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Joca Reiners Terron

A maçã

FLORA REBOLLOEra 1968. Konstantin voltou ao laboratório e pegou distraidamente a maçã que sua mulher depositara na escrivaninha na noite anterior para que fizesse o desjejum. Lena andava preocupada com sua saúde, e com razão, pois ele se alimentava muito mal. Por dois segundos, ao observar o brilho da casca vermelha, Konstantin cogitou comer a maçã. Mas logo mudou de ideia e reuniu-a aos outros objetos no interior do protótipo. Na área de transferência estavam um velho relógio de pulso, que nunca atrasara sequer um segundo, e uma ampulheta que pertencera a seu bisavô. Sem piscar duas vezes, Konstantin pressionou o botão. Era a centésima ocasião que fazia isso sem obter resultado, e seu indicador começava a criar calo na ponta. Cinco minutos depois, ao abrir a portinhola, o relógio e a ampulheta permaneciam intactos, mas a maçã havia desaparecido.

A partir dessa experiência, Konstantin nunca mais foi o mesmo. Todas as manhãs ele ia ao laboratório, estacionava diante do protótipo e observava a janelinha da área de transferência como se vislumbrasse através dela uma paisagem do futuro repleta de macieiras. Não compreendia o sumiço sem registros. A perda de apetite do marido preocupou Lena, que deixou de escolher as maçãs mais vermelhas e roliças do mercado. Ela não se lembrava lá muito bem da origem de sua teoria, mas atribuía poderes inexplicáveis às maçãs. Talvez tudo se devesse àqueles contos de fadas dos quais tanto gostava quando menina, ou então à atração que sempre sentiu pelo intenso rubro da casca. Durante anos seguidos, desde a manhã seguinte ao dia no qual dormira pela primeira vez com Konstantin, ela o alimentara com maçãs escolhidas com devoção. Lena creditava sua felicidade às maçãs.

No entanto, depois de Konstantin relatar à mulher o que acontecera ao acionar o protótipo, ela hesitou. Lena nunca vira fruta tão reluzente como aquela que desaparecera na experiência do marido. Parecia perfeita tanto no formato quanto na cor. E o cheiro que soltava, então? Não parecia uma maçã da Califórnia, nem de qualquer lugar dos Estados Unidos, mas da Rússia de sua juventude. Era a maçã ideal, que traduzia à perfeição o poder das maçãs e o amor que sentia por Konstantin. E ele a desperdiçara numa de suas pesquisas, veja só. Assim, com a crescente distração do marido, Lena abandonou de vez a predileção pela fruta. Passou a servir refeições mais calóricas. Adotou a comida congelada.

Konstantin nunca se conformou por não solucionar o enigma. Estava velho, e suas chances chegavam ao fim. Dia após dia ele notava que seu cérebro não tinha agilidade idêntica à de outras épocas, e até equações fáceis exigiam mais concentração do que jamais necessitara. “Se não fosse pela fidelidade e devoção de Lena, eu não me lembraria de comer”, resmungava. Preocupado nem tanto com a morte mas com a perda da razão, ele deixara de prestar atenção às mudanças no cardápio. Por outro lado, entre uma e outra órbita de sua cabeça ao redor da Lua, Konstantin estranhava o comportamento da mulher. Lena parecia mais triste e passava horas diante da tevê. Também não lhe trazia mais maçãs para o desjejum. Não parecia a mesma pessoa.

Poucos dias após completar 72 anos, em dezembro daquele ano, Konstantin deixou afixado um artigo na rede mundial alternativa à internet conhecida como thewall.net. Nele, explicava os motivos de seu fracasso como cientista. A rede thewall.net era o registro on-line mais antigo existente. Alguns especulavam sua origem desconhecida em cerca de cem anos. Lá havia dependurado todo tipo de pergunta sem resposta. A de Konstantin dizia assim: “O que você sabe sobre viagens no tempo? Alguém encontrou uma maçã aparentemente surgida do nada?”. Morreu sem receber resposta.

