Imprimir PDF Republicar

Resenhas

A guerra de imagens

Imagens do sagrado | Fernando de Tacca | Editora Unicamp/Imprensa Oficial, 200 páginas, R$ 40,00

A visão do candomblé presente em O Cruzeiro e Paris Match

Publicado em 2009, o livro Imagens do sagrado, do fotógrafo e antropólogo Fernando de Tacca, recebe o subtítulo “entre Paris Match e O Cruzeiro“, entretanto vai muito além do relato sobre as disputas e debates que envolveram a publicação, pelas duas revistas, de imagens reservadas dos rituais de iniciação do candomblé na Bahia, nos anos 1950. Resultado de um primeiro encantamento – a descoberta das fotografias de José Medeiros sobre tais rituais, em 1984, quando entrou em contato com o livro Candomblé, publicado em 1957 –, o livro de Tacca sugere muitos desdobramentos.

A força estética das fotos de Medeiros o levou a uma aventura que não se define exclusivamente como antropológica, pois pode muito bem ser identificada com o trabalho de historiadores que se utilizam de fontes orais, na produção da história que as memórias criam e recriam, ou dos próprios jornalistas investigativos que buscam a “verdade por detrás dos fatos e das fotos”. No entanto, Fernando vai além… Arrebatado pelo olhar do fotógrafo, segue em direção à magia dos rituais e suas teias de significados e relacionamentos, num projeto de investigação que o coloca num caminho parecido com aquele trilhado por José Medeiros e o repórter Arlindo Silva em 1951, mas renovado por uma outra forma de operar a mediação fotográfica. Em vários momentos do livro, narrativas visuais compostas por séries de imagem agregam valor e densidade às informações apresentadas. Imagens que ilustram o texto, pois esclarecem e amplificam o significado das suas palavras. As fotografias das pessoas entrevistadas por Fernando ou, ainda, a reprodução das imagens publicadas nas revistas pesquisadas agem como luzes que se acendem iluminando o ritmo da leitura com um sorriso, um olhar, um trejeito, ou mesmo com a apresentação de um acontecimento completo.

A análise do livro, por sua vez, revela um segundo encantamento – a descoberta do povo de Mãe Riso do Bairro da Plataforma, em Salvador, e de Nilópolis, no Rio de Janeiro, uma rede de memórias formada por pessoas que haviam mantido contato direto e indireto com os protagonistas de uma história vivida há mais de 50 anos. Filhos, sobrinhos, netos, irmãos, vizinhos e amigos tramam a teia das lembranças que serve de tecido ao primeiro capítulo. Nele acompanhamos Fernando nas conversas e nas negociações, nos encontros e desencontros, compartilhamos suas surpresas e decepções. Esse capítulo também dá pistas sobre a história recente do candomblé, principalmente sobre a relação ainda pouco estudada entre o candomblé da Bahia e o do Rio de Janeiro. Assim, só não foi possível, na leitura do capítulo, compartilhar as cervejas e as comidas fartamente servidas nesses encontros e relatadas nas cuidadosas descrições das etapas da pesquisa. O capítulo por si só já valeria um livro. Mas Fernando vai além…

Ruma para a análise das disputas entre a imprensa internacional e a nacional, representada no embate Paris Match e O Cruzeiro, e avalia a perspectiva sensacionalista adotada por ambos os veículos de imprensa. Amplia o debate introduzindo as falas dissonantes da época, como fica evidenciado no capítulo 2, ao apresentar o posicionamento contrário de Pierre Verger à publicação de imagens reservadas dos rituais de candomblé. Ao longo da exposição dos seus argumentos, Fernando desenvolve uma espécie de contra-análise de histórias cristalizadas, apoiada em rigorosa pesquisa de arquivo. O resultado desse trabalho foi reconstruir a guerra de imagens que se desenrolava tanto nos terreiros de candomblé quanto nos espaços públicos da mídia que tinha a função de imaginar um Brasil mestiço, mas repleto de preconceitos. Ainda assim, Fernando foi além… Foi além pois criou uma metodologia de trabalho que reuniu sua experiência de fotojornalista à sensibilidade de um antropólogo afeito às imagens, como oportunamente observa na apresentação Milton Guran, ele também um fotógrafo e antropólogo que partilha com Fernando a experiência de criar um pensamento visual.

Ana Maria Mauad é professora associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF e pesquisadora do CNPq.

Republicar