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Memória

Observador das cidades

Em 2.400 fotos, Frederico Hoehne revela um olhar apurado sobre plantas, paisagens e cidades no início do século XX

acervo instituto de botânicaCiência aberta: aula prática de botânica em 1939; Hoehne é o mais altoacervo instituto de botânica

Frederico Carlos Hoehne ganhou a primeira orquídea do pai aos 8 anos, quando moravam em um sítio em Juiz de Fora, Minas Gerais, fez vários orquidários em São Paulo e deu a uma de suas filhas o nome de uma orquídea, Laelia. Ele adorava orquídeas, mas sua visão de mundo era muito mais ampla. Um acervo de 2.400 fotos do Instituto de Botânica de São Paulo (IBt) que começa a ser revelado publicamente está mostrando a dimensão de seu olhar – e suas inquietações – sobre plantas, paisagens, cidades, pessoas e situações que encontrava ao longo de suas expedições por São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná.

As inquietações emergem dos comentários escritos nos envelopes que guardavam os negativos das fotos, em placas de vidro geralmente de 13 por 18 centímetros. Em uma das fotos do mercado central de São Paulo que fez em 1919, ele anotou: “Grande profusão de raízes, hervas e fructos medicinaes são expostos à venda nessas casas sem o menór escrúpulo e sem a menór hygiene, sem os poderes, etc.”. Um dos envelopes contém o negativo de um extinto parque na Vila Mariana, em São Paulo, e esta observação: “Duas belas copaibeiras no bosque da Saúde, que foi loteado, em vez de ser aproveitado como parque de São Paulo”. “Hoehne era um crítico da política de urbanização da cidade”, observa Luiz Barretto, arquiteto responsável pelo setor de documentação do IBt que coordena a organização desse acervo de imagens. Como Hoehne, Barretto aproveita o que vê para pensar a cidade: “Se ainda houvesse um bosque ali, certamente haveria menos enchentes na região da avenida Ricardo Jafet”.

Barretto começou em 2007 a abrir as centenas de envelopes guardados em dois antigos armários com os negativos fotográficos em vidro, alguns já trincados, que hibernavam após alguns esforços anônimos de organização. Ele achou que poderia organizar aquilo tudo por ser também fotógrafo e ter estudado restauração de fotos e conservação de documentos históricos. Agora as observações sobre as fotos escritas nos envelopes estão em um computador e os negativos organizados em pequenas caixas de plástico – cada um deles protegido por um envelope de papel alcalino que se abre em cruz, eliminando o contato manual direto com o vidro. Quase metade da coleção foi tratada e higienizada e 700 imagens estão digitalizadas. Hoehne fez a maioria das fotos, mas há também trabalhos de outros naturalistas e fotógrafos.

A foto mais antiga, de 1918, retrata o Horto Osvaldo Cruz, de que Hoehne cuidou no Instituto Butantan, em São Paulo, depois de ter sido jardineiro-chefe do Museu Nacional do Rio de Janeiro e participado das expedições do marechal Cândido Rondon pelo sertão de Mato Grosso. Em São Paulo, ele ajudou a implantar também o horto do Museu Paulista e o orquidário do estado, que integra o Jardim Botânico de São Paulo, outra obra sua. Alto e esguio, rosto afilado, ele acumulava prestígio por causa de suas realizações e do trabalho incessante. Recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Göttingen em 1929 e foi o primeiro diretor do Instituto de Botânica de São Paulo, mas não se aquietou atrás de uma mesa e ainda foi a muitas expedições. Ao sair do Botânico, 10 anos depois, em 1952 – sete anos antes de morrer, aos 77 anos –, ele tinha coletado cerca de 10 mil espécies de plantas e escrito 600 artigos dirigidos a botânicos e ao público geral.

“Hoehne foi um conservacionista quando mal se pensava nesse tema, lá pelos idos de 1930 a 1950. Isso pode ser considerado comum hoje em dia, mas naquela época, quando a grande preocupação era o crescimento econômico do país, esse era um assunto pouquíssimo abordado”, comenta Fábio de Barros, pesquisador do orquidário do IBt. “Hoehne também foi um divulgador científico quando isso, ao menos no Brasil, era pouco valorizado. Ele escreveu dezenas de artigos publicados em jornais e revistas não científicas, além de livros, e promoveu cursos no Jardim Botânico para o público geral.” Por fim, Barros enfatiza a preocupação de Hoehne com as possibilidades de aplicação artística e prática das plantas brasileiras. Lendo Hoehne, várias vezes ele encontrou propostas de utilização de imagens de folhas e flores em vitrais, azulejos e pisos.

As fotos estão enriquecendo a história de alguns lugares de São Paulo. Uma delas ajuda a entender melhor por que a Estrada das Lágrimas, próxima ao início da rodovia Anchieta, tem esse nome: por causa de uma figueira que ficou conhecida como árvore das lágrimas. Era ali que as mulheres se despediam dos maridos que partiam para longas viagens pelos sertões paulistas.

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