Com o falecimento do marido, a vida de Lena deixou de fazer sentido. Konstantin morreu tranquilamente, pois o Alzheimer apagara as obsessões científicas de sua mente. Dessa forma, Lena pôde fazer o que melhor sabia: cuidar dele. Os meses finais haviam sido bem tranquilos. Depois de alguns meses de sua morte e das festas de final de ano, entretanto, Lena tornou-se nostálgica. Ela acordava no meio da noite e estendia os braços longamente em direção ao outro lado da cama, não encontrando o corpo de Konstantin. Até mesmo de seu ressonar asmático ela sentia falta, e dava risadas ao se lembrar disso. Quantas noites Lena passou sem dormir por causa do ronco de Konstantin! É esquisito como aquilo que leva uma pessoa a se apaixonar depois de um tempo torna-se o principal motivo de ódio. Talvez agora ela estivesse dando a volta completa. Havia superado a mágoa. Retornara ao início e enfim podia amá-lo novamente. Ela adormeceu.

Era 1938. Konstantin e Lena se conheceram na universidade de Moscou. Ela perdera os pais na adolescência e vivia sozinha num apartamento minúsculo perto da estação Dimitrovskaya, enquanto Konstantin concluía o doutorado no Instituto de Engenharia Física. Ele tinha 42 anos e nunca se casara. Lena completara 30 anos em janeiro. Ainda era virgem.

Quase sempre sozinho pelos corredores da escola, Konstantin parecia um pássaro de asas atrofiadas pela ausência de voo. Ele não era particularmente bonito, mas tinha uma cabeleira ruiva e ouriçada que o distinguia da multidão de estudantes. Quando falava, parecia prestes a irromper em chamas. Certa vez, em um baile, uma amiga comum chamada Larissa os apresentou. Era uma boa amiga.

Lena e Konstantin dançaram feito loucos naquela noite. Ele tinha um modo trôpego de caminhar que, de início, Lena atribuiu à vodca. Descobriu que ele não bebia somente ao beijá-lo sob a luz amarelada dos postes à margem do Volga. Poucas horas depois, naquela mesma noite, Lena já teria se apaixonado pelo jeito tortuoso de Konstantin de caminhar e de existir no mundo. E no início da manhã seguinte Konstantin já se tornara o mundo inteirinho dela e somente dela e de mais ninguém.

Eles caminharam abraçados até a estação, e só descobriram ao chegar que os trens haviam parado de circular fazia muito tempo. No caminho, conversaram acerca das estrelas e falaram sobre o inverno e a neve e discutiram poesia e o fluir do tempo e Konstantin recitou bem alto uns versos de Pushkin que ela não conhecia. Ele então saltitou pela mureta ao longo do rio e Lena até perdeu o fôlego quando quase caiu. Os dois gargalharam abraçados, depois disso.

Ao passarem pela estação Dimitrovskaya, o sol começava a ser refletido pelos tetos de bronze da cidade ao longe. Diante de seu prédio, com o dia fulgurando no horizonte, Lena vacilou, mas acabou conduzindo o rapaz escadaria acima pelas mãos. Eles enroscaram-se no corrimão e se beijaram em celebração a cada patamar vencido, até atingirem a porta estreita de madeira do apartamento de Lena; Konstantin ergueu-a nos braços e a levou até a cama.

Bem no início da tarde seguinte, Lena despertou faminta. Sentia-se emergindo de um sono infinito e circular após receber um longo beijo. Enquanto descobria a distância que Konstantin ressonava num volume talvez alto demais para o seu gosto, revirou a cozinha sem encontrar nada que pudessem comer. Ao retirar a segunda lata vazia da prateleira, porém, Lena encontrou uma maçã que não se recordava de ter guardado ali. Sua casca era tão vermelha — Lena partiu-a ao meio e sentiu seu cheiro rubro —, simplesmente a maçã mais bonita que jamais vira; no quarto, Konstantin se espreguiçava.

Cada um mordeu sua metade da maçã. Naquele exato instante ambos souberam que estavam unidos para sempre.

Joca Reiners Terron é autor de Curva de rio sujo (2003e Sonho interrompido por guilhotina (2006). O livro Do fundo do poço se vê a lua recebeu o Prêmio Machado de Assis de romance concedido pela Biblioteca Nacional em 2010.

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