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Resenhas

A pobreza que olha para os lados

Redes sociais, segregação e pobreza | Eduardo Marques | Editora Unesp, 216 páginas, R$ 40,00

As relações entre redes sociais de indivíduos e condições de pobreza

Os padrões de sociabilidade e as condições de vida das camadas mais pobres da população, no Brasil, têm sido marcados por transformações muito intensas nas últimas quatro décadas. Nesse período, os mercados de trabalho populares se reconfiguraram inteiramente, na esteira da chamada “reestruturação produtiva”. Simultaneamente, declinou a migração ao Sudeste, fundadora dos territórios de moradia popular nas metrópoles, e se consolidou a inscrição das mulheres no mercado de trabalho, o que desloca decisivamente as relações de gênero domésticas. Imersa nessas transformações, a família popular tendeu à nucleação, em arranjos muito heterogêneos. No plano religioso, e especialmente entre os mais pobres, o trânsito do catolicismo ao pentecostalismo foi também muito notável. Além disso, o acesso à infraestrutura urbana, aos serviços fundamentais e bens de consumo cresceu muito desde os anos 1970 e, embora ainda deficiente, possibilitou outros modos de inserção das novas gerações na cidade. Da mesma forma, as dinâmicas da criminalidade urbana se alteraram radicalmente nesse período e, com elas, os modos da disposição e gestão da violência nos territórios. Em suma, as categorias centrais das análises sociológicas sobre os pobres urbanos – o trabalho, a migração, a família, as políticas sociais e urbanas, a religião e a violência – estão hoje muito longe de ser o que foram.

À luz desse cenário de deslocamentos nada triviais, a literatura acadêmica sobre os temas em questão tem sido saudavelmente renovada. O livro Redes sociais, segregação e pobreza, de Eduar­do Marques, vem a público já como referência fundamental nesse processo de renovação analítica. O autor – professor do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, do qual já foi diretor – apresenta ao leitor os resultados de uma pesquisa empírica inovadora, e de muito fôlego, sobre as relações entre redes sociais de indivíduos e condições de pobreza urbana. Com ênfase no caso paulistano, o estudo dedica-se a mapear as redes sociais de centenas de indivíduos em diferentes situações de pobreza e segregação espacial na cidade. Se este mapeamento já contribui decisivamente para demonstrar a enorme heterogeneidade intrínseca às pobrezas contemporâneas e a necessária ruptura analítica com as teses economicistas ou macroestruturais, essa é só a contribuição inicial do volume. Um estudo qualitativo complementar, realizado a partir do mapeamento das redes pessoais, contribui ainda para desvelar alguns dos mecanismos causais implicados tanto na variabilidade das redes quanto nos seus diferentes padrões ao longo dos ciclos de vida.

A análise criteriosa dos resultados obtidos em campo permite a Eduardo Marques dialogar tanto com as formas tradicionais de interpretar a pobreza (renda, ocupação, condições de moradia etc.) quanto com novos e promissores parâmetros para pensá-la no país (acesso a bens e serviços obtidos em mercados, fora de mercados, padrões de trocas e ajudas entre indivíduos e grupos etc.). Nesse diálogo reforça-se invariavelmente a importância dasociabilidade para a compreensão da pobreza contemporânea. Ao final da leitura do livro, resta ao leitor especialista um olhar admirado ante a originalidade da proposta teórica e metodológica, que no entanto não dispensa a tradição do pensamento da questão urbana e das desigualdades sociais no Brasil; a qualquer leitor interessado, seguramente, restará o enriquecimento provocado pelo contato com resultados empíricos muitas vezes contraintuitivos, que desmistificam uma série de teses apressadas sobre as causas e as características da pobreza contemporânea. O livro de Eduardo Marques é, assim, uma contribuição fundamental tanto para o debate acadêmico sobre pobreza e segregação quanto para a formulação de políticas que visem a sua mitigação.

Gabriel de Santis Feltran é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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