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Delfin

Madame Modorra

Mateus AcioliEla tem esse nome, imaginem, por causa do cochilo que dá a cada refeição. Após o café, deita-se na rede enorme, instalada confortavelmente na sala de convívio, ao lado do salão de recepções. Levanta-se pouco após o almoço e, tendo se fartado com alimentos pouco recomendados pelo seu cardiologista, se encaminha para uma das múltiplas esteiras felpudas, outra mania de Madame, espalhadas por todo o mezzanino secreto, ao qual poucos de nós têm acesso. Acorda novamente por volta de cinco da tarde e emenda uma chávena de chá de jasmim acompanhando um jantar composto ironicamente por saladas verdes, bacon, croutons e refrigerantes de marcas exóticas. Deita-se em sua chaise preferida, larga e muito confortável, feita por um fabricante de renome na Antuérpia. E, finalmente, por volta das onze da noite, quando todos os empregados da casa se encaminham para o descanso merecido, Madame Modorra finalmente acorda, sem qualquer fome. E é durante estas horas lúgubres que tudo acontece.

Ela se encaminha para a piscina previamente aquecida a 30ºC e, assegurando-se de que apenas eu esteja presenciando a imersão diária de seus mais de duzentos quilos, desce com elegância a rampa que a conduz para dentro da água. E então emergem, como todas as noites. Bastam cinco minutos para que elas retornem. Saem da piscina geralmente na mesma ordem: primeiro Dorma, depois Rorma, então Omdra, daí Morda e, por fim, Omora. Cinco jovens distintas e igualmente belas, jovens e magras. E todas elas continuam sendo Madame. E a vida delas tem apenas um objetivo: ir a intermináveis festas. Quando as acompanho ao Salão Oblongo, do qual apenas eu e Madame temos conhecimento, todos os vestidos de noite estão prontos, bem como as saídas secretas que as conduzirão a pontos aleatórios da capital da nação, nos quais poderão tomar um táxi e partir para as suas aventuras noturnas.

Omdra sabe que existe uma rede de orgias e festins da qual participam os maiores líderes religiosos do país. Há pelo menos duas dezenas de religiões ou seitas relevantes para as suas intenções. Então usa vestidos supostamente comportados, que mal contêm seus pudores naturais, tudo coroado por cores sóbrias, o longo cabelo liso com corte reto e a mais tremenda cara de pau no rosto. Uma mulher acima de qualquer reprimenda para os que apenas a veem, que desperta o desejo de todos e nunca cede aos caprichos daqueles que caem na tentação de abordá-la querendo um alívio mundano para seus pecados. Mas que sabe exatamente por quais poderosos e a que momento deve se deixar ser possuída, até que possa conseguir as confissões de que necessita e, então, provocar em cada um que a toque o devido sentimento de culpa, sem chance de remissão dos pecados.

Rorma seduz pelo poder. Utiliza a sua beleza intimidante apenas no jet set da política e das celebridades. Corromper é sua arma. Para isso, usa os vestidos mais provocantes, as joias mais caras, os perfumes mais libidinosos, tudo para tornar-se inalcançável, tudo para ser o principal objeto de atenção e desejo de homens e mulheres. Tentam seduzi-la com ainda mais poder, fama e dinheiro. Ela nunca se entrega em público, nem nunca desdenha. Seu sorriso enigmático e seu olhar fechado, que sempre parece estar olhando para quem a observa, garantem que todos tenham a atenção que julgam merecer. Os que caem em sua armadilha, ela prende em um jogo lancinante, do qual ela conhece as regras como ninguém.

Dorma tem a calma e a serenidade na face. Veste-se sempre de maneira respeitável e sempre age e se comporta como uma recatada dama da alta sociedade. Nunca vista com ninguém, é constantemente cogitada como o melhor partido que um homem poderia querer. Comparece apenas a reuniões reservadas, em geral realizadas em mansões ou flats de alto luxo, tendo como convidadas algumas dezenas de pessoas interessantes, a elite social e cultural da nação. Carismática e carinhosa, cada homem tem a certeza de que aquele sentimento bom que surge quando ela olha é a retribuição que culminará em um futuro próspero, com uma família feliz e numerosa. O cortejo a ela é constante, mas obrigatoriamente termina suas noites sozinha. Não há necessidade de compartilhar uma cama e romper o feitiço quando sua feição de mulher honesta abre as portas para tudo o que necessita saber.

Omora só frequenta as baladas mais quentes da cidade, com as roupas da moda. Apenas gente brilhante e bonita, com som alto e bom nas picapes ou nos palcos, toda a juventude a seu alcance. Ela bebe, se diverte, é engraçada, tem uma voz agradável, uma risada contagiante e um sorriso pelo qual qualquer um se derreteria. Não se importa em ficar com mais de um cara ou garota na mesma noite, e é normal que fique mesmo com muitos em uma só balada. Mas não há uma pessoa sequer que a chame de vagabunda ou adjetivos do gênero. Ela simplesmente dá atenção para todos e, se vê alguém começando a ficar triste por motivos adolescentes como ciúmes ou coração partido, logo vai atrás da pessoa, fica um pouco com ela e isso, inevitavelmente, termina em um beijo na boca. Conversa sobre tudo e sobre todos, e todos querem se mostrar o mais antenados possível, já que, para ela, nunca falta assunto e nem argumento. Sempre vai embora cedo e nunca desacompanhada, deixando no ar a sensação de que a alma da festa acaba de partir.

Morda vai para a galera. Ela se veste de qualquer jeito e é assim que deve ser. Os eventos populares, as festas universitárias underground e os bailes funk podem ter, a qualquer momento, a surpresa de sua visita. E ela dança, e esculacha, e fica com quem quiser ficar com ela. E a cada noite, ela presta atenção no que o povo diz, as pessoas que trabalham para o poder, que acabam por saber dos detalhes mais sórdidos de todos, sejam pastores, políticos, artistas, famosos ou os simplesmente mais ricos do que eles, que vêm a esses lugares descarregar tudo que lhes é jogado no lombo e, enfim, por algumas horas, serem alguém. Ela dá isso a eles, e dá mesmo, e pra quantos puder, pois é muita gente e o tempo é curto. Acaba sendo sempre a mais comentada da festa e tem a fama de puta, dadeira ou coisas do tipo. Mas nunca desce do tamanco e sempre mantém suas roupas de lojas populares nos trinques. E não tem um cara que não brigue por ela, nem uma mulher que não tenha inveja.

Até as cinco da manhã, todas voltam de onde vieram. São sempre pontuais, pois sabem que isso é necessário. Pois, meia hora depois, todas devem ter se despido e retornado para a piscina, para que, a essa hora precisa, ressurja Madame Modorra com toda a informação que necessita. Em uma hora, no Salão Oblongo, lança todas as informações recolhidas na noite em seu mainframe, antes de descer para o café. Precisa saber de tudo o quanto antes, pois está chegando o momento em que ela comerá além do limite e, além das cinco irmãs, surgirá uma sexta, a dona do mundo, e Madame, que vai morar na filosofia, precisará estar pronta para aceitar que não mais existirá como se conhece agora, que todo o conhecimento acumulado irá para sua nova parte de si, que representará para o mundo os sentimentos rimáticos que o nome de Madame esconde aos olhos de todos, dentro do seu insuspeito anagrama.

Delfin é jornalista, escritor e editor da revista Machado (www.revistamachado.com.br) e dirige o Studio DelRey de produção editorial.

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