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Saúde

A terceira onda

Grupos do Brasil e do exterior iniciam nova fase de busca por uma vacina contra o HIV

virus_01Pedro HamdanDois estudos publicados na revista Science no início de julho renovaram a esperança de que um dia, ainda que distante, se produza uma vacina eficaz e segura contra o HIV, vírus que nas últimas três décadas infectou 60 milhões de pessoas no mundo e matou 27 milhões, número de vítimas talvez inferior apenas ao deixado pela epidemia de gripe de 1918 e pela Segunda Guerra Mundial. Em um dos trabalhos pesquisadores de duas universidades norte-americanas e dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), o maior centro de pesquisas médicas do mundo, isolaram dois anticorpos altamente potentes do sangue de um portador do vírus da Aids. Cada um dos anticorpos – o VRC01 e o VRC02 – mostrou-se capaz de neutralizar 91% das 190 variedades mais comuns do HIV, desempenho bem superior ao dos anticorpos mais eficientes encontrados anteriormente, que bloqueavam a ação de 40% das cepas. No outro estudo uma equipe da qual participou o imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, analisou a estrutura e as características moleculares do VRC01 e identificou a região do vírus a que esse anticorpo adere, impedindo o HIV de infectar as células humanas.

“Esses resultados são muito encorajadores e abrem um novo caminho para o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV”, afirmou o imunologista Anthony Fauci, um dos mais respeitados pesquisadores de Aids no mundo e diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, um dos 27 centros que integram os NIH, em entrevista por e-mail à Pesquisa FAPESP.

Mais do que representar o sucesso de um grupo científico de elite, esses trabalhos reiteram os acertos de uma nova era de buscas de vacinas que vem sendo chamada de terceira onda. Iniciada há dois ou três anos, essa mudança de rumos tenta corrigir os problemas identificados nos estágios anteriores, nos quais foram estudadas dezenas de formulações candidatas a vacina anti-HIV – das quase 30 que passaram por algum estágio de teste em seres humanos, só uma gerou proteção, mas em nível muito baixo. Diante das tentativas frustradas e de um investimento mundial de quase US$ 1 bilhão por ano nos últimos anos, a comunidade científica internacional e a sociedade civil organizada se reuniram, revisaram suas metas de desenvolvimento de vacinas e decidiram investir mais esforço, tempo e dinheiro em tecnologias mais inovadoras, mas potencialmente mais eficientes. Foi uma mudança de rumos que abriu espaço para a participação, ainda que incipiente, de equipes brasileiras na corrida por uma vacina.

“Houve um avanço expressivo nessa área nos dois últimos anos e o Brasil não pode ficar para trás”, diz Cristina Possas, responsável pela Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Iniciativa Internacional por uma Vacina Antiaids (Iavi), o grupo de Cristina faz um levantamento da capacidade nacional de pesquisa e desenvolvimento tecnológico em produção de vacinas anti-HIV.  Dados preliminares do estudo, a ser apresentado em outubro na Academia Brasileira de Ciências, mostram que o investimento brasileiro é modesto e está concentrado no Ministério da Saúde. Desde 1999 o ministério investiu R$ 7 milhões em 31 estudos de compostos candidatos a vacinas anti-HIV, 95% do total aplicado na área no país, enquanto a África do Sul aplicou  U$ 200 milhões. “É preciso ampliar a parceria com outras agências de financiamento no país”, afirma Cristina.

Na Conferência Internacional de Aids realizada em julho, lembra Cristina, ficou claro que é um erro imaginar que os medicamentos sozinhos vão impedir a disseminação da Aids. A Organização Mundial da Saúde estima que só 40% de portadores do HIV tenham acesso aos remédios – e, calcula-se, para cada duas pessoas que iniciam o tratamento, outras três contraem o vírus. Pioneiro na distribuição gratuita de antirretrovirais, o Brasil vem investindo valores crescentes, que em 2009 somaram R$ 1 bilhão, no tratamento da Aids. “Um dos maiores gastos do Ministério da Saúde é com medicamentos anti-HIV”, diz o imunologista Ernesto Torres Marques, membro do Comitê Técnico Assessor Nacional de Vacinas anti-HIV do ministério.

É consenso entre pesquisadores e membros da sociedade civil organizada que, para conter a pandemia de Aids, será preciso usar todos os meios à disposição, que incluem campanhas de educação sexual e orientação para a prática de sexo seguro. Além disso, claro, uma vacina. “Se a postura do Brasil for de esperar que outros resolvam esse problema, mais adiante teremos de pagar pelo que desenvolveram”, diz Marques, pesquisador da Universidade de Pittsburgh e da Fundação Oswaldo Cruz, criador de uma tecnologia que tenta facilitar a entrada dos componentes de uma possível vacina nas células e, assim, intensificar a resposta imunológica do organismo.

