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Resenhas

A revisão necessária de um clássico

Tempos de Casa-grande (1930-1940) | Silvia Cortez Silva | Editora Perspectiva / FAPESP, 242 páginas, R$ 36,00

As incoerências raciais no discurso de Gilberto Freyre

Antonio Torres, talvez o maior humorista satírico brasileiro, não perdoava ninguém: governo, oposição, inimigos e até alguns amigos. Mas foi longe demais em 1914, quando, em plena onda nacionalista e bélica, chamou a Liga dos Países Aliados de “Liga dos gatos-pingados” (“comandada por americanos assassinos de negros”), provocando constrangimento nos seus colegas do Itamaraty. Torres acabou “transferido” anos depois para a Alemanha, de onde não mais voltaria. Em 1923, encontrou-se em Londres com Gilberto Freyre: era sempre uma alegria encontrar compatriotas em país estranho. Mas o encontro foi às escondidas – Freyre nem chegou a apresentá-lo a seus “amigos nórdicos de Oxford, por se sentir”, como confessou depois, “apavorado com o seu aspecto de mulato cacogênico e ostensivamente feio”.

A expressão mulato cacogênico (quase um neologismo juntando cacopatia, “doença de mau caráter racial”, com a eugenia) já fazia parte do rol de categorias raciais que formariam a singular “eugenia de Freyre: uma seleção do melhor branco e do melhor negro para que estes resultassem num mulato ‘eugênico'”. Entre muitas, esta é uma das revelações da historiadora Silvia Cortez Silva em Tempos de Casa-grande (1930-1940), que analisa as surpresas, os aplausos e as rejeições ao clássico Casa-grande & senzala na época de sua primeira publicação. Acompanhando intérpretes hoje esquecidos, a autora rastreia facetas pouco conhecidas de Freyre, a de um intelectual racista e, em particular, antissemita. Como tais facetas acabaram fortemente eclipsadas pelo mito da democracia racial e a obra de Freyre virou um terreno bastante pisoteado, Silvia escolhe interpretar o tema inspirando-se na mitologia grega: lá estão Cronos, Proteus, Éolo, Narciso e Sísifo, cada um deles emprestando sentidos muito sutis a cada um dos capítulos.

“O famoso coleciona coros. Quer apenas ouvi-los pronunciar seu nome. Tanto faz se se trata de coros de vivos, de mortos ou dos que ainda não nasceram, contanto que sejam grandes e treinados na repetição do seu nome.”  Esta lição de Elias Canetti inspira a autora a conduzir o leitor aos tempos conflituosos de Casa-grande & senzala. Tempos nos quais a junção dos discursos da revista Fronteiras, da Igreja Católica, e da interventoria de Agamenon Magalhães serviu para plasmar em Pernambuco a férrea legitimação autoritária do Estado Novo. Fronteiras catalisou o que havia de pior naquelas plagas, cheias dos desmandos de Agamenon Magalhães, que moveu campanha difamatória contra Freyre, ensejando a prisão deste (e de seu pai, Alfredo Freyre), em represália a um artigo de Freyre publicado no Rio de Janeiro.  Foi esta conjuntura que levou Antonio Cândido a chamar Freyre de “mestre da radicalidade”. Canetti ainda inspira a autora a documentar minuciosamente o quanto Freyre vai se tornando portador daquela ferida narcísica – que nunca sara –, transformando-se, ao longo de toda a sua vida, em factótum de si mesmo. Em torno dele se processava um culto que ele mesmo presidia, contente e insaciável, abrindo seus livros com apreciações detalhadas de suas grandezas e notícias circunstanciadas de cada pasmo que provocava mundo afora. Mas a amostragem mais sólida deste livro polêmico é com relação ao antissemitismo, que emerge nos escritos de Freyre em 1921-1923, completando-se depois nas décadas posteriores, com Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos. A historiadora realiza uma detalhada topografia do tema nestas obras, rastreando elementos formadores de um “perfil quase lombrosiano do judeu”, na sucinta expressão de Luis Costa Lima.

A miscigenação das raças singularizou este país e criou a originalidade de um “Brasil brasileiro”. Sem essa interpretação pioneira de Freyre até hoje é difícil compreender o Brasil. Mas transmutar tal singularidade numa mitologia da democracia racial já é coisa sobre-humana. É certo que antissemitismo e racismo tornaram-se quase modismos culturais e os preconceitos de Freyre, bem urdidos na fluidez de sua escrita, são compreensíveis em tempos nos quais se tornava difícil não respirar um oxigênio cultural fascista.

Elias Thomé Saliba é professor titular de teoria da história na USP e autor, entre outros, de Raízes do riso (Cia. das Letras).

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