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Resenhas

Um personagem em franco negócio

O altar & o trono | Ivan Teixeira | Ateliê Editorial/Editora Unicamp, 432 páginas, R$ 79,00

Estudo traz novos aspectos sobre obra de Machado de Assis

É provável que a meticulosa investigação que funda o edifício de O altar & o trono: dinâmica do poder em O alienista (Ateliê Editorial / Editora da Unicamp) não seja o principal mérito da publicação. E quais premissas e hipóteses seriam essas? Alguns dos elementos empregados na elaboração da poética que organizaria a novela O alienista, de Machado de Assis, teriam sido hauridos nos discursos que circulavam a propósito da Questão Religiosa (que opôs Igreja Católica e maçonaria), na década de 1870. O referente histórico não compareceria, neste tipo de leitura, como doador de legitimidade a um discurso menor ou menos legítimo (o ficcional), mas como “gerador de discursividade”. Discursividades que o texto mimetizaria, na produção do ficcional, seriam, ainda, as imagens que constituíram as caricaturas anticlericais do Segundo Reinado, as versões que então circulavam sobre as teses científicas ou os discursos produzidos a propósito da controversa criação do Hospício de Pedro Segundo. O método escolhido abandonaria, portanto, o conceito de mimese enquanto imitação da natureza, concebendo a arte como “apropriação imaginosa de discursos”.

Ao reconstituir algumas das coordenadas do debate cultural mais amplo de que participaria a novela, Teixeira ocupa-se, ainda, da configuração singular de sua estrutura em sua relação com os demais textos que tomam parte na mesma controvérsia. Em O altar & o trono, tal etapa da análise é efetuada pelo exame da tradição retórica do caráter, que remonta a Teofrasto. Após a exposição teórica de abertura, o segundo capítulo percorre o periódico A Estação, em que apareceu a primeira versão do texto de Machado, para propor a hipótese de um Machado editor informal de imprensa. Ao investigar as relações entre a novela e o jornal, Teixeira supõe uma narrativa não apenas publicada em A Estação, mas “concebida e escrita conforme a poética cultural do tempo e de acordo com a diretriz específica do veículo”. Veículo que teria sugerido, igualmente, a célebre volubilidade do estilo machadiano, “que se deixa entender não necessariamente como sátira à suposta inconstância das elites, mas sobretudo como apropriação do princípio fragmentário da ordenação da matéria – próprio à diagramação das folhas”.

Tendo sido A Estação um jornal destinado ao que seria o “mundo elegante do tempo”, a tradição crítica teria mais usualmente procurado dissociar a literatura aí veiculada e o jornal. Realizando movimento oposto, Teixeira encarece o que talvez tenha sido um esforço de mútua promoção, por meio do qual o editor valorizava o periódico pela valorização de um de seus colaboradores, Machado de Assis. A folha teria participado, assim, do “processo de produção do conceito Machado de Assis”, de que seria o principal beneficiário imediato. Beneficiário, também, do que teria sido a criação do perfil público da mulher no Segundo Reinado: alguém que, além de se dedicar ao lar, apreciaria jornais, literatura e outras expressões artísticas. Criação ativamente produzida nas páginas do periódico. Nos escritórios de seu editor?

Algumas das proposições são consideravelmente ousadas e seu encaminhamento devolve à crítica um tom que faz pensar no exercício filosófico. Serão qualidades louváveis, se considerarmos o apego ao dogmático que enforma fatia considerável da crítica machadiana. No entanto, a intervenção discursiva de Ivan Teixeira nesta particular controvérsia cultural torna-se decisiva sobretudo porque, ao final de seu texto, um construto é retocado. Machado de Assis não terá sido, enfim, um artista encastelado, colocado acima das preocupações próprias a sua época. Antes, o ensaio confere verossimilhança a um compósito em que interagem o formador de públicos, o conselheiro de moda, o polemista, o editor, o crítico de Machado de Assis e o próprio Machado de Assis que honra esta folha com sua presença. Um personagem “em franco negócio com os códigos da época, que ele assimila e transforma em enunciados imprevistos”.

Francine F. W. Ricieri é doutora pela Unicamp e professora de literatura brasileira da Unifesp. Foi uma das organizadoras da obra Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea (Editora da Unesp).

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