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Guilherme Kujawski

Transgredindo as fronteiras:

Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica em quase mortos

laila terraDesde o acidente no Grande Colisor de Férmions (GCF), em que um dos ímãs supercondutores derreteu por falta de refrigeração e liberou um solerte miniburaco negro, uma atividade profissional meio esquecida ganhou impulso: o tanatólogo, médico especializado em todos os aspectos que envolvem os últimos dias de vida de um moribundo. Motivo: o novo “habitante” passou a dar o ar de sua graça no temido fosso ontológico entre vida e morte, naquela passarela onde nos rendemos à inabalável obrigação de ir do “cá-já” para o “sempre-já” ou, em linguagem mais vulgar, do “estar-aí” para o “já-era”. Foi assim que médicos e cientistas se juntaram na missão de capturar o Negrinho do Pastoreio quântico.

Não que o fenômeno tivesse deflagrado algum tipo de genocídio planetário ou coisas assim; mas parecia empenhado num tipo de vingança contra a humanidade, forçando a sua aparição sempre no momento em que passamos desta para outra, como um fantasma ameaçador. Em suma, o minúsculo objeto surgia sempre no “local” de onde nos lançamos ao infinito, descrito poeticamente como um desembarcadouro anímico, ou, cientificamente, como uma plataforma de cerca de 100 bilhões de bilhões de vezes menor que o núcleo atômico. O fato rendeu várias hipóteses, tanto no campo da física como no da metafísica, sobre o porquê desse comportamento. Artigos científicos sobre o tema espalharam-se como cogumelos.

O evento era estranho demais para ser descrito; era como se pudéssemos enxergar o que estava aparecendo, mas não exatamente acontecendo. Pouco depois do acidente no GCF, físicos e tanatólogos haviam observado que o miniburaco negro apresentava uma constante de interação na hora da morte de uma pessoa, mas decaía logo após a passagem do moribundo para o Caos pré-ontológico primordial, ou seja, era um objeto elementar de incrível densidade que interagia com a matéria corporal antes de se desintegrar temporariamente, comportamento semelhante ao daquelas partículas e antipartículas que emergem, se chocam e desaparecem no horizonte de eventos dos buracos negros comuns.

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Dr. M. era um notório tanatólogo, mas com uma diferença: em vez de atuar na área de cuidados paliativos, como a maioria de seus colegas, seu interesse convergia especificamente para o último dia do paciente. Seguidor das teses do dr. MacDougall — o médico que dizia ter descoberto o peso da alma — e de alguns astrofísicos russos interessados na estrutura quântica de organismos vivos, Dr. M. possuía o dom de interpretar nuances qualitativas em pacientes prestes a falecer, como a emissão de radiações invisíveis a olho nu e mudanças súbitas no índice de massa corporal. Por isso era tão requisitado tanto por físicos de partículas como pelos departamentos de óbito dos hospitais.

Num certo dia de maio, Dr. M. subiu uma pequena ladeira para atender a uma de suas pacientes especiais, Anna O., mulher de noventa e oito anos que, apesar das mazelas causadas pelo Alzheimer avançado, continuava a se agarrar com firmeza a todos os aspectos do mundo exterior. Cientistas temiam esse tipo de comportamento, considerado altamente perigoso, pois deter-se muito tempo no ponto de passagem significava estender o tempo de vida do miniburaco negro, facilitando uma catástrofe. Morte e vida revezavam-se no dia a dia de Anna O. e mediam forças contra o fundo asséptico das paredes do asilo, mas também contra o fundo negro do grande Vazio, fulcro primordial ao qual todo ser vivo prestará homenagem algum dia. Apesar de seu apego ao mundo físico, até os gladíolos do jardim sabiam que aquele seria o seu último dia de vida.

O plano era administrar uma sessão de I-dosing na paciente pouco antes de sua partida. Depois de ajustar os dispositivos ultrassonoros e estroboscópicos, Dr. M. iniciou o processo que consistia em levar a paciente a um estado alterado de consciência, com o intuito de tentar diminuir a sua insistente permanência no ponto de passagem, e tentar redirecionar o miniburaco negro a um pequeno solenoide, cópia do original suíço, uma verdadeira armadilha eletromagnética. O perigo de se ter um miniburaco negro emergindo e submergindo de tempos em tempos é o aumento da possibilidade de anulação total da própria materialidade. E bastaria a má vontade de um moribundo para colocar em risco um trabalho de 13,7 bilhões de anos.

Um dos feixes da luz estroboscópica oscilou no momento em que Anna O. iniciou a jornada em direção ao sublime Campos Elísios. De sua perspectiva, o mundo estava deixando de ser palpável e passando a ser composto de uma chuva de átomos cujos desvios produzem encontros que formam o princípio de toda a realidade. Dr. M. percebeu a oportunidade e ligou o pequeno solenoide, que emitiu um zumbido estranho, semelhante ao som do silêncio produzido por uma usina hidrelétrica imaginária. Mas inesperadamente Anna O. deu marcha à ré e adiou mais uma vez o encontro com a ceifadora, causando enormes preocupações ao médico.

A extensão de permanência no ponto de passagem estava de alguma forma associada à força gravitacional, pois os grávitons são sempre atrativos. A tese já havia sido exposta em vários artigos científicos escritos por Dr. M., mas aguardava ainda por uma aprovação de seus pares. Enquanto o tanatólogo pensava nesse particular, algo incomum aconteceu. O feixe da luz estroboscópica se polarizou sem nenhuma explicação no momento em que Anna O. balbuciava alguma coisa. “É agora”, pensou o tanatólogo, esperando sinais de estertores. Mas Anna O. insistia em pertencer à comunidade dos viventes.

A polarização da luz fez com que Dr. M. lembrasse que os fótons podem ser convertidos em áxions, as subpartículas essenciais do universo. “Por que ela não aproveita o momento e se desprende de uma vez? Por que ela não se deixa levar pela torrente de áxions?” Mais rápido do que a elaboração dessa questão, o miniburaco negro irrompeu de seu canto imemorial e surgiu no quarto com toda a pompa. Anna O. estava se detendo por demais no ponto de passagem, oferecendo longevidade ao inimigo. “Ela precisa ir agora! Por que ela continua grudando seus pensamentos à carne? Vá, mulher! Vá!” Nesse momento, a luz estroboscópica subitamente se apagou, assim como a luz do sol lá fora. Os áxions deixaram de executar o seu balé quântico e Anna O. finalmente faleceu. Mas era tarde demais.

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Após o incidente inaudito, não houve o dia seguinte. E os artigos científicos escritos por Dr. M., encabeçados por títulos pretensiosos, nunca mais foram publicados. Nem os dele, nem os de seus rivais. Nenhuma publicação, em nenhuma língua. Nem mesmo na língua do Verbo, a mesma que descreveu o princípio e o final de tudo.

Guilherme Kujawski é jornalista de tecnologia, autor de ficção científica e, atualmente, concebe e organiza eventos na área de arte tecnológica para o Instituto Itaú Cultural. É autor do romance Piritas siderais.

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