NIBSC / SCIENCE PHOTO LIBRARY / SPL DC / LatinstockMaré vermelha: linfócito T infectado (verde) libera novas cópias do HIVNIBSC / SCIENCE PHOTO LIBRARY / SPL DC / Latinstock

Desde que o HIV foi identificado em 1983 como agente causador da Aids, a síndrome que aniquila o sistema de defesa humano e deixa o organismo suscetível a diversas infecções, pesquisadores do mundo todo buscavam anticorpos tão potentes como os descritos na Science. Mas não os haviam encontrado. A maioria dos anticorpos aderia a variedades específicas do vírus e não as neutralizava. A descoberta apresentada em julho restaura o ânimo dos pesquisadores depois de anos de resultados pífios porque prova uma antiga hipótese. Se o organismo de um portador do HIV produziu naturalmente anticorpos tão eficientes, é possível, ao menos em teoria, estimular o de outras pessoas a fabricá-los também por meio da aplicação de uma vacina.

Mas não será fácil nem rápido  chegar a essa vacina. Primeiro é preciso descobrir como reproduzir artificialmente as proteínas da superfície do vírus que, em contato com as células de defesa, levam à produção desses anticorpos potentes, verificar a forma mais eficiente de introduzi-las no organismo e avaliar se de fato funcionam. Só então, vencidas também as etapas de produção industrial e de testes em animais e seres humanos exigida pelos órgãos de saúde para liberar a comercialização, se terá obtido a desejada vacina preventiva, capaz de evitar a infecção pelo HIV quando aplicada em pessoas saudáveis.

Por ora, o mais próximo que se chegou de uma vacina preventiva foi a combinação de duas formulações (Aidsvax e Alvac-HIV) que não haviam funcionado separadamente. Essa estratégia foi testada entre 2003 e 2006 na Tailândia em um ensaio clínico com 16,4 mil pessoas – metade tratada com a formulação dupla, metade com um composto inócuo (placebo). A eficácia da combinação foi considerada baixa: o número de pessoas infectadas foi 31% menor no grupo que recebeu Aidsvax e Alvac do que no grupo de controle.

Apesar do desapontamento causado, esses resultados, apresentados em 2009 no New England Journal of Medicine, revelaram um lado positivo dessa história. Pela primeira vez, verificou-se em seres humanos o que só havia sido observado em macacos: era possível usar uma vacina para estimular a produção de anticorpos contra o HIV.

Dois anos antes, testes clínicos usando uma formulação candidata a vacina produzida pela empresa farmacêutica Merck tiveram de ser interrompidos antes do fim porque o composto não gerou efeito protetor. Esse composto funcionava de modo diferente da combinação aplicada na Tailândia. Em vez de estimular a produção de anticorpos (resposta humoral), o composto da Merck acionava a defesa celular: recrutava uma cadeia de células encarregadas de identificar partículas dos microrganismos invasores e eliminar as células infectadas.

virus_03Pedro HamdanA vacina da Merck usava uma versão modificada de um vírus que acomete as vias respiratórias – o adenovírus humano do tipo 5 –, incapaz de se reproduzir, para inserir nas células humanas genes artificiais de três proteínas do HIV. Uma vez no interior das células, em especial de um grupo chamado de dendríticas, os genes do HIV passam a produzir cópias dessas proteínas, que depois são espetadas na membrana celular, onde funcionam como avisos luminosos denunciando a presença do invasor. Outras células de defesa, os linfócitos T CD8, identificam esses sinais e lançam proteínas tóxicas que matam as células infectadas. A ideia era boa e, se funcionasse, poderia resultar num tipo  diferente de vacina preventiva, indutora de imunidade celular.

Mas o composto da Merck não produziu o efeito esperado. Inicialmente, acreditou-se até mesmo que aumentasse o risco de infecção pelo HIV entre as pessoas que já haviam tido contato com o adenovírus. Essa possibilidade, depois refutada, se deveria ao fato de os anticorpos delas impedirem o adenovírus da vacina de entrar nas células e desen­cadear a resposta celular. “No Brasil, cerca de 70% da população tem anticorpos contra esse vírus, sinal de que a vacina da Merck poderia não funcionar aqui”, afirma o imunologista Aguinaldo Pinto, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com sua equipe, ele tenta solucionar esse problema substituindo o adenovírus humano por uma cepa exclusiva de chimpanzés. Nos testes com camundongos, a formulação aplicada na mucosa vaginal, nasal e oral estimulou a proliferação de células de defesa em outras mucosas do corpo. Mas não é tão simples. “Depois de uma primeira dose, o organismo pode desenvolver anticorpos e seria necessário usar outro tipo de vírus na dose de reforço”, explica.

Atento a esses resultados, o imunologista Edecio Cunha Neto, do Instituto do Coração e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), decidiu investir no desenvolvimento e nos testes de um composto produzido com base em novas premissas, possivelmente um dos primeiros candidatos a vacina anti-HIV de origem nacional.

Por volta de 2002, recém-chegado de uma temporada em Harvard, Cunha Neto integrou a equipe do imunologista Jorge Kalil e, juntos, começaram a analisar o sistema de defesa de um grupo especial de portadores do vírus, que mantinham o HIV sobre controle por mais tempo e demoravam mais a adoecer. No sangue dessas pessoas, a quantidade de linfócitos T do tipo CD4 permanecia mais elevada que o normal. Responsáveis por acionar os linfócitos T produtores de toxinas (CD8) e os produtores de anticorpos (linfócitos B), as células CD4 são o principal alvo do HIV, que se aproveita da maquinaria celular para se reproduzir. Mas faltava descobrir o que os linfócitos CD4 dessas pessoas tinham de especial.

