria cultural, nas suas várias vertentes. E, ainda, “do publicista de agudo senso do concreto e atento às mazelas do país com o artista livre, imaginativo e amante da fantasia desbragada”.

Enfim, conclui ele, do artista que, entre o início da década de 1920 e meados da década de 1940, criou as narrativas do Sítio do Picapau Amarelo, as quais, seguramente, configuram o que Ceccantini chamou de “o mais alentado e consciente projeto literário nacional para crianças de que se tem notícia, seduzindo até hoje não apenas os pequenos, mas também jovens e adultos, e revelando-se como objeto de maior interesse para os estudiosos de nossa cultura”.

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