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Max Mallmann

O centésimo em Roma

[fragmento]

paula gabbaiHavia um componente curioso, eu arriscaria dizer ridículo, na personalidade de Dolens: quando ouvia falar de alguma doença, ele imediatamente se imaginava vitimado por ela. Se alguém tossisse perto dele, ele também tossiria. Assim, tão logo soube do mal que atingira a Castra Praetoria, ele passou a atribuir suas ocasionais dores de cabeça, seu cansaço intermitente e suas raras náuseas ao contágio da Febre.

Tentei convencê-lo de que esses pequenos padecimentos se deviam ao consumo de vinho em excesso e às noites em claro, mas ele não quis me dar ouvidos. Fez um testamento, distribuindo o pouco que tinha às mulheres da sua casa, e se tornou muito querido pelos sacerdotes de Febris, deus dos enfermos, pois doou dinheiro aos três altares consagrados a Febris em Roma: o do Monte Palatino, o do Esquilino e o do Quirinal. Bem verdade que suas oferendas não eram só em seu nome; ele pediu a bênção da cura a todos os doentes da Castra Praetoria e arredores. Mesmo assim, continuou temeroso, em primeiro lugar porque, no íntimo, ele não confiava, ou sequer acreditava, nos deuses. E, em segundo, porque Febris era um deus menor. Em busca de auxílio mais efetivo, ele resolveu sacrificar um porco a Esculápio, deus dos médicos, cujo templo fica na ilha Tiberina.

Duzentos sestércios mais pobre, sem contar o preço do porco, e com a túnica salpicada do sangue do sacrifício, Dolens voltava para casa, já noite alta, quando, ao cruzar a Ponte Fabrícia, deparou-se com o destino.

Vita Dolentis, de Quintus Trebellius Nepos.

XVI
Cobrindo de maldições os escravos que se recusam a obedecer-lhe, Salvius Otho manda embora a escolta e a liteira. Sozinho sob a lua, entupido de ódio e vinho, ele sobe no parapeito da ponte, oscilando ebriamente entre a vida e as águas lodosas. Um bom patrício, quando quer ou quando precisa se matar, deita numa banheira de água quente, para que as veias dilatem com o calor, e corta os pulsos. A morte vem lenta e lânguida, com tempo para pensar numa bela frase final. Se não há chance de botar água para aquecer, como em batalhas perdidas ou danações instantâneas, convém meter uma faca na garganta ou uma espada no abdome. Em qualquer caso, o suicídio é um ato privado. Contrariando o costume, Otho resolveu se jogar da Ponte Fabrícia.

É o momento das últimas palavras, mas não há ninguém para ouvi-las. E, mesmo que houvesse, ele não tem nada de seu para dizer. Espremendo os miolos em busca da citação adequada, ele destila da memória os versos da Eneida que falam do desespero da rainha Dido, após a partida de Enéas:

— “Acolham esta alma, curem minha angústia!

Vivi. Sob o auspício da Fortuna, marchei.

Sumirá nas profundezas meu grande nome”.

Ao dar o passo em direção ao oblívio, em vez do frio das águas turvas ele sente duas mãos ossudas agarrando-o pela túnica.

Desiderius Dolens chega a pensar que puxou o suicida com força excessiva: “Arranquei a cabeça dele!”. O susto dura até que Dolens se dê conta de que foi a peruca, e não a cabeça do suicida, que caiu a seus pés.

O suicida, bêbado como um bode oferecido a Baco, se desvencilha de Dolens, recolhe a peruca e a mete de qualquer jeito na cabeça:

— Quem lhe deu o direito de me tocar, verme?

— Ave! — Dolens faz a saudação dos nobres, porque a roupa e os anéis do suicida mostram que ele é alguém importante. — Sou Publius Desiderius Dolens, centurião pilus prior da primeira centúria da primeira coorte das coortes urbanas.

— Você é um monte de merda, isso que você é. Sabe com quem está falando?

— Gostaria de saber.

— Otho! Marcus Salvius Otho, governador da Lacedemônia… da Lenocínia…

— Lusitânia?

— E por acaso falei outra coisa? Você é surdo?

— O senhor é tio de Sálvia Othonis?

— Conhece a monstrinha?

— O irmão da mãe dela é meu patrono. O enteado dela é meu optio.

— Enteado? A monstrinha tem um enteado? Ah, sim, eu a dei em casamento para aquele velho… Porcinus.

— Longinus.

— Foi o que eu disse. Você tem mesmo um problema de audição, não tem?

— É possível, senador.

— Vá embora. Pode ir. Está dispensado. E me deixe morrer.

— Para ser franco, eu adoraria, mas não posso. Infelizmente para nós dois, sou pago para proteger senadores.

— Ah, é? Então me dê uma boa razão para que eu continue vivo.

Dolens faz menção de falar e trava, porque nada lhe vem à mente:

— Espere — ele se encosta no parapeito da ponte e apoia o queixo na mão. — Vou pensar.

Otho, com a peruca torta e um semblante atarantado, fica olhando para ele. E assim permanecem os dois, imóveis, por um tempo quase infindo.

— Dinheiro? — Dolens arrisca um palpite.

— Boa tentativa — diz Otho. — Mas não.

— Sexo — o rosto de Dolens se ilumina com a lembrança. — A pele sedosa das gaulesas, a carne tenra das itálicas, as cavidades rosadas das germanas, os mamilos duros das ibéricas!

— O falo de ébano dos núbios…

— Se o senhor gosta, vá em frente.

— Não basta. De tudo o que existe, já provei. Nada mais a vida tem para me dar.

— Poder, talvez?

— Ah, o poder… — Otho resmunga. — Eu merecia governar o Império!

— Tente.

— Galba não confia em mim.

— Nero não confiava em Galba. E hoje Galba é o imperador.

— Você acha que devo trair Galba?

— Estou apenas tentando salvar sua vida.

— Se eu quisesse, poderia acabar com o velhote. Tenho metade da idade dele. Sou mais inteligente. Mais culto. Mais bonito. E, mesmo que não fosse, eu, ao contrário dele, consigo limpar minha própria bunda depois de cagar. Nasci para ser imperador!

— Já é uma razão para continuar vivo, não é?

— Limpar a bunda?

— Também.

— Quem sabe ainda não seja minha hora de morrer?

— É hora de ir para casa, senador.

— Hoje minha casa é minha casa, mas em breve minha casa será o Palácio. Pelos deuses, eu juro! O velhote lamentará muito ter me desprezado.

— Deixe-me escoltá-lo até sua casa.

— Escoltar, só, não. Você é meu convidado.

— Convidado?

— Vou dar uma festa. Não sabia?

XVII
Marcus Salvius Otho, com duas ou três ordens berradas a seus escravos, conseguia organizar banquetes que fariam uma orgia de Calígula parecer frugal. Se ele soubesse administrar o Império com a mesma eficiência com que promovia festas, teria sido maior que o divino Augustus.

Desiderius Dolens estava longe de ser um homem casto, mas experimentara somente a luxúria compatível com seu salário de centurião. Otho chamou uma dúzia de escravos e mandou que “seu amigo plebeu” fosse banhado, perfumado e embrulhado numa túnica de seda. Dolens nunca havia sequer tocado numa peça de seda. Mais tarde ele me disse que o tecido era tão leve que, mesmo vestido, ainda se sentia nu. E foi com tal sensação que ele entrou no peristylium da casa othoniana.

Britanas pintadas de azul, germanas tatuadas, asiáticas de pele amarela, egípcias acobreadas, númidas cor da noite, iberos hirsutos, gregos depilados, capadócios de longos bigodes, lagostas grelhadas, ostras frescas, faisões fumegantes, polvos semivivos, todos ofertando sua carne aos convidados, no ritmo da orquestra escrava e do coro dos eunucos cantantes. Para outro senador, seria uma esbórnia sacrílega. Para Otho, era uma noite qualquer.

Dolens e Otho nasceram no mesmo ano, setecentos e oitenta e cinco da fundação da Cidade, com diferença de um mês e meio: Dolens veio ao mundo na véspera dos idos de março, e Otho no quarto dia antes das calendas de maio. Um era plebeu, o outro aristocrata. Um sonhava se tornar reles cavaleiro, o outro queria ser imperador. Um era alto e sarcástico, o outro, baixo e hiperbólico. Ainda assim, eles se pareciam: eram vítimas dos próprios impulsos, ao ponto de arriscarem sem motivo lógico a vida, a reputação ou ambas. Dolens ainda conseguia moderar seus desatinos, em parte pela falta de recursos, em parte pelo medo de morrer louco como seu pai. Otho, ao contrário, não tinha freios, nem para impedi-lo de escalar a morada dos deuses, nem para evitar que caísse no inferno.

Havia banheiras de vinho, chafarizes de ópio e turíbulos de cânhamo nos jardins da casa de Otho. Dolens me disse que sua última lembrança daquela noite foi arrastar para um divã uma contorcionista, uma virgem vestal e um eunuco tocador de címbalo.

Vita Dolentis, de Quintus Trebellius Nepos.

Max Mallmann divide suas palavras entre a literatura e a televisão. Desde 2005, é um dos roteiristas do seriado A grande família. O centésimo em Roma é seu quinto romance.

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