Uma possibilidade, imaginaram, era que os linfócitos CD4 reconhecessem o vírus e ajudassem outros linfócitos a combatê-lo. Para testar a ideia, isolaram pequenos pedaços das proteínas do HIV e iniciaram uma espécie de pescaria molecular com o objetivo de ver quais deles eram reconhecidos mais facilmente pelos linfócitos daqueles pacientes. Selecionaram os 18 fragmentos de proteínas (peptídeos) de áreas do vírus que se mantêm inalteradas na maioria das cepas e que haviam sido identificados pelos CD4 com mais frequência e os recriaram em laboratório.

042-043_HIV_174Um teste conduzido pela imunologista Simone Fonseca, da equipe de Cunha Neto, com amostras de sangue de 32 portadores de HIV revelou que as células de defesa de praticamente todos reconheciam pelo menos um dos peptídeos. Em 40% dos casos, mais de cinco peptídeos foram identificados, segundo estudo publicado em 2006 na Aids.

Em outro experimento, descrito em artigo publicado em junho deste ano na PlosOne, Susan Ribeiro e Daniela Rosa administraram os peptídeos a camundongos geneticamente alterados para produzir moléculas do sistema imune humano. Os resultados foram ainda mais animadores: 16 dos 18 peptídeos foram reconhecidos e ativaram tanto os linfócitos CD4 como os CD8. “Se tudo der certo, esses peptídeos talvez possam funcionar como um reforço para vacinas contra o HIV como a da Merck, já que têm princípios complementares”, comenta Cunha Neto.

Antes que essa formulação um dia possa ser aplicada em seres humanos, é preciso percorrer uma longa jornada de experimentos, cheia de obstáculos. Um deles é a falta de infraestrutura adequada no Brasil para os testes mais avançados. Os experimentos feitos com macacos, que têm organismo mais próximo do humano, custam, no mínimo, US$ 500 mil. E ainda seriam necessários cerca de US$ 7 milhões para se produzir uma formulação adequada para o uso em pessoas. “Nossa esperança”, diz Cunha Neto, “é que os resultados dos testes superem a expectativa e facilitem a obtenção de recursos para as etapas seguintes, cada vez mais onerosas”.

Também na USP, o grupo do imunologista Alberto da Silva Duarte, presidente do comitê de vacinas do ministério, inicia uma segunda fase de testes em seres humanos de outra estratégia de vacinação, avaliada inicialmente em Recife por Luis Arraes. Chamada de vacina terapêutica, ela é preparada com células de defesa do sangue da pessoa infectada, cultivadas com cópias inativas do vírus antes de seres reintroduzidas no organismo. A expectativa é que esse tipo de vacina ajude o sistema imune de quem tem o HIV a manter o vírus sob controle por mais tempo e adiar o início do uso dos antirretrovirais. “Uma vacina terapêutica, além de complementar o tratamento, cria a oportunidade de descobrir qual tipo de resposta imune gera proteção contra o HIV”, afirma Duarte.

Tanto no Brasil como no exterior os custos desses experimentos limitam o desenvolvimento de candidatos a vacina. A formulação criada por Ernesto Marques encontra-se numa fase mais avançada de testes. Experimentos com 40 macacos rhesus já mostraram que ela agiliza a identificação do HIV pelos linfócitos e eleva o nível dessas células de defesa no sangue. Estudos comparando essa formulação com outra usando vírus de macacos demonstrou sua eficácia como estratégia terapêutica. Marques, que colabora com o grupo de Alberto Duarte, busca agora um financiamento de US$ 1,5 milhão para iniciar os testes com seres humanos. Em 2008, quando foi lançada a versão mais recente do Plano Brasileiro de Vacinas Anti-HIV, o ministro da Saúde, José Temporão, prometeu R$ 25 milhões ao desenvolvimento de vacinas. Até o momento, segundo Cristina Possas, os recursos não foram liberados.

Os projetos
1. Resposta imune protetora contra a infecção pelo HIV: desenvolvimento de imunógenos contra o HIV-1 e identificação de alvos para intervenção imunológica em pacientes progressores lentos (nº 2006/57179-9); Modalidade Programa de Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Edecio Cunha Neto – FMUSP; Investimento R$ 302.296,32
2. Utilização em vacinas, imunógenos e testes de avaliação da resposta imune celular ao HIV-1 de epitopos de linfócitos T CD4+ inéditos de regiões conservadas do HIV-1 subtipo B (nº 2004/15331-3); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi); Coordenador Edecio Cunha Neto – FMUSP; Investimento R$ 60.030,81
3. Identificação de fatores virológicos, genéticos e imunológicos associados ao fenótipo de não progressão da doença do HIV (nº 2001/00729-3); Modalidade Programa de Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Edecio Cunha Neto – FMUSP; Investimento R$ 324.895,73

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