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Resenhas

Império tropical na visão de um médico

Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste império | Joseph François Xavier Sigaud [1ª edição francesa, 1844], Tradução de Renato Aguiar | Editora Fiocruz, 424 páginas, R$ 70,00

Editado pela primeira vez clássico de naturalista francês

“Cada latitude tem sua marca, cada clima tem sua cor”: a epígrafe, tomada de Cabanis, indica o princípio orientador do tratado editado em Paris, em 1844. Du climat et des maladies du Brésil ou statistique médicale de cet empire teve uma única edição francesa e jamais se editara em português, até 2009, quando surgiu na coleção História e Saúde, da Editora Fiocruz.

Este alentado tratado é de autoria de Joseph François Xavier Sigaud (Marselha, 1796 – Rio de Janeiro, 1856), médico instalado no Brasil em 1825 e aqui ligado a variadas atividades científicas e culturais. A obra resultou da compilação de documentos históricos, geográficos e médicos; suas fontes foram obtidas no Brasil e na França e entre os que lhe forneceram bibliografia sobre o país estavam José Bonifácio de Andrada, o cônego Januário da Cunha Barbosa e Ferdinand Denis. Quanto aos textos de medicina, foram usados trabalhos europeus e americanos, além de contribuições vindas da experiência clínica do próprio autor.

A partir da perspectiva do chamado neo-hipocratismo, Sigaud discute com detalhes a relação entre climas, ambientes (ares, águas e lugares) e patologias, trata de peculiaridades da terra, das características e dos hábitos da população do Brasil, de forma comparativa à Europa, à África, às Antilhas e às Américas. De maneira geral, para ele, as manifestações das doenças não diferem substancialmente entre indivíduos das raças branca, negra ou indígena, ou entre africanos e europeus, importando mais fatores climáticos, ambientais e condições de vida de cada grupo, tais como: qualidade da alimentação, exposição ao frio, à umidade e ao calor, excesso de trabalho, abuso de álcool, doenças debilitantes etc.

Sempre relacionando patologia, ambiente natural e modus vivendi, o tratado está dividido em quatro grandes seções: Climatologia (variações térmicas e barométricas, umidade e chuvas, ventos etc.); Geografia Médica (alimentação e aclimatação, doenças dos índios, dos negros e dos trabalhadores das minas, curandeiros, doenças endêmicas e epidêmicas); Patologia Intertropical (febres intermitentes, tísica pulmonar, doenças nervosas, doenças de pele, mordidas de cobras etc.); Estatística Médica (composição racial da população, mortalidade, legislação sanitária, estabelecimentos científicos, hospitais, cemitérios etc.). A seção final conta ainda com biografias de médicos e naturalistas do país e com uma lista de obras de medicina e de história natural publicadas no Brasil de 1810 a 1843.

A edição atual é enriquecida pelo prefácio de Annick Opinel, do Centro de Pesquisas Históricas do Instituto Pasteur francês, e pela introdução de Luiz Otávio Ferreira, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz, Rio de Janeiro). O primeiro destaca as contribuições do trabalho de Sigaud à história da medicina e a segunda enfatiza sua participação na institucionalização da medicina brasileira e na criação da imprensa nacional. Sergio Goes de Paula (Fiocruz) assina a orelha do livro, onde aponta a “curiosidade humboldtiana” do médico francês. A edição conta com notas de revisão e reconstituição da bibliografia citada, além de lista das publicações de Sigaud. As tarefas de organização do volume e a revisão técnica da tradução ficaram a meu cargo e de Ângela Pôrto (COC/Fiocruz). Sigaud pretendia reeditar o livro, mas faleceu antes de terminar a revisão para a segunda edição; entretanto deixou notas manuscritas, em exemplar que se encontra na Academia Nacional de Medicina – estas foram recuperadas e traduzidas por Ângela Pôrto e integram a presente edição brasileira.

Assinalando desejar que seu trabalho fosse apenas um marco inicial para futuros estudiosos do Brasil, Sigaud diz em carta a Pedro II, a quem dedica sua obra: “Aquele que começou um livro (…) é somente aluno daquele que o conclui”. Excesso de modéstia de um grande mestre, que o leitor poderá constatar tendo em mãos o precioso Do clima e das doenças do Brasil.

Ana Maria Galdini Raimundo Oda é pesquisadora do